sábado, 28 de fevereiro de 2015

A praga da violência coletiva




Ladislau Dowbor - A maldade não está essencialmente nas pessoas, mas nos sistemas de organização social que a transformam em ódio coletivo e a justificam.
Nunca subestime o poder de pessoas estúpidas em grandes grupos
Um aluno um dia me perguntou o que eu achava do homem: naturalmente bom mas pervertido pela sociedade, na linha do “bom selvagem” de Rousseau, ou esta desgraça mesmo que vemos por aí, em estado natural? Na realidade, não acho nem uma coisa nem outra. Acho que temos todos imensos potenciais para o bem e para o mal, para o divino e a barbárie. Cabe a nós, que trabalhamos com o estudo da sociedade e em particular das instituições, pensar o que faz a balança pender mais para um lado ou para outro. Pois deixando de lado alguns traumas e deformações individuais, domínio dos psiquiatras, aqui nos interessa a misteriosa bestialidade coletiva de grandes grupos sociais.
Muitos dizem que a solução está na educação e na cultura. Tenho minhas dúvidas, pois sou de família polonesa, e vi refletido nas angústias dos meus pais o que tinham vivido frente ao nazismo. Ninguém irá pensar que os alemães eram um povo de baixo nível educacional ou cultural. E no entanto, com que entusiasmo vestiram as botas e as camisas negras ou marrons, com que elevado sentimento de dever cumprido matavam pessoas por serem diferentes, por um critério real ou imaginário. Cerca de 50% dos médicos alemães aderiram ao partido nazista. Isto é que é realmente preocupante. Estupidez é uma doença que pega.
Poder dar vazão ao que há de mais podre dentro de nós, de mais escuro em termos de ódio contido, de mais baixo em termos humanos, em nome de elevadas aspirações éticas, parece ser muito satisfatório. Os nazistas agiam em nome da pureza da raça. E erguiam bem alto a bandeira do “Gott mit uns”, Deus está conosco. Tornar-se de certa maneira o braço executivo da cólera divina parece ser profundamente agradável. Há gente disposta a morrer por esta satisfação.
Quem não leu O Martelo da Feiticeira, manual de interrogatório dos inquisidores católicos perdeu uma importante fonte de conhecimento sobre os nossos lados escuros. O manual recomenda, por exemplo, que os religiosos encarregados de torturar as possíveis feiticeiras as torturassem nuas, pois se tornam mais frágeis, e de costas para os torturadores, pois a era tal a perversidade destas mulheres que de frente para os torturadores poderiam comovê-los com suas súplicas e expressões de desespero. Eram religiosos, e o faziam em nome de Cristo.
Somos hoje mais civilizados? Sinto-me profundamente abalado, chocado, pelo bárbaro assassinato dos jornalistas do Charlie Hebdo, em Paris, por profissionais da morte que matam em nome de Deus, e que claramente mostraram nos seus gritos que se sentiam como justiceiros que haviam cumprido o seu dever. São monstros? Se fossem, seria muito mais simples compreender e prevenir. Mas são seres humanos em torno dos quais se construiu uma muralha de valores que os protege de qualquer crítica. Se sentem pertencentes a uma comunidade que os apoia e recompensa, ou seja, praticam a barbárie em nome do bem. Podemos matar os terroristas, mas transformar a dinâmica que os forma é bem mais complexo.
Podemos tratar um psicopata, e proteger a sociedade dos riscos individuais. E uma sociedade doente? Quem não viu Os fantasmas de Abu-Ghraib, veja, é profundamente instrutivo. O documentário é montado a partir de selfies e de filmagens por celular de práticas de tortura no Iraque por jovens americanos, contra supostos inimigos. Tortura praticada no Iraque em nome da defesa dos direitos humanos, por um exército invasor, e por funcionários de empresas privadas de segurança terceirizadas para esta tarefa. Estes jovens são monstros? As imagens das torturas e dos risonhos rapazes circulam em todo o mundo islâmico. Com que impacto e efeito multiplicador?
Hoje temos tortura sistemática aplicada pelo Mossad em Israel, em Guantánamo onde quando os prisioneiros tentam morrer para escapar ao sofrimento se lhes introduz à força alimento pelo nariz ou pelo anus, tudo em nome do bem, como em nome de Deus os fanáticos do ISIS decapitam prisioneiros ou os do Boko Haram raptam crianças.
A maldade não está essencialmente nas pessoas, mas nos sistemas de organização social que a transformam em ódio coletivo e organizam a sua expressão em nome da justiça, de Deus, da pátria, da pureza racial ou o que seja.
Texto postado originalmente em:
http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Direitos-Humanos/A-praga-da-violencia-coletiva/5/32902
Fonte: http://controversia.com.br/14767

