terça-feira, 30 de dezembro de 2014

O ano visto por António Guterres: Todos perdemos



António Guterres vive o lado mais trágico dos conflitos: o seu lado humano. Tem hoje a seu cargo o maior número de refugiados e deslocados desde a II Guerra. E, por isso mesmo, o Alto-Comissário das Nações Unidas para os Refugiados tem uma visão global e real da desordem que hoje impera no mundo.



Há um dado que nos choca particularmente: o número de refugiados e deslocados em 2014 é o maior desde o fim da II Guerra.
É verdade. No final de 2013 tínhamos mais de 51 milhões de pessoas internamente deslocadas ou refugiadas por causa de conflitos, o que aconteceu pela primeira vez desde a II Guerra Mundial. Só que 2014 não vai ser melhor. Vou dar-lhe apenas uma breve descrição de alguns dos acontecimentos que tivemos de enfrentar no Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR). Logo no princípio do ano houve o agravamento dramático da situação na República Centro-africana e no Sudão do Sul. Na RCA a explosão de violência resultou até hoje em meio milhão de pessoas internamente deslocadas e mais de 200 mil novos refugiados nos quatro países à volta. E isto, não contando com os mais de 200 mil que já lá estavam de crises anteriores. No Sudão do Sul, a erupção de violência começou a 15 de Dezembro e já levou a 1,4 milhões de pessoas internamente deslocadas e a cerca de meio milhão de novos refugiados na Etiópia, Quénia, Uganda e Sudão.


António Guterres é desde 2005  alto-comissário das Nações Unidas para os Refugiados Miguel Manso
Esses são aqueles a quem muitas vezes quase não prestamos atenção.
Essas são as crises de alguma forma negligenciadas pela comunidade internacional, uma vez que as atenções estão essencialmente concentradas no Médio Oriente e, em particular, a crise sírio-iraquiana.
Que aumentou muito o número de refugiados a que tem de responder.
Entre Síria e Iraque temos cerca de 13 milhões de pessoas deslocadas internamente ou refugiadas nos países vizinhos. Logo em Janeiro, tivemos a violência em Anbar (Iraque, na fronteira com a Síria), que originou cerca de 600 mil pessoas deslocadas no interior do Iraque. Depois, em Fevereiro, houve a evacuação de Homs e a complexidade da situação da Síria. Logo em Abril o número de refugiados sírios no Líbano atinge um milhão e podemos imaginar o impacte que teve num país que está, ele próprio, em crise política e com uma situação de segurança extremamente precária. Um terço da sua população é hoje composto por sírios e palestinianos. Ainda em Abril, no Líbano, ocorreu o rapto de vários soldados libaneses na região de Arsal, que têm vindo a ser horrivelmente degolados pelo Estado Islâmico.
Esse é o novo método de terror dos fundamentalistas
Embora com muito menos publicidade do que os ocidentais que tiveram o mesmo destino. Tudo somado, temos hoje 3,3 milhões de refugiados sírios e 7,6 milhões de pessoas internamente deslocadas. Nessa altura, tivemos de enfrentar a crise aguda de falta de financiamento do Programa Alimentar Mundial (PAM), que fornece a alimentação aos campos de refugiados e que, por falta de fundos, anunciou que iria reduzir a alimentação a cerca de 800 mil refugiados em vários países africanos. Foi um momento extremamente dramático como pode calcular.
E conseguiram resolvê-lo?
Foi parcialmente colmatado. Vai-se resolvendo mês a mês de uma forma precária e preocupante. Em Junho, começa a ofensiva do Estado Islâmico no Iraque, que tomou Mossul e Tikrit. Já temos no Iraque 2,1 milhões de pessoas internamente deslocadas. Agosto, além do Iraque, é também o mês em que um maior número de pessoas morre no Mediterrâneo: apenas em cinco dias morrem trezentas e o maior número de pessoas que hoje cruzam o Mediterrâneo têm problemas de protecção, porque são sírios e eritreus. Não são, como no passado, imigrantes económicos. Em Agosto o número de refugiados sírios atinge os três milhões, transformando a população refugiada síria no maior grupo a cargo do ACNUR. Em Setembro dá-se o ataque a Kobani [cidade curda na fronteira com a Turquia tomada pelo Estado Islâmico]. Há que sublinhar o facto de a Turquia ter aberto imediatamente a sua fronteira, acolhendo 190 mil pessoas que cruzaram essa fronteira em apenas duas semanas.
Em Outubro temos um marco importante na crise nigeriana, ultrapassando-se os 100 mil refugiados nos países limítrofes, já sem falar dos 650 mil deslocados só durante este ano. Em Novembro, lançámos a nossa campanha global visando acabar com o estatuto de apátrida em 2024. Finalmente, este mês foi particularmente difícil quando o PAM voltou a anunciar que já não tinha verbas, mas que felizmente se pode resolver rapidamente.


Isto dá-lhe um panorama incompleto dos acontecimentos de 2014 que revelam uma pressão enorme sobre o nosso trabalho. Mas, muito mais preocupante do que isso, um nível de sofrimento humano terrível, revelando que estamos hoje numa situação internacional em que a capacidade de prevenir conflitos ou de os resolver está muito diminuída.
Como explica esta situação de desordem internacional que mesmo os mais pessimistas não conseguiam prever? É apenas a ausência americana?
Se olharmos para o carácter da desordem mundial no que nos diz respeito, ela resulta de uma megacrise na Síria e no Iraque e de uma série de novos conflitos na RCA, Sudão do Sul, Ucrânia, Nigéria, sendo que, ao mesmo tempo, parece que as velhas crises não morrem. O Afeganistão continua a ter 2,6 milhões de refugiados, a Somália um milhão, a República Democrática do Congo cerca de 500 mil.
Recordo-me que, quando estudava história no liceu, as guerras tinham normalmente um vencedor e um vencido. Agora, nas guerras ninguém ganha, todos perdem. A guerra vai-se eternizando e não há capacidade para a terminar. É isso que é diferente.
As consequências do fim da Guerra Fria só agora é que nos estão a chegar?
Quando estava no Governo, vivemos o período unipolar da hegemonia norte-americana. Houve uma primeira fase complexa, com os Balcãs e o Cáucaso, mas era evidente que havia uma grande concentração de poder nos Estados Unidos. Nunca houve um sistema de governança eficaz a nível mundial, mas havia relações de poder claras. Lembro-me que, na crise de Timor, a questão decisiva era convencer o Presidente Clinton de que alguma coisa tinha de ser feita. No momento em que Clinton disse que era preciso intervir, imediatamente a Indonésia aceitou, o Conselho de Segurança votou unanimemente, a Austrália já tinha forças preparadas e o problema resolveu-se. Estou convencido de que, se o problema de Timor fosse hoje, nada disto seria possível. O que acontece é que hoje não vivemos num mundo bipolar, não vivemos num mundo unipolar, mas também não vivemos num mundo multipolar. Vivemos num mundo relativamente caótico em que, continuando a não haver um sistema de governança a nível mundial, as relações de poder deixaram de ser claras e, quando isso acontece, cria-se uma situação de imprevisibilidade e de impunidade.
Isso acontece pela perda de influência do mundo ocidental, ou a sua falta de vontade, que está a ser posta à prova pelo resto do mundo?
As relações de poder no tempo da crise de Timor eram claras. Deixaram de o ser. A influência dos EUA é hoje menor. Há novas potências emergentes, embora nem sempre seja clara a sua estratégia. A Rússia vive hoje uma situação muito complexa, que gera uma enorme imprevisibilidade. Em todas as questões decisivas, o Conselho de Segurança foi incapaz de agir e isso é particularmente preocupante. Recentemente, ouvi uma dos meus colegas comentar que ainda não tinha percebido se estávamos em transição para um mundo com uma nova estrutura ou se, pelo contrário, este já era o novo estado do mundo - de caos nas relações internacionais.


