segunda-feira, 18 de agosto de 2008

TERÇA POESIA E PROSA

Por Não Estarem Distraídos
(Clarice Lispector)

Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque - a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras - e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração.

Como eles admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto.

No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram.

Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios.Tudo, tudo por não estarem mais distraídos.

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Uns Versos

(Adriana Calcanhotto)

Sou sua noite, sou seu quarto

Se você quiser dormir

Eu me despeço

Eu em pedaços

Como um silêncio ao contrário

Enquanto espero

Escrevo uns versos

Depois rasgo

Sou seu fado, sou seu bardo

Se você quiser ouvir

O seu eunuco, o seu soprano

Um seu arauto

Eu sou o sol da sua noite em claro, um rádio

Eu sou pelo avesso sua pele

O seu casaco

Se você vai sair

O seu asfalto

Se você vai sair

Eu chovo

Sobre o seu cabelo

pelo seu itinerário

Sou eu o seu paradeiro

Em uns versos que eu escrevo

Depois rasgo

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Poesia da amante

Adalgisa Néri


Eu te amo

Antes e depois de todos os acontecimentos

Na profunda imensidade do vazio

E a cada lágrima dos meus pensamentos.

°°°

Eu te amo

Em todos os ventos que cantam,

Em todas as sombras que choram,

Na extensão infinita do tempo

Até a região onde os silêncios moram.

°°°

Eu te amo

Em todas as transformações da vida,

Em todos os caminhos do medo,

Na angústia da vontade perdida

E na dor que se veste em segredo.

°°°

Eu te amo

Em tudo que estás presente,

No olhar dos astros que te alcançam

Em tudo que ainda estás ausente.

°°°

Eu te amo

Desde a criação das águas,

desde a idéia do fogo

E antes do primeiro riso e da primeira mágoa.

°°°

Eu te amo perdidamente

Desde a grande nebulosa

Até depois que o universo cair sobre mim

Suavemente.

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