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Sobre os homens

 

A Verdadeira Divisão Humana

Sois vós um daqueles a quem se chama feliz? Pois bem, vós estais tristes todos os dias. Cada dia tem uma grande amargura e um pequeno cuidado.
Ontem tremíeis pela saúde de alguém que vos é caro, hoje receais pela vossa; amanhã será uma inquietação de dinheiro, depois a diatribe de um caluniador ou a infelicidade de um amigo, mais tarde o mau tempo que faz, qualquer coisa que se quebrou ou se perdeu, uma vez um prazer que a vossa consciência e a coluna vertebral reprovam, outra vez a marcha dos negócios públicos. Isto sem contar as penas de coração. E assim sucessivamente. Uma nuvem que se dissipa e outra que se forma logo.

Apenas um dia em cem de plena felicidade e cheio de sol. E sois desse pequeno número que é feliz!

Quanto aos outros homens, envolve-os a noite estagnante.
Os espíritos refletidos usam pouco desta locução: os felizes e os infelizes. Neste mundo, evidentemente vestíbulo de outro, não há felizes.

A verdadeira divisão humana é esta: os iluminados e os tenebrosos.
Diminuir o número dos tenebrosos e aumentar o dos iluminados, eis o fim.

É por isso que nós gritamos: ensino, ciência! Aprender a ler, é iluminar com fogo; toda a sílaba soletrada cintila.

De resto, quem diz luz não diz, necessariamente, alegria. Também se sofre com a luz; em demasia queima. A chama é inimiga da asa. Queimar-se sem deixar de voar, é o prodígio do gênio.
Quando conhecerdes e quando amardes, sofrereis ainda. O dia nasce em lágrimas. Os iluminados choram quando mais não seja sobre os tenebrosos.

Victor Hugo, in 'Os Miseráveis'
 
 

As Infelizes Necessidades do Homem Civilizado

(...) O homem selvagem, quando acabou de comer, está em paz com toda a natureza, e é amigo de todos os seus semelhantes. Se, algumas vezes, tem de disputar o seu alimento, não chega nunca ao extremo sem ter antes comparado a dificuldade de vencer com a de encontrar noutro lugar a sua subsistência; e, como o orgulho não se mistura ao combate, ele termina por alguns socos. O vencedor come e o vencido vai procurar fortuna noutra parte, e tudo está pacificado.
Mas, no homem da sociedade, é tudo bem diferente; trata-se, primeiramente, de prover ao necessário, depois, ao supérfluo. Em seguida, vêm as delícias, depois as imensas riquezas, e depois súditos e escravos. Não há um momento de descanso. O que há de mais original é que, quanto menos as necessidades são naturais e prementes, tanto mais as paixões aumentam, e o que é pior, o poder de as satisfazer. De sorte que, após longas prosperidades, depois de haver devorado muitos tesouros e desolado muitos homens, o meu herói acabará por tudo arruinar, até que seja o único senhor do universo. Tal é, abreviadamente, o quadro moral, senão da vida humana, pelo menos das pretensões secretas do coração de todo homem civilizado.

 Jean-Jacques Rousseau, in 'Discurso Sobre a Origem da Desigualdade'
 
 

O Homem ao Serviço dos Objetos

Proíbo aos comerciantes que gabem de mais as mercadorias. Eles têm tendência a tornar-se pedagogos e mostram-te como fim aquilo que por essência não passa de um meio.
Depois de assim te enganarem sobre o caminho a seguir, pouco falta para te perverterem.

Se a música deles é vulgar, para te vender, não hesitarão em te fabricar uma alma vulgar.

Ora, se é bom que se alicercem os objetos para servir os homens, seria monstruoso que se exigissem alicerces aos homens para servir de caixote do lixo aos objetos.