Só no Iraque, a ofensiva do Estado Islâmico já fez mais de dois milhões de deslocados AFP/Aris Messinis
Para que lado se inclina?
Penso que a tendência, até pela evolução da economia dos diferentes actores, será para que se evolua para uma multipolaridade. Mas convém recordar que um mundo multipolar sem estruturas multilaterais fortes pode ser extremamente perigoso. A Europa era assim antes da I Guerra Mundial.
Nesse mundo, aliás, a moeda corrente volta a ser o nacionalismo. Na Rússia como na China e até na Europa. A nossa crença na interdependência da globalização afinal está a alimentar o nacionalismo.
Em relação às grandes potências, esse regresso seria facilmente previsível. Após o fim abrupto da União Soviética e até de algum sentimento de humilhação sentido pela Rússia, seria previsível uma tentativa de reafirmação nacional – independentemente da forma como está a ser feita. Da mesma forma que, sempre que um país emerge como potência económica, mais tarde ou mais cedo quer afirmar-se como uma potência política. Era também previsível que isso acabasse por acontecer na China. A questão é saber se é ou não é possível criar formas multilaterais de governance que possam enquadrar esses nacionalismos num sistema de cooperação internacional que seja eficaz.
Mas creio que enfrentamos um conjunto de outras situações que tornam mais difícil a capacidade da comunidade internacional para enfrentar os desafios do nosso tempo.
Quais são eles?
Primeiro, fala-se muito de falta de liderança e, muitas vezes, essa falta é apresentada em termos pessoais: que saudades temos de Willy Brandt, de Olof Palme, de Bruno Kraisky, para falar apenas do socialismo. Como se o problema fosse de falta dessas pessoas excepcionais. Creio que a questão é bastante mais funda. Por um lado, a forma como a vida política tem evoluído com uma crescente promiscuidade com os media transformou a política numa actividade muito pouco atractiva para as pessoas de grande qualidade. E, por outro lado, há um divórcio crescente entre estruturas políticas e a opinião pública, embora tenhamos à nossa disposição uma panóplia de novas tecnologias que poderiam ajudar a organizar de uma forma mais moderna as relações entre poder político e cidadania. O projecto europeu é de alguma forma vítima de tudo isso. E a ausência de uma Europa forte e politicamente unida em todas estas crises internacionais é um factor particularmente grave.
Obama tentou mudar a relação dos EUA com o mundo, de acordo com as transformações mundiais. Tentou durante quatro anos oferecer uma forma de cooperação com a Rússia que não resultou. Tem pela frente um movimento fundamentalista islâmico ainda mais aterrador. Conseguiu sentar os iranianos à mesa das negociações. Intervém, tarde e a más horas, na Síria…
Mas tudo o que disse apenas reforça a ideia de que a capacidade americana de influenciar é hoje muito menor. Quando olhamos para a presidência de Obama, ela também foi vítima daquilo a que eu chamaria uma vingança do passado. No início da sua presidência era muito clara uma estratégia centrada na ideia de que o futuro centro das relações internacionais era o Pacífico e que a relação crucial seria entre os Estados Unidos e a China.



De alguma maneira, é.
Não estou a dizer o contrário. Penso que esta visão de futuro faz sentido. Acontece que Obama acabou por ser vítima, não da incapacidade de responder aos desafios do futuro, mas da vingança dos problemas do passado. Não foi possível libertar-se da questão do Iraque. O problema palestiniano continua a corroer as relações entre o mundo ocidental e o mundo islâmico. Portanto, esta questão tem hoje uma centralidade ainda maior do que o início da sua presidência. E mesmo que as relações de reset com a Rússia fossem um esforço notável, de repente temos na Ucrânia a vingança de uma Guerra Fria mal acabada, de um certo excesso de optimismo em relação ao facto de o fim da União Soviética não ter sido visto com suficiente atenção De alguma forma, temos um Presidente cuja estratégia virada para o futuro é permanentemente posta em causa pelo regresso dos problemas do passado.
Mas creio que o tempo presente é marcado por uma outra série de questões para as quais ainda não foi encontrada uma resposta. Se alguma contribuição deu a civilização europeia à civilização universal, ela tem muito a ver com os valores do Iluminismo – a tolerância e o primado da razão. Ora, esses valores que tínhamos como adquiridos deixaram de existir. E há três factores que os contrariam. Em primeiro lugar, os nacionalismos agressivos; em segundo lugar, os fundamentalismos religiosos que não são apenas o fundamentalismo islâmico; e finalmente os conflitos étnicos que não têm justificação nos tempos modernos mas que estamos a ver multiplicar-se de uma forma particularmente agressiva, com o afloramento de formas de racismo e xenofobia, mesmos nas sociedades mais desenvolvidas.
Muita gente pensou que a crise financeira que se abateu sobre os EUA e, depois, sobre o resto do mundo iria acelerar o declínio americano. Hoje, a economia americana está a recuperar e são alguns desses países que estão com problemas económicos. Há aqui um factor que pode reequilibrar as coisas?
Acho que o grande erro dos analistas é pegar nas circunstâncias do momento e tentar extrapolá-las para a eternidade. É verdade que a influência relativa dos EUA no mundo diminuiu em relação ao que era há 20 anos. Mas é também verdade que os Estados Unidos continuam a ter uma capacidade económica e um dinamismo absolutamente notáveis. As duas coisas são verdade. Não se pode pensar que poderemos regressar ao período de hegemonia americana no passado, mas também não se pode pensar que os EUA deixam de ser o país mais importante na economia mundial e ainda a força militar mais significativa.
Fazendo que os outros tenham de levar em consideração de novo a sua capacidade económica e política.
Hoje é evidente que nada se pode fazer sem os EUA, mas que os EUA já não podem fazer nada sozinhos. Não há forma de combater as alterações climáticas sem envolver a China que já é o maior poluidor. O mais preocupante é a incapacidade dos países indispensáveis a um novo consenso mundial de conseguirem ultrapassar as desconfianças para se juntarem de uma forma positiva face aos grandes desafios do tempo presente, sejam eles os conflitos, as alterações climáticas, as pandemias ou a pobreza.
Mas a minha esperança é que isso, mais cedo ou mais tarde, acabe por acontecer porque hoje estão em causa questões verdadeiramente dilemáticas em relação ao futuro da humanidade. A minha visão é que, para o fazer, é necessário liderança e espírito de compromisso mas seria bom também olhar para a possibilidade de fazer algumas reformas que levassem a um multilateralismo mais efectivo.  


Guterres com refugiados sírios numa visita a Sófia, Bulgária, em Novembro de 2013 Reuters/Stoyan Nenov
E nós vimos isso na própria União Europeia: o enfraquecimento das instituições europeias não ajudou à resolução dos problemas europeus.
Mas quando olhamos para o mundo é muito difícil sermos optimistas. Mesmo na Europa não há grandes razões para optimismo.
É um caso muito particular. Primeiro, porque é o continente onde, mesmo que em termos relativos, se vive uma certa decadência, quer em relação às novas potências emergentes, quer em relação aos próprios Estados Unidos. Há um sentimento de frustração evidente. Por outro lado, vivemos numa situação paradoxal: os problemas europeus obviamente não podem abdicar de um forte contributo nacional de cada país, que tem de assumir as suas responsabilidade e fazer o que lhe é devido para as soluções dos problemas que são colectivos. Mas também é óbvio que não há resposta aos problemas da Europa que não seja europeia. Infelizmente, a evolução política, a credibilidade das suas instituições e o próprio divórcio entre as elites políticas e a cidadania têm levado a que cada vez mais europeus sejam contrários ao grau acrescido de integração que seria necessário para resolver os seus problemas. Esperamos que este paradoxo se resolva, mas neste momento, a Europa enfrenta uma crise grave.
O que se vê hoje, mesmo com este crescimento dos que precisam de protecção, é uma vaga de xenofobia que varre a Europa desde a Suécia à Alemanha, que não tem a ver directamente com as dificuldades sociais e que condicionam os governos europeus.
Apesar de tudo, esses fenómenos são minoritários. O que tem havido é falta de coragem dos partidos que governam a Europa para os combater em nome de valores e de princípios. Há um tacticismo político que só tem favorecido o crescimento dessas forças. Pense num jovem na França de ascendência argelina que não teve sucesso na sua formação, que vive num bairro relativamente degradado da periferia de uma grande cidade, que não tem emprego e que está revoltado. Há 20, 30 anos, havia uma série de ofertas ideológicas para exprimir a sua revolta. Hoje não há. Para este jovem a única coisa que está disponível é o Islão radical. Da mesma forma, para um outro jovem de outra étnica que não tem emprego, que vê o seu futuro sem esperança, que sente a insegurança, a única forma de exprimir a sua revolta é o nacionalismo xenófobo. Há aqui um combate por valores e princípios que as forças políticas nacionais têm de assumir sob pena de perderem a capacidade de enquadrar positivamente as suas sociedades.
O que vemos é que as coisas não vão nesse sentido.
Mas também há exemplos positivos. Justamente nos países que mencionou: a Alemanha e a Suécia. Cerca de metade dos pedidos de asilo na Europa foram feitos nesses dois países. A Alemanha tem uma atitude muito generosa em relação aos sírios.
E começa também a ter as manifestações de segunda-feira em relação à imigração islâmica.
Isso pode ser verdade mas também tem uma enorme pressão da sua opinião pública para receber os sírios. O que é preciso é que as forças políticas centrais não deixem perder os valores da solidariedade e da generosidade. Mas se esses valores não se afirmam, se ninguém os corporiza, a única coisa que fica disponível são as respostas irracionais e de revolta.


A Alemanha impôs a sua resposta à crise da dívida, levando a quatro anos de dura austeridade. O resultado é a estagnação da economia europeia e o risco de deflação. Ninguém se lembrou de tirar as ilações políticas desta receita, que agora estão à vista.
Isso só revela que não há respostas tácticas para um problema estratégico. O euro foi concebido como o final a integração. Ora, era apenas um passo para cujo êxito era necessária mais integração. A minha esperança é que o que tem de ser tem muita força e que, um dia, as pessoas percebam que o caminho não é a renacionalização das políticas, que não leva a coisa nenhuma e que a maneira de resolver o problema é resolve-lo conjuntamente.
Mas a hegemonia alemã é um factor novo. Os interesses dos outros países têm de ser levados em conta.
Mas isso exige também que os outros países compreendam a necessidade de assumir as suas responsabilidades a todos os níveis. E isto é verdade para a economia como é verdade para o asilo. O exemplo do asilo é o contrário: a Alemanha recebe o maior número de requerentes de asilo em todo o mundo. E temos países europeus a fechar as suas fronteiras. É preciso que cada país assuma as suas responsabilidades.
Acreditar na Europa passou a ser uma matéria de fé?
A Europa, em termos relativos, vai viver uma progressiva perda de influência à escala mundial. Pode fazê-lo de forma desordenada e com um preço muitíssimo mais elevado para os europeus, ou pode fazê-lo assumindo colectivamente os seus valores e assumindo uma estratégia comum para aproveitar ao máximo o que é ainda hoje um extraordinário património europeu. Com tudo o que se possa dizer acerca da relativa decadência europeia ou da relativa ascensão de outros países, eu continuo a preferir ser europeu e viver na Europa.
A Europa teve um ano muito particular. Enfrenta a crise na Ucrânia para a qual não estava preparada, porque não tinha uma estratégia para a Rússia. Conseguiu por enquanto manter-se unida e soube coordenar-se com os EUA. Merkel foi aí fundamental. Tem o Mediterrâneo transformado em cemitério, como disse o Papa, e está rodeada por um arco de crise e de instabilidade no seu flanco sul e sudeste. Tem a Turquia perdida. Há 10 anos era o modelo para o mundo, hoje não sabe como lidar com ele.
Se há uma coisa que é evidente é a ausência de Europa política no mundo enquanto tal. Há uma presença francesa, uma presença inglesa, não há uma presença europeia. Mas é também verdade que essa política europeia teria que enfrentar um conjunto de situações muito complexas e que também elas se traduzem em heranças não resolvidas. A herança de uma Guerra Fria que não foi completamente resolvida. A herança de uma forma de tratar a Turquia que, na minha opinião, foi completamente errada. À Turquia devia ter sido dada no momento próprio a garantia de que entraria se cumprisse os critérios de Copenhaga. Isso não aconteceu e entregou-se a Turquia à possibilidade de escolher outros caminhos. E agora pagam-se as consequências disso. E também em relação à Primavera Árabe não foi feito o suficiente.
Lembro-me que, no início da nossa democracia, tivemos um apoio maciço da Europa, incluindo financeiro. A Tunísia, o Egipto não tiveram o mesmo apoio. Não houve a visão para compreender que essas jovens democracias eram muito frágeis e precisavam de uma solidariedade maciça. E quando se é egoísta nas relações internacionais, isso normalmente dá muito mau resultado.
Voltando um pouco atrás, a Europa tenta fechar as suas portas, enquanto, como já referiu várias vezes, os países mais pobres são muito mais generosos. O Líbano, a Jordânia, a Turquia estão a receber milhares e milhares de refugiados da Síria e do Iraque.
Oitenta e sete por cento dos refugiados estão no mundo em desenvolvimento. Eram apenas 70% há 15 anos atrás. O que revela que a tendência não é um afluxo de refugiados para os países desenvolvidos. Pelo contrário, é para os países em desenvolvimento, que são países muito frágeis e alguns com problemas dramáticos.
É por isso que está a tentar ligar a ajuda humanitária à ajuda ao desenvolvimento para esses países?
Estamos a fazer um grande esforço para que se compreenda que as políticas de cooperação para o desenvolvimento têm de ser revistas tendo em conta a nova realidade. Em primeiro lugar, as necessidades do ponto de vista humanitário estão a crescer exponencialmente. E os orçamentos humanitários não acompanham esse crescimento. Vou dar três números. Em 2011, por causa de situações de conflito, 14 mil pessoas eram deslocadas por dia. Em 2012, 23 mil. Em 2013 trinta e dois mil. Só nos casos de conflito. Por outro lado, as políticas de cooperação para o desenvolvimento representam oito vezes os valores da ajuda humanitária. Simplesmente, essas políticas não têm em conta a mobilidade humana e é fundamental que a passem a ter. O Líbano ou a Jordânia situam-se num estado intermédio de desenvolvimento, os chamados “países de rendimento médio”, e por isso não têm acesso a mecanismo de ajuda à cooperação. Isto não faz qualquer sentido. É fundamental rever as políticas de ajuda ao desenvolvimento no sentido de integrar nessas políticas o apoio à estabilização daqueles países que estão na primeira linha de defesa, não só em relação aos refugiados mas na primeira linha de defesa da nossa segurança colectiva.
A falta de liderança internacional, que sentimos tanto, fez do Papa o grande herói de crentes e não crentes, mostrando que as pessoas são sensíveis aos valores.
Independentemente da falta de outros líderes, há que reconhecer que este Papa foi uma lufada de ar fresco não apenas na vida da Igreja mas nas relações internacionais. É uma voz que beneficia de dois factores: da sua própria força e capacidade de surpreender e de mobilizar e também de alguma falta de outras vozes capazes de desencadear nas pessoas os mesmos efeitos. Mas não menosprezemos o seu próprio valor. O Papa Francisco é um dos sinais de esperança que apesar de tudo nos faz pensar que a humanidade pode dar a volta a muitos dos problemas que hoje não consegue resolver.
As palavras do Papa são entendidas na própria Europa, com todo o seu cepticismo.
O que significa que as opiniões públicas são sensíveis a valores. Se os valores não forem afirmados, as pessoas irão atrás dos interesses, dos receios, da insegurança… Por isso, creio que é essencial restabelecer linhas ideológicas e lutar por valores e princípios sob pena de só facilitarmos a vida às posições extremas.