Antoine de Saint-Exupéry, in "Cidadela" 
 
 

O Homem Deformado pela Sociedade

Formou Deus o homem, e o pôs num paraíso de delícias; tornou a formá-lo a sociedade, e o pôs num inferno de tolices. O homem — não o homem que Deus fez, mas o homem que a sociedade tem contrafeito, apertando e forçando em seus moldes de ferro aquela pasta de limo que no paraíso terreal se afeiçoara à imagem da divindade — o homem assim aleijado como nós o conhecemos, é o animal mais absurdo, o mais disparatado e incongruente que habita na terra.

Rei nascido de todo o criado, perdeu a realeza: príncipe deserdado e proscrito, hoje vaga foragido no meio de seus antigos estados, altivo ainda e soberbo com as recordações do passado, baixo, vil e miserável pela desgraça do presente.

Destas duas tão apostas atuações constantes, que já per si sós o tornariam ridículo, formou a sociedade, em sua vã sabedoria, um sistema quimérico, desarrazoado e impossível, complicado de regras a qual mais desvairada, encontrado de repugnâncias a qual mais aposta. E vazado este perfeito modelo de sua arte pretensiosa, meteu dentro dele o homem, desfigurou-o, contorceu-o, fê-lo o tal ente absurdo e disparatado, doente, fraco, raquítico; colocou-o no meio do Éden fantástico de sua criação — verdadeiro inferno de tolices — e disse-lhe, invertendo com blasfemo arremedo as palavras de Deus Criador:
- De nenhuma árvore da horta comendo comerás:
- Porém da árvore da ciência do bem e do mal dela só comerás se quiseres viver.

Indigestão de ciência que não comutou seu mau estômago, presunção e vaidade que dela se originaram — tal foi o resultado daquele preceito a que o homem não desobedeceu como ao outro: tal é o seu estado habitual.

E quando as memórias da primeira existência lhe fazem nascer o desejo de sair desta outra, lhe influem alguma aspiração de voltar à natureza e a Deus, a sociedade, armada de suas barras de ferro, vem sobre ele, e o prende, e o esmaga, e o contorce de novo, e o aperta no ecúleo doloroso de suas formas,
Ou há de morrer ou ficar monstruoso e aleijão.

Almeida Garrett, in 'Viagens na minha Terra'
 
 

És Um HOMEM, Se...

Se és capaz de conservar o teu bom senso e a calma,
Quando os outros os perdem, e te acusam disso,

Se és capaz de confiar em ti, quando te ti duvidam
E, no entanto, perdoares que duvidem,

Se és capaz de esperar, sem perderes a esperança
E não caluniares os que te caluniam,

Se és capaz de sonhar, sem que o sonho te domine,
E pensar, sem reduzir o pensamento a vício,

Se és capaz de enfrentar o Triunfo e o Desastre,
Sem fazer distinção entre estes dois impostores,

Se és capaz de ouvir a verdade que disseste,
Transformada por canalhas em armadilhas aos tolos,

Se és capaz de ver destruído o ideal da vida inteira
E construí-lo outra vez com ferramentas gastas,

Se és capaz de arriscar todos os teus haveres
Num lance corajoso, alheio ao resultado,
E perder e começar de novo o teu caminho,
Sem que ouça um suspiro quem seguir ao teu lado,

Se és capaz de forçar os teus músculos e nervos
E fazê-los servir se já quase não servem,
Sustentando-te a ti, quando nada em ti resta,
A não ser a vontade que diz: Enfrenta!

Se és capaz de falar ao povo e ficar digno
Ou de passear com reis conservando-te o mesmo,

Se não pode abalar-te amigo ou inimigo
E não sofrem decepção os que contam contigo,

Se podes preencher todo minuto que passa
Com sessenta segundos de tarefa acertada,

Se assim fores, meu filho, a Terra será tua,
Será teu tudo que nela existe

E não receies que te o tomem,

Mas (ainda melhor que tudo isto)
Se assim fores, serás um HOMEM.


Rudyard Kipling 

ESGOTAR OS ARGUMENTOS


 
Em tempos, Marcuse foi questionado sobre a sua declarada inclinação para a pornografia. Tentou explicar que entre apanhar uma doença má nas putas ou sentir-se vulgar a trair a mulher, preferia satisfazer-se com pornografia. Pressentindo polémica, o entrevistador insistiu: então por que não se satisfaz com a sua mulher? Marcuse olhou-o nos olhos, cofiou as barbichas, e respondeu:
 
Cheguei à conclusão que sexo com a minha mulher só é possível quando ela sente ao largo a ameaça de uma fêmea depredadora. Nesse sentido, o ciúme pode ser um aliado fiel. Noutras ocasiões, exige-me amor. E no que respeita ao amor já esgotei todos os meus argumentos.
 