Fonte: http://www.publico.pt/mundo/noticia/o-ano-de-antonio-guterres-todos-perdemos-1680618

Francisco, o personagem político de 2014, por Gilson Caroni Filho




Quem foi o personagem político de 2014? Para mim, sem qualquer sombra de dúvida, o Papa Francisco. E antes que um " revolucionário" anticlerical tenha uma crise histérica, vamos aos fatos.
1)Não seria possível lutar por reforma agrária no Brasil sem o apoio inestimável da Comissão Pastoral da Terra, alvo de ataques dos dois papas que precederam Francisco.
2) Não fosse o trabalho incansável do Conselho Indigenista Missionário, a situação dos índios estaria bem pior do que já está.
3) Haveria Movimento dos Trabalhadores Sem Terra( MST) sem o apoio logístico e ideológico dos setores progressistas da Igreja? Claro que não.
4) Quando falamos em trabalhar politicamente a sociedade, para que ocorram mudanças estruturais, como ignorar os avanços promovidos pelas Comunidades Eclesiais de Base? Como pensar o surgimento do novo sindicalismo dos anos 1980 e do próprio PT sem estes magníficos embriões?
5) Não bastasse o papel central do novo papa no restabelecimento das relações diplomáticas entre Cuba e os Estados Unidos, leio que ele recorrreu a Leonardo Boff para elaborar uma nova encíclica. E isso é um ótimo sinal. Perguntem a João Pedro Stédile o que ele acha?
6) Por fim, para os que gostam de associar Igreja a retrocessos e, sem dúvida, ela participou de vários, gostaria de lembrar a importância do clero progressista na Revolução Sandinista e na resistência em El Salvador. Sem esquecer o que é tão óbvio: a contribuição de bispos e padres, quase todos ligados à Teologia da Libertação, para a redemocratização do nosso país.
Por tudo isso, eu aposto no Chico. Estou muito longe de ser carola, mas pergunto aos anticlericais: que avanço vocês promoveram nos últimos 30 anos?

Fonte: http://jornalggn.com.br/noticia/francisco-o-personagem-politico-de-2014-por-gilson-caroni-filho

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Cine Ipaumirim: Manhã cinzenta


"Manhã cinzenta, curta de Olney São Paulo, é um dos melhores e menos conhecidos filmes sobre a ditadura no Brasil. Lançado em 1969, baseia-se em um conto publicado em livro do cineasta, e mescla ficção poético-alegórica com documentário, através de imagens impressionantes das manifestações de rua contra a ditadura em 68. O filme custou prisão, tortura e processo de Olney, porque uma cópia do filme foi exibida num avião sequestrado pelo MR-8. Um dos sequestradores era cineclubista..." 

Fonte: http://jornalggn.com.br/noticia/%E2%80%9Cmanha-cinzenta%E2%80%9D-um-documento-definitivo-sobre-a-ditadura

Sinopse

Um casal de estudantes segue para uma passeata onde o rapaz, um militante, lidera um comício. Eles são presos durante a manifestação, torturados na prisão e sofrem um inquérito absurdo dirigido por um robô e um cérebro eletrônico. Os negativos e cópias do filme foram confiscados em 1969, mas uma das cópias foi salva e permaneceu escondida por 25 anos na Cinemateca do MAM no Rio de Janeiro.

Ficha técnica
 
Diretor: Olney São Paulo
Lançamento:1969
País de Origem: Brasil
Idioma do Áudio: Português
Duração: 22 min

domingo, 28 de dezembro de 2014

Som do domingo


Poder Judiciário: tradição e opressão, por Rubens Casara

No imaginário democrático, o Poder Judiciário ocupa posição de destaque. Diante dos conflitos intersubjetivos, de uma cultura narcísica e individualista que cria obstáculos ao diálogo, de sujeitos que se demitem de sua posição de sujeito (que se submetem sem resistência ao sistema que o comanda e não se autorizam a pensar e solucionar seus problemas[1]), da inércia do Executivo em assegurar o respeito aos direitos individuais, coletivos e difusos, o Poder Judiciário apresenta-se como o ente estatal capaz de atender às promessas descumpridas tanto pelo demais agentes estatais quanto por particulares e de exercer a função de guardião da democracia e dos direitos.[2]
A esperança depositada, porém, cede rapidamente diante do indisfarçável fracasso do Sistema de Justiça[3] em satisfazer os interesses daqueles que recorrem a ele. Torna-se gritante a separação entre as expectativas geradas e os efeitos da atuação do Poder Judiciário no ambiente democrático. Não raro, para dar respostas (ainda que meramente formais) às crescentes demandas, o Poder Judiciário recorre a uma concepção política pragmática que faz com que ora se utilize de expedientes técnicos para descontextualizar conflitos e sonegar direitos, ora recorra ao patrimônio[4] gestado nos períodos autoritários da história do Brasil para manutenção da ordem.
Não obstante, na media em que cresce a atuação do Poder Judiciário (ainda que essa atuação não atenda às expectativas geradas), diminui a ação política, naquilo que se convencionou chamar de ativismo judicial[5]. Esse quadro está a indicar um aumento da influência dos juízes e tribunais nos rumos da vida brasileira, fenômeno correlato à crise de legitimidade de todas as agências estatais e ao crescimento do sentimento de desconfiança em relação à Justiça.
Em outras palavras: hoje, percebe-se claramente que o Sistema de Justiça tornou-se um locus privilegiado da luta política, o que torna a escolha dos Ministros dos tribunais superiores (ou seja, dos tribunais com competência em todo território nacional e que produzem as decisões que servem de diretrizes/modelos para todos os órgãos do Poder Judiciário) um ponto sensível (embora, constantemente negligenciado) no processo de construção da democracia brasileira (democracia aqui entendida em seu sentido material, como efetiva participação popular na produção das decisões fundamentais à República somada ao respeito incondicional aos direitos fundamentais).
 quebra 
Por evidente, não se pode pensar a atuação do Poder Judiciário desassociada da tradição em que os magistrados[6] estão inseridos. Adere-se, portanto, à hipótese de que há uma relação histórica, teórica e ideológica entre o processo de formação da sociedade brasileira (e do próprio Poder Judiciário) e as práticas observadas na Justiça brasileira[7]. Em apertada síntese, pode-se apontar que em razão de uma tradição autoritária, marcada pelo colonialismo e a escravidão, na qual o saber jurídico e os cargos no Poder Judiciário eram utilizados para que os rebentos da classe dominante (aristocracia) pudessem se impor perante a sociedade[8], sem que existisse qualquer forma de controle democrático dessa casta, gerou-se um Poder Judiciário marcado por uma ideologia patriarcal e patrimonialista (poder-se-ia dizer até aristocrática), constituída de um conjunto de valores que se caracteriza por definir lugares sociais e de poder, nos quais a exclusão do outro (não só no que toca às relações homem-mulher ou étnicas) e a confusão entre o público e o privado somam-se ao gosto pela ordem, ao apego às formas e ao conservadorismo.[9]
De igual sorte, não se pode desconsiderar que o Poder Judiciário tornou-se uma máquina de burocratizar.[10] Esse processo, que se inicia na seleção e treinamento dos magistrados, pode ser explicado: em parte, porque assim os juízes dispensam a tarefa de pensar (há nesses juízes um pouco de Eichmann) e, ao mesmo tempo, ao não contrariar o sistema (ainda que arcaico), evitam a colisão com a opinião daqueles que podem definir sua ascensão e promoção na carreira (“comodismo crônico”);[11] em parte, porque há uma normalização produzida pelo senso comum e internalizada pelo juiz (“neurose conservadora”),[12] através da qual esse ator jurídico passa a acreditar no papel de autoridade diferenciada, capaz de julgar despido de ideologias e valores. Assume, enfim, a postura que o processo de produção de subjetividades lhe outorgou, o que acaba por condicioná-lo a adotar posturas conservadoras no exercício de suas funções com o intuito de preservar a tradição.
Para além dessa tendência à conservação da tradição que acompanha o Poder Judiciário desde sua origem, há também o caráter ideológico do direito burguês, a serviço do velamento da facticidade, em especial das contradições existentes na sociedade. Conforme a crítica marxista ajuda a compreender[13], os textos legais, com suas abstrações generalizantes, são capazes de produzir uma alienação mundana que favorece a manutenção do status quo. Assim, se o texto legal, potencialmente conservador, é um evento que não pode ser ignorado pelo juiz, intérprete privilegiado que irá criar a norma para o caso concreto[14], reforça-se, ainda mais, o caráter conservador da atuação do Poder Judiciário.
A burocratização, marcada por decisões conservadoras em um contexto de desigualdade e insatisfação, e o distanciamento da população fazem com que o Judiciário seja visto como uma agência seletiva a serviço daqueles capazes de deter poder e riqueza. Se por um lado, pessoas dotadas de sensibilidade democrática são incapazes de identificar no Poder Judiciário um instrumento de construção da democracia; por outro, pessoas que acreditam em posturas fascistas (na crença da força em detrimento do conhecimento, na negação da diferença, etc.) aplaudem juízes que atuam a partir de uma epistemologia autoritária.

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Não causa surpresa, portanto, que considerável parcela dos meios de comunicação de massa, a mesma que propaga discursos de ódio e ressentimento, procure construir a representação do “bom juiz” a partir dos seus preconceitos e de sua visão descomprometida com a democracia. Não se pode esquecer que “o sistema midiático tem a capacidade de fixar sentidos e ideologias, o que interfere na formação da opinião pública e na construção do imaginário social” (Dênis de Moraes). Assim, o “bom juiz”, construído/vendido por essas empresas de comunicação e percebido por parcela da população como herói, passa a ser aquele que considera os direitos fundamentais como óbices à eficiência do Estado (ou do mercado). Para muitos, alguns por ignorância das regras do jogo democrático, outros por compromisso com posturas autoritárias, o “bom juiz” é justamente aquele que, ao afastar direitos fundamentais, nega a concepção material de democracia.
Note-se que o distanciamento em relação à população gerou em setores do Poder Judiciário, mesmo entre aqueles que acreditam na democracia, uma reação que se caracteriza pela tentativa de produzir decisões judiciais que atendam à opinião pública (ou, ao menos, aos anseios externados através dos meios de comunicação de massa). Tem-se o populista judicial, isto é, o desejo de agradar ao maior número de pessoas possível através de decisões judiciais, como forma de democratizar a Justiça aos olhos da população, mesmo que para tanto seja necessário afastar direitos e garantias previstos no ordenamento.[15] Assim, não raro, juízes de todo o Brasil passaram a priorizar a hipótese que interessa à mídia ou ao espetáculo em detrimento dos fatos que podem ser reconstruídos através do processo (nesse particular, a Ação Penal 470 é um exemplo paradigmático).
Na democracia, porém, os direitos fundamentais de todos (culpados ou inocentes, desejáveis ou odiáveis) devem ser respeitados. A atuação dos magistrados não pode ser pautada pelo desejo das maiorias, sob pena de inviabilizar o direito das minorias. O Poder Judiciário atua como garante contra a opressão, inclusive contra abusos promovidos pela maioria, e é, portanto, contramajoritário.  Mais do que isso: para assegurar o direito de um, o Poder Judiciário pode (e deve) julgar em sentido contrário à vontade de todos os demais[16]. Dito de outra forma: os direitos fundamentais funcionam como trunfos contra as maiorias de ocasião e cabe ao Poder Judiciário assegurar não só esses direitos como também a própria democracia em sentido substancial. [17]
Em suma, a tradição em que os atores jurídicos estão inseridos, as práticas autoritárias e conservadoras, e a burocratização são fatores que fazem com que o Poder Judiciário não conte com a confiança da sociedade brasileira. Percebido como uma agência estatal seletiva, voltada somente aos interesses da elite, incapaz de concretizar os direitos da grande maioria da população, o Judiciário passa por séria crise de legitimidade. Crise agravada pelo fato de que as tentativas de satisfazer a opinião pública, com a adoção de medidas judiciais que contam com o apoio dos meios de comunicação de massa, tem resultado em violações aos direitos fundamentais, que deixam de funcionar como limites à opressão do Estado e das maiorias, colocando em risco a própria democracia.
Diante desse quadro, para evitar frustrações, é importante reconhecer que o Poder Judiciário é incapaz de substituir a luta política. Os membros desse poder, na condição de agentes políticos, devem aderir e incentivar essa luta. Para tanto, precisam se interpretar, compreender o contexto em que atuam, seus preconceitos e suas limitações, como forma de romper com a tradição em que estão inseridos e reconquistar a  legitimidade perdida (quiçá construir uma legitimidade que nunca existiu). Impõe-se, pois, trabalhar pelo resgate da política como meio de satisfação das potencialidades humanas e, ao mesmo tempo, atuar sempre voltados à concretização do projeto constitucional. Isso, por sua vez, significa assumir a função do Poder Judiciário no jogo democrático, de assegurar o respeito aos direitos fundamentais e acomodar os conflitos, e zelar pela divisão das responsabilidades nesse processo de construção da democracia brasileira.

Rubens R R Casara é doutor em direito, mestre em ciências penais, professor universitário, membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e do Corpo Freudiano. Escreve a coluna Contracorrentes com Giane Alvares, Marcelo Semer, Marcio Sotelo Felippe e Patrick Mariano.