Fonte:http://universosdesfeitos-insonia.blogspot.com.br/

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

"Erótica é a alma"


Sobre a passagem do tempo e nossa resposta ao envelhecimento


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Adélia Prado certa vez escreveu: "Erótica é a alma". Além de poética, a frase é redentora, pois alivia o peso da sensualidade a qualquer custo, a busca desenfreada pela juventude perdida, a corrida pelos últimos lançamentos da indústria cosmética.
E nos autoriza a cuidar mais da alma, a viajar pro interior, a descobrir o que nos completa. Pois se os olhos são as janelas da alma, de que adianta levantar pálpebras se descortinam um olhar de súplica?
Erótica é a alma que se diverte, que se perdoa, que ri de si mesma e faz as pazes com sua história. Que usa a espontaneidade pra ser sensual, que se despe de preconceitos, intolerâncias, desafetos. Erótica é a alma que aceita a passagem do tempo com leveza e conserva o bom humor apesar dos vincos em torno dos olhos e o código de barras acima dos lábios; erótica é a alma que não esconde seus defeitos, que não se culpa pela passagem do tempo. Erótica é a alma que aceita suas dores, atravessa seu deserto e ama sem pudores.
Porque não adianta sex shop sem sex appeal; bisturi por fora sem plástica por dentro; lifting, botox, laser e preenchimento facial sem cuidado com aquilo que pensa, processa e fala; retoque de raiz sem reforma de pensamento; striptease sem ousadia ou espontaneidade.
Querendo ou não, iremos todos envelhecer_faz parte da vida. As pernas irão pesar, a coluna doer, o colesterol aumentar. A imagem no espelho irá se alterar gradativamente e perderemos estatura, lábios e cabelos. A boa notícia é que a alma pode permanecer com o humor dos dez, o viço dos vinte e o erotismo dos trinta anos_ se você permitir.
O segredo não é reformar por fora. É, acima de tudo, renovar a mobília interior_ tirar o pó, dar brilho, trocar o estofado, abrir as janelas, arejar o ambiente. Porque o tempo, invariavelmente, irá corroer o exterior. E quando ocorrer, o alicerce precisa estar forte pra suportar.
Não tem problema cuidar do corpo. É primordial ter saúde e faz bem dar um agrado à auto estima. O perigo é ficar refém do espelho, obcecado pelo bisturi, viciado em reduzir, esticar, acrescentar, modelar_ até plástica íntima andam fazendo! Aprenda: Bisturi algum vai dar conta do buraco de uma alma negligenciada anos a fio.
Vivemos a era das emergências. De repente tudo tem conserto, tudo se resolve num piscar de olhos, há varinha de condão e tarja preta pra sanar dores do corpo, alma e coração. Como canta Nando Reis, "O mundo está ao contrário e ninguém reparou..." Desaprendemos a valorizar aquilo que é importante, o que é eterno, o que tem vocação de eternidade. E de tanto lustrar a carapaça, vivemos a "Síndrome da Maça do Amor": Brilhantes por fora e podres por dentro. O tempo tornou-se escasso, acreditamos que "perdemos tempo" quando lemos um livro inteiro, quando passamos horas com nossos filhos, quando oramos ou viajamos com a família. E nos iludimos achando que poderemos "segurar o tempo" cuidando da flacidez, esticando a pele, preenchendo espaços.
Cuide do interior. Erotize a alma. Enriqueça seu tempo com uma nova receita culinária, boas conversas, um curso de canto ou dança. Leia, medite, cultive um jardim. Sinta o sol no rosto e por um instante não se preocupe com o envelhecimento cutâneo. Alongue-se, experimente o prazer que seu corpo ainda pode lhe proporcionar. Não se ressinta das novas dores, da pouca agilidade, dos novos vincos. Descubra enfim que a alegria pode rejuvenescer mais que o botox. E não se esqueça: em vez de se concentrar no lustre da maçã, trate de aproveitar o sabor que ela ainda é capaz de proporcionar...