[1] Cf. LEBRUN, Jean-Pierre. Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica psicanalítica do social. Trad. Sandra Regina Felgueiras. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2008, p. 73.
[2] Nesse sentido: GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. Trad. Maria Luiza de Carvalho. Rio de Janeiro. Revan, 1999.
[3] Por Sistema de Justiça entende-se o conjunto de estruturas, leis, regulamentos e agentes que repercutem/atuam na função jurisdicional (na declaração e/ou realização de um direito através do Poder Judiciário). Ou seja, esseo conceito abrange, não só os membros do Poder Judiciário (juízes, desembargadores, serventuários, juízos, tribunais, etc.), como também o Ministério Público, a Defensoria Pública, os diversos ramos da advocacia e os respectivos regulamentos, leis, órgãos e agentes.
[4] Com Rui Cunha Martins, entende-se que quer no eixo autoritário, quer o eixo democrático, há “um sistema complexo, intrinsecamente plural, de referências doutrinárias, mecanismos de acção, funções ideológicas e experiências históricas concretas, interagindo e agregando-se de forma dinâmica. Cada um desses conjuntos, à medida que vai sendo requisitado e em que vai incorporando novas formas históricas, devém patrimônio – patrimônio ditatorial e patrimônio democrático -e é nessa condição patrimonial que ele é recebido, encarado e utilizado em cada momento histórico. (…) só entendendo a democracia e a ditadura como patrimônio se pode compreender que elas fiquem em cada época, como valor que são, disponíveis para uso” (MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito: the brazilian lessons.Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 106.
[5] Para os fins deste texto, o ativismo judicial identifica-se com a substituição das ações do Executivo e do Legislativo, bem como das reivindicações populares, por medidas e decisões judiciais.
[6] No Brasil, adota-se o modelo do juiz profissional, em que os magistrados assumem as suas funções a partir da aprovação em concursos públicos ou por indicações políticas (os tribunais são compostos por juízes de carreira, que são promovidos, e por pessoas escolhidas sem a necessidade de concurso público; nos Tribunais Superiores, ou seja, naqueles com jurisdição em todo o território nacional, essa escolha cabe ao Presidente da República).
[7] Segundo Gizlene Neder, tanto a colonização quanto a escravidão ainda condicionam o padrão de estrutura social e de poder, se manifestando sob a forma de permanências simbólicas que atravessaram várias conjunturas do processo histórico brasileiro (Nesse sentido: NEDER, Gizlene. Discurso jurídico e ordem burguesa no Brasil. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1995).
[8] Cf. WOLKMER, Antonio Carlos. Sociedade liberal e tradição no bacharelismo jurídico. In Direito, Estado, Política e sociedade em transformação (Org. BORGES FILHO, Nilson). Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1995, p. 10.
[9] GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. Trad. Maria Luiza de Carvalho. Rio de Janeiro. Revan, 1999, p. 61.
[10] Nesse sentido: ZAFFARONI, Eugênio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Trad. Vânia Pedrosa e Amir da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 141.
[11] Cf. MEDEIROS, Osmar Fernando de. Devido processo legal e indevido processo penal. Curitiba: Juruá, p. 239.
[12] MEDEIROS, Osmar Fernando de. Devido processo legal e indevido processo penal. Curitiba: Juruá, p. 239.
[13~] BASTOS, Ronaldo. O conceito do direito em Marx. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2012.
[14] Adere-se aqui à tese que pugna pela diferença ontológica entre texto e norma, esta sempre o produto da criação do intérprete. Por todos: STRECK, Lenio Luis. Verdade e consenso. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
[15] Na esfera penal, o populismo tem gerado a admissão de provas ilícitas e o afastamento de direitos e garantias fundamentais dos investigados e acusados com o objetivo de satisfazer os anseios punitivos da mídia.
[16] Em se tratando de direitos indisponíveis, na salvaguarda desses, o Poder Judiciário deve julgar inclusive contra a vontade do próprio titular do direito.
[17] Para além da democracia formal, em sentido material a democracia exige a concretização dos direitos fundamentais. Nesse sentido: FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razon. Trad. Perfecto Andrés Ibáñez et alli. Madrid: Trotta, 1998.
FONTE: http://justificando.com/2014/11/15/poder-judiciario-tradicao-e-opressao/

sábado, 27 de dezembro de 2014

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Pequenas delicadezas do amor



"Que a importância de uma coisa não se mede com fita métrica nem com balanças nem barômetros etc. Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós." (Manoel de Barros)


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As coisas incomensuráveis habitam as pequenas delicadezas do amor. Estão nas miudezas e nos gestos cotidianos dos quais nem nos damos conta; nos pequenos desejos, na mão pousada sobre ombros descansados, nas pontas dos dedos que deslizam na nuca amada, na pipoca dividida, nos abraços despretensiosos, na pia do banheiro ou nos beijos dados na cozinha vestida de louças de um almoço qualquer.
Estes pequenos gestos e abraços engolem o sexo mais indomado e o presente mais caro. Não que o sexo e o presente mais lindo não sejam bem-vindos, mas as pequenas delicadezas têm um poder incrível de sobreviver ao tempo. Sacanagens são deliciosamente prazerosas, mas a certeza da conversa a qualquer tempo é ainda mais reveladora e prazerosa, é ela quem nos afasta da solidão das multidões, que nos transmite certezas, se é que estas existem, de que as coisas seguem por um caminho quase perfeito.
O riso solto e sem protocolos conseguidos com o aumento da intimidade, sem os quais a gente murcha um pouco, está nestas pequenas delicadezas. São estas miudezas do amor que nos engrandecem e muitas vezes a gente sequer se dá conta disto. O amor é cheio de vocações desconhecidas e conexões profundas e delicadas. Pequenas delicadezas são na verdade a mais profunda forma de amor e que nos é revelada, também, em pequenas coisas.
Há momentos na vida em que ficamos por um triz, temos vontade de chorar, gritar, bater; do mesmo modo temos vontade de dividir alegrias, belezas, conquistas, mas quando vamos desmoronar queremos conosco ou do outro lado da linha, aquele que dividiu com a gente as pequenas delicadezas; é nesta pessoa que pensamos, é neste colo que queremos descansar. É naquela conexão profunda e delicada que mora o sossego dos nossos anseios.
Às vezes esta pessoa só precisa dizer um “alô” para o mundo ficar reconhecível outra vez. É que as coisas incomensuráveis da vida moram nas lembranças, gestos e amores gentis.

Cantar sempre


quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

No Recife com o coração no mundo





O ano 2014 foi um ano de muita turbulência para os brasileiros e, de certa forma, para o mundo inteiro. As novas tecnologias a serviço de uma mídia servil trouxeram para dentro das nossas vidas as misérias do mundo registradas por olhos pouco confiáveis. No fim, a gente entra como saiu. Distribuídos em manadas de manipulados, descrentes, fanáticos, espertos, desapontados, ingênuos  e seja lá o que mais for, cada um no seu quadrado e todos juntos, financiamos direta e/ou indiretamente tudo o que nos mostraram.  No mundo, os coadjuvantes são tão responsáveis quanto os protagonistas embora não sejam tão estrelas. 

No Brasil, começou antes da Copa do Mundo com todas as desgraças previstas e não acontecidas. O evento teve de tudo: espetáculo, nossa pisa histórica de 7 x 1 , prisão, polícia (existe alguma coisa nesse pais onde a policia não se faça presente?), um show de abertura deprimente e um término surpreendente  com Ivete Sangalo fantasiada de alface, conforme disseram as más línguas na ocasião.

O show não terminou. Começa definitivamente o período eleitoral que já vinha sendo tricotado há bastante tempo pela classe política mas  agora passa a assumir descaradamente o seu posto de estrela disputando espaço com a policia e a justiça no circo da mídia. E aí teve de tudo que nem a mente mais fértil poderia imaginar. A imprensa de entretenimento acreditando-se séria deitou e rolou e o telespectador passou a assistir concomitantemente a propaganda politica e a minissérie Petrobras que acabou virando novela e atualmente continua como seriado.  A mídia impressa deu suporte atuando no melhor estilo revista Contigo. Com um mix de ingredientes de realismo fantástico, ficção seriada e outros gêneros que suportam as intrigas e tramas mais inverossímeis  num enredo onde se envolvem política, morte, avião sem dono,  justiça, policia, empresariado, funcionários públicos e figurantes  aspirantes a estrela construiu-se um  seriado que ousou ser tragédia mas que se encaminha para uma comédia  com a probabilidade de se esgotar  por falta de público.  Pode até não dar em nada mas com certeza vai inspirar divertidas fantasias carnavalescas a desfilarem por Olinda em 2015.

Que deu  assunto, isso deu. A eleição chegou, cada um votou conforme seu credo político e sua ignorância. O seriado segue  mas a vida é soberana e continua  seu curso. Nem tão boa quanto se gostaria nem tão trágica como anuncia a mídia. Os programas jornalísticos continuam a funcionar espelhados nos  mesmos apelos dos criticados  programas policiais. Quem gosta, assiste. Quem está de saco cheio não falta o que fazer neste verão tão quente.

Enfim, o natal. A maioria desliga um pouco da sua correria e tenta resgatar o que ainda há de humano em nós.  Ainda que infectado pelo puro consumismo, o natal não deixa de ser um tempo para lembrar-se dos amigos, da família e não há uma boa briga que uma ceia de natal não atenue, pelo menos na hora do amigo secreto.

Estar perto é melhor mas nem sempre isso pode acontecer, o importante é aproveitar o espírito de natal e resgatar o lado bom da união e da solidariedade maltratadas durante todo o ano pela ternura esquecida, pelo  afeto desleixado e pelo egoísmo indiferente. Respirar ares saudáveis para entrar o ano positivamente.

Eu passei o natal longe de todos que gostaria de estar junto mas passei-o alegremente acolhida numa festa linda e animada. E assim, dividida entre o Recife, as lembranças dos antigos e simples natais vividos em Ipaumirim,  o pensamento no Crato e o coração no leste da Europa, eu não me senti esquartejada e triste. Muito pelo contrário, senti-me uma mulher globalizada e feliz por ter uma alma que habita o mundo.

Que 2015 seja um excelente ano para todos nós.
ML

Missa do Galo (Machado de Assis)


por Pedro Correia, em 24.12.14
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Fotograma da curta-metragem Missa do Galo, de Nelson Pereira dos Santos (1982) 

O talento de um escritor pode medir-se, entre outros atributos, na forma como utiliza as palavras para sugerir sem dizer. É o equivalente, em literatura, ao célebre Lubitsch's touch -- o traço distintivo do realizador austríaco Ernst Lubitsch (1892-1947), capaz de transformar as entrelinhas de um enredo cinematográfico numa sofisticada forma de expressão artística.
Muito antes de o cinema atingir a projecção universal alcançada no último século, já o maior dos escritores brasileiros, Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), era um exímio cultor da elipse como figura literária. Sabendo, como sabia, que certos vocábulos ou certos conceitos ganham com frequência mais força quando surgem apenas implícitos.
Talvez em nenhum dos seus escritos tal característica seja tão vincada como num singelo conto natalício sem Natal denominado Missa do Galo -- obra-prima da sugestão e da concisão, publicada pela primeira vez no jornal A Semana, em 1893, e seis anos depois incluída no livro Páginas Recolhidas.
Aqui não há luzes nem presépio: na noite mais pura do imaginário católico, há indícios de pecado que não ultrapassam o patamar da ilusão.
Eis-nos transportados para o interior de uma casa burguesa do Rio de Janeiro em meados do século XIX, já de noite, como um teatro de sombras em unidade de espaço, tempo e ação.
Estamos perante um insólito triângulo do qual um dos vértices prima pela ausência: o dono da casa, viúvo de uma prima do estudante de 17 anos que ali se hospeda durante algum tempo. O homem, um tal Francisco Meneses, é escrivão e casou em segundas núpcias: à sua recatada esposa, Conceição, não falta quem chame santa pela virtude que evidencia e por tolerar num resignado silêncio as traições do marido, que passa uma noite por semana longe do domicílio conjugal alegando ir ao teatro.
 
 

machado_de_assis[1].jpgUm leitor mais atento talvez desconfie da exatidão desta história desvendada com excessiva minúcia de pormenores pelo narrador Nogueira, muitos anos depois do sucedido, quando se esperaria que o episódio já se tivesse diluído no fatal nevoeiro das evocações com prazo de validade.
Nogueira, provinciano de visita ao Rio, aguarda sem sono por um vizinho que o acompanhará à Missa do Galo frequentada pela corte do imperador Pedro II. Enquanto espera, lê um velho exemplar d' Os Três Mosqueteiros.
Em obediência a horários ancestrais, as demais ocupantes dormem na casa do escrivão ausente: esposa, sogra, duas escravas. Dormirão todas? Nem por isso: eis que Conceição irrompe na sala em silêncio. Vestindo «um roupão branco, mal apanhado na cintura».

Parecia o início de um vulgar relato de adultério. Mas tal como o Natal está ausente desta promessa de conto natalício também o sexo não comparece nesta promessa de traição não consumada.
Conceição aproveita o suposto serão de insónia para a primeira conversa longa com o jovem estudante -- conversa que seria também a última. Faz-lhe constantes perguntas de conteúdo aparentemente banal. Cada resposta provoca nova cascata de questões.
A dado momento ela diz: «Estou ficando velha.» Resposta pronta do jovem hóspede: «Que velha o quê, D. Conceição?» Palavras que a mulher, de 30 anos, acolhe com um sorriso enigmático.
«Há impressões dessa noite que me aparecem truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalho-me. Uma das que ainda tenho frescas é que, em certa ocasião, ela, que era apenas simpática, ficou linda, ficou lindíssima. Estava de pé, de braços cruzados; eu, em respeito a ela, quis levantar-me; não consentiu, pôs uma das mãos no meu ombro, e obrigou-me a estar sentado. Cuidei que ia dizer alguma coisa; mas estremeceu, como se tivesse um arrepio de frio, voltou as costas e foi sentar-se na cadeira, onde me achara lendo.» (Excertos extraídos da edição portuguesa, chancela Alma Azul, 2005).

machado-de-assis[1].jpgQuebrada a unidade dramática, consistente ao longo de nove páginas, o conto chega subitamente ao fim. Machado de Assis apressa o epílogo, como se o que fosse relevante já estivesse dito -- sem dizer. Nas 15 derradeiras linhas ficamos a saber um pouco de tudo o resto, afinal quase nada.
«Durante a missa, a figura de Conceição interpôs-se, mais de uma vez, entre mim e o padre; fique isto à conta dos meus 17 anos», relata o narrador. Na manhã seguinte, já com o marido em casa, Conceição voltou ao discretíssimo comportamento anterior. O jovem regressou à província. O escrivão morreu em Março, de apoplexia, e ela não tardou a casar com outro homem. Nogueira nunca mais a viu.

Terá o estudante mistificado os propósitos da dona da casa, confundindo-a com uma heroína romântica dos seus livros de capa e espada? Ter-se-á imaginado um D' Artagnan galante transposto para aquele velado aposento do Rio oitocentista? Terá o diálogo com a enigmática Conceição sido apenas fruto de um sono povoado de sonhos ditados pela voz do desejo naquela insólita vigília de Natal?
Jamais saberemos. Nem isso em boa verdade importa neste jogo de aparências transfiguradas pelos labirintos da memória. Porque é dessa realidade paralela, indiferente ao rigor dos fatos, que irrompe por vezes o melhor da vida. Em forma de literatura.
Fonte: http://delitodeopiniao.blogs.sapo.pt/

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

O real significado do Natal



publicado em recortes por João Lopes

Que o Natal traga o que Jesus trouxe à humanidade: o amor. Aquele amor mais livre e libertador que imaginá-lo em nossa época, cega pelo egocentrismo, parece loucura.


Modernamente o Natal ultrapassou as fronteiras do cristianismo – religião histórica que instituiu a data – e ganhou espaço no mundo secular como mais um momento de consumo e, secundariamente, alguma reflexão e comunhão entre famílias e pessoas não necessariamente cristãs, o que é feito em torno do consumo de qualquer maneira.