Fonte: http://lounge.obviousmag.org/fabiola_simoes/2015/02/erotica-e-a-alma.html

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Lugares da infância dos quais o ser humano é feito

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Brinquedos, roupas, fotos, músicas, cheiros.
Há várias maneiras de fazer com que as memórias da infância venham à tona. Basta que um desses itens apareça para que o cérebro seja invadido por uma torrente de imagens aparentemente esquecidas. É como vasculhar aquele quartinho da bagunça. Só tirando todas as coisas que estão lá empilhadas para se ter noção do que há de esquecido e remoto.
Não há período que carregue maior valor nostálgico. É o único momento em que não se acha que a grama do vizinho é mais verde. A meninice alheia nunca é melhor que a sua própria. Os gibis em formatinho, com papel tipo jornal, sempre serão melhores que os de hoje, feitos de papel couché. Naquela época havia o Intercine, que sempre trazia uma boa surpresa nas madrugadas. Era muito melhor jogar bola ou andar de bicicleta na rua do que ficar entretido com uma infinita variedade de jogos com gráficos mais realistas do que nunca. Os programas humorísticos eram muito melhores e mais criativos que os de hoje.
Mas talvez não há força motriz reativadora de lembranças maior que os lugares frequentados durante a pequenez. O ser humano tem essa coisa meio estranha de ter o cordão umbilical cortado no momento em que chega ao mundo para depois criar raízes no lugar onde mora. A rua da casa em que a família morou por muito tempo até ter que se mudar por conta do novo emprego arranjado pelo pai na filial da firma  localizada numa cidade distante ainda trás à tona a lembrança de amigos que nunca mais foram vistos. A quadra da antiga escola foi reformulada, está coberta, mas ainda consegue reavivar aquelas tardes em que havia cinco times se revezando em disputas que terminavam com o selecionado que fizesse dois gols de vantagem. A praça da igreja, que teve a maior parte de suas árvores arrancadas, remete aos primeiros beijos escondidos e proibidos para tão pouca idade.
Essa ideia de ligação entre o indivíduo e o espaço em que viveu (ou vive) experiências simbólicas é muito bem retratada no excelente romance Mãos de Cavalo, de Daniel Galera. O narrador conta alternadamente a história de um mesmo personagem, mas em períodos diferentes de sua vida. Enquanto o Hermano adulto passeia a esmo pelas ruas onde viveu suas primeiras e mais traumáticas experiências de vida, o Hermano menino/adolescente leva seus tombos e passa por situações que o marcarão para sempre. E em todas essas ocasiões, os cenários onde tudo aconteceu é o que fazem o Hermano adulto refletir e tentar reparar o irreparável, reverter o irreversível. Galera ainda possui outro trunfo: ao contrário de autores já consagrados, ele não trata de literatura em seus romances, mas de ícones pop, como o filme Mad Max 2, histórias em quadrinhos de super-heróis e a banda Led Zeppelin, aproximando sua obra do leitor que teve uma infância tão saudosa quanto a de seu protagonista.
Alice, personagem do conto A caixa, pertencente ao livro Pó de Parede, de Carol Bensimon, tem sua infância marcada pela moderna estranheza arquitetônica da casa em que cresceu.  Uma construção futurista com o formato de uma caixa que incomoda os vizinhos ao mesmo tempo que atrai a curiosidade de todos para saber o que há lá dentro, o que há dentro da cabeça de Alice, essa menina tão estranhamente especial? De alguma maneira, essa casa a acompanhará e estará em seu âmago até mesmo quando ela for para longe, passar um tempo na França e for obrigada a voltar por conta de uma tragédia que remete ao seu passado.
A infância, no fim das contas, talvez seja isso mesmo, algo inerente e colado, que está sempre dentro do ser humano para lembrá-lo do que ele realmente é feito.
Fonte:http://homoliteratus.com/revisado-lugares-da-infancia-dos-quais-o-ser-humano-e-feito/ 

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Domingo de manhã




«Sou uma escrava das palavras… Tenho uma absoluta fé nas palavras. Presto sempre atenção às palavras que os outros pronunciam, mesmo as dos desconhecidos. Principalmente as dos desconhecidos. Dos desconhecidos podemos sempre esperar ainda alguma coisa.»
Do testemunho de Maria Voïtechonok, 57, em La Fin de l’Homme Rouge (Actes Sud, 2013).
 