Originalmente, a data em que hoje se celebra o Natal - 25 de dezembro - era o dia de comemoração ao Deus Sol, no solstício de inverno, que, no século III, foi incorporada pela Igreja Católica a fim de estimular a conversão dos povos pagãos que viviam sob o domínio do Império Romano. Nos países eslavos e ortodoxos a data é comemorada em 7 de janeiro, pois seguem o calendário juliano.

A partir do século III, então, a data torna-se o momento de comemoração pelo nascimento de Jesus de Nazaré: figura histórica mundialmente conhecida que foi capaz de dividir o modo como contamos a história no mundo ocidental. É ele, pois, a centralidade do que se chama de Natal (do latim nāscor, nascer), a festa dá-se em comemoração ao seu nascimento. Sabidamente, não se conhece com exatidão a data do nascimento de Jesus – trata-se apenas de data simbólica.

Algumas pessoas, tanto seguidores do Jesus - também chamado Cristo - quanto não seguidores, podem se perguntar: qual a relevância do pensamento dessa figura histórica Jesus? E essa pergunta se torna realmente importante, sobretudo para aqueles que não compreendem Jesus como um redentor, um salvador da alma, alguém enviado para nos levar ao paraíso. 


A centralidade do pensamento do Nazareno não foi a compaixão ou a felicidade eterna, como acreditam alguns estudiosos; e como afirmou o próprio Nietzsche, em sua crítica mais veemente ao cristianismo, O Anticristo, ser a compaixão o mais nocivo vício. Jesus foi um líder, enquanto compreendido apenas como personalidade histórica, da supremacia do amor. E de qual “amor” estamos tratando ao rememoramos o amor ensinado pelo Cristo? E antes de tratarmos propriamente da resposta, que subverte as lógicas que até então existiam, vale rememorar dois clássicos da filosofia grega que discorreram sobre o amor muito antes de Jesus: Aristóteles e Platão. Assim teremos bons parâmetros para perceber com maior sensibilidade a essência do pensamento deste homem que anualmente nos dá alguns dias de feriado.

O amor de Platão, em termos gerais, é o amor centrado na beleza do caráter, na inteligência de alguém, o que vai ao encontro do amor no conceito de Sócrates, é o amor como sendo a raiz de todas as virtudes e também da verdade. É o amor manifestado na ausência, na falta; o amor que se apresenta mesquinho, do desejo, que se expressa pelo apego. Já para Aristóteles, em termos gerais, o amor é manifestado na presença, é o amor da alegria do encontro com o objeto amado, aquele que se dá pelo atrito. É o amor que traz alegria, leva o homem à perfeição – excelência moral – como acreditava o filósofo.

Finalmente, o conceito de amor de Jesus ganha destaque por dar ao outro a completa primazia. Nas palavras do filósofo Clóvis de Barros Filho “O amor de Jesus é o amor que vai na contramão da animalidade; é o amor que interrompe um nexo normal e material de causalidades, porque quando se dá a outra face deixa-se claro que nem tudo é uma sequência causal-mecânica, pelo menos pode não ser”. Em outras palavras, o amor ensinado por Jesus é aquele em que se considera o outro a partir do modo como consideramos a nós mesmos. A Lei de Talião (reciprocidade rigorosa do crime e da pena) que vigorava à época de Cristo definia algo completamente diferente disso: era a regra do olho por olho.

A mensagem de Jesus, precisamente, sobre o amor, nos ensina a recuar, suportar, não responder mecanicamente nas nossas relações com as outras pessoas, escolher o modo como consideraremos cada ação que nos afete, e não apenas exercer uma atitude de revanchismo. Algo que parece inocente, se tomarmos apenas a concepção simplória das palavras, mas não precisamos refletir muito para observar o modo como nos destruímos pela ausência de um olhar mais compreensível sobre os outros.

O próprio Jesus, quando esteve vivendo em meio a sua cultura, deu um apanhado de exemplos, que contém princípios basilares do pensamento cristão, para o que alguém poderia chamar de vida feliz, ou no sentido filosófico do termo, afirmação da vontade de potência. Ele mesmo subverteu a lógica das leis religiosas de sua época e as resumiu em uma máxima que não poderia ser esquecida em nenhum Natal – sob pena de perder-se todo o sentido deste dia: amar a cada pessoa como se ama a si mesmo. Estabelecendo o conceito máximo de humanidade – em que todos nós somos compreendidos como parte de um todo.

Na época em que viveu, Cristo chocou os religiosos ao se recusar a confirmar e praticar leis que não continham princípios de amor, e andar com as pessoas de pior reputação: em sua companhia estavam doentes intocáveis por costumes religiosos, prostitutas, cobradores de impostos, ladrões, corruptos, pobres e marginalizados de todo tipo, atraídos pelo seu perdão, amor e generosidade inigualáveis, pelos seus ensinamentos que traziam paz e consolo. Jesus não foi um pregador de felicidade. Não nos ensinou passos para uma vida feliz, em que realizações comuns seriam o encontro do significado da vida, mas no remeteu em todos os momentos ao amor, desse modo mais significativo, em que alguma concepção de felicidade consistiria em um caminho de amor, que representa abrir mão de si mesmo em favor do outro, no altruísmo mais elevado que significou para ele perdoar, no momento da sua morte, aqueles mesmos que o matavam.

 
Certamente não se trata de um caminho de amor fácil. Tamanho o desprendimento que se exige. Talvez ele tenha ensinado o seu modo de amar para espíritos mais elevados, no entanto é necessário, antes de assim considerarmos o seus ensinamentos, fazermos uma última reflexão.

Compreendermos o modo de amar ensinado pelo Cristo passa pela compreensão do valor. Se um gato arranha o outro, este revida com outro arranhão àquele, não há valor para eles, reagem puramente com seus instintos. Assim, podemos considerar nossa humanidade, possuímos valores. E sabermos que somos, na natureza inteira, os únicos seres com consciência capazes de refletirmos sobre nós mesmos, inclusive sobre a finitude de nossa existência, nos confere uma espécie de superioridade: a de amar.

Somos parte da humanidade, e embora estejamos em uma relação de interdependência com o resto da natureza, possuímos essa capacidade cognitiva, de reflexão antes de agirmos, não somos o mero instinto de sobrevivência. Não precisamos viver em conflito uns com os outros como único modo de garantir alguma convivência em sociedade. O agir humano sem nenhuma reflexão madura de amor, ou mesmo altruísmo, está nos destruindo. 


Pensem como seria um mundo em que cada pessoa fosse capaz de sair do egocentrismo de suas vontades e desejos para considerar as outras pessoas. Um olhar amoroso sobre cada pessoa, e sobre toda a humanidade – a consideração de que somos esses seres imperfeitos, que podem agir por instintos ruins, mas que atingiremos a maturidade necessária em algum momento, pelo aprendizado e fomento da paz, pela construção não de uma cultura de felicidade, mas sim de amor.

Não haverá melhor Natal que aquele em que o nosso comprometimento for completo com um modo de amar que não seja egoísta, que não amordace a criatura amada, mas a considere em sua totalidade, como parte da nossa humanidade, como parte do que somos por isso também objeto do nosso amor e, consequentemente, até o pior dos homens merecerá ser amado. Experimente fazer um Natal diferente à moda daquele que esquecidamente celebramos. Feliz Natal.

Fonte: © obvious:
http://lounge.obviousmag.org/canteiro/2014/12/o-real-significado-do-natal.html#ixzz3MmFnwHXm Follow us:
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