Fonte: http://www.aterceiranoite.org/

sábado, 21 de fevereiro de 2015

O escândalo dos outros

CASO HSBC

Por Luciano Martins Costa 

 
Um dos maiores escândalos financeiros de todos os tempos se desenrola na Suíça e tem como epicentro o braço de finanças privadas do HSBC, banco britânico com origem em Hong Kong, e suas repercussões ecoam por quase todo o mundo. Menos no Brasil.
O pedido público de desculpas, distribuído pelo banco a toda a imprensa mundial, foi publicado no domingo (15/2) em jornais, revistas, portais e boletins especializados. No Brasil, pode-se ler uma nota na Folha de S. Paulo de segunda-feira (16/2) citando o assunto. Ainda assim, o texto curto do jornal paulista não faz referência à extensão do caso e, no que se refere ao Brasil, apenas observa que “na lista de contas secretas do banco vazada no Swiss Leaks há ao menos 11 pessoas ligadas ao escândalo da Petrobras”.
Swiss Leaks não é um endereço na internet: é o nome dado à investigação jornalística independente sobre a gigantesca operação de fraude fiscal de que é acusada a subsidiária do HSBC em Genebra. Mais de 180 bilhões de euros teriam passado pelas contas de 100 mil clientes e operadas por 20 mil empresas offshore em transações do banco no período até aqui investigado.
A reportagem foi produzida pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ, na sigla em inglês) a partir de vazamentos produzidos por um ex-funcionário do banco, o engenheiro de software Hervé Falciani, e entregue a autoridades da França em 2008 (ver aqui). Desde então, mais de 130 jornalistas vêm trabalhando na apuração dos dados, em 49 países.
Somente esse esforço jornalístico deveria merecer da imprensa brasileira muito mais do que uma nota curta perdida num pé de página ou o interesse restrito em nomes de empreiteiros e doleiros envolvidos na Operação Lava Jato. Se não fosse pela grandiosidade dos números, que revelam a extensão das fraudes que sustentam grandes fortunas por todo o mundo, seria de se esperar que um jornalismo minimamente objetivo se interessasse ao menos por um fato revelado na investigação: são muitos os milionários brasileiros citados nos documentos, e não apenas os 11 nomes ligados de alguma forma ao escândalo da Petrobras.

O mapa da lavagem

O que os jornais brasileiros temem revelar? Não erra quem imaginar que entre as 6.066 contas suspeitas de 8.667 clientes que ligam o banco suíço ao Brasil podem ser encontrados nomes surpreendentes. Sabe-se, por exemplo, que os donos do grupo argentino de comunicação Clarín estão na lista.
Para se ter uma ideia da extensão do escândalo, basta citar que as contas ilegais, pelas quais foram fraudados os tesouros de dezenas de países, incluem políticos da Inglaterra, Rússia, Ucrânia, Geórgia, Quênia, Romênia, Índia, Liechtenstein, México, Líbano, Tunísia, República do Congo, Ruanda, Zimbábue, Paraguai, Djibuti, Senegal, Venezuela, Filipinas e Argélia.
Trata-se de um mapa precioso para o rastreamento de dinheiro desviado por políticos corruptos, ditadores, além de contrabandistas de armas e diamantes e traficantes de drogas.
O banco privado onde circulava esse dinheiro era parte do conglomerado Republic Bank de Nova York, que foi comprado pelo grupo britânico do banqueiro Edmond Safra, judeu de origem libanesa que se naturalizou brasileiro. Safra morreu em dezembro de 1999, quando era finalizada a negociação, em um incêndio provocado por dois supostos assaltantes que invadiram seu luxuoso apartamento em Montecarlo.
O noticiário da época conta que Safra havia informado autoridades dos Estados Unidos que o Republic Bank estava sendo usado pela máfia russa para lavar dinheiro. O enredo inclui ainda agentes do serviço secreto israelense, que treinaram seus seguranças particulares, e outros detalhes instigantes, entre eles o fato de os supostos ladrões terem entrado e saído com facilidade de um dos edifícios mais protegidos da capital do principado de Mônaco.
Mas nada disso parece interessar a brava imprensa brasileira. A mídia nacional não parece curiosa, por exemplo, com o fato de que o Brasil é o nono país na lista dos maiores valores encontrados nas contas suspeitas: US$ 7 bilhões pertencentes a brasileiros ou estrangeiros com negócios no Brasil foram encontrados no HSBC Private Bank.
O texto da reportagem do ICIJ observa que nem todo dinheiro listado nos documentos é ilegal, mas autoridades de vários países estão examinando todos os negócios do banco.
No Brasil, o assunto é acompanhado apenas por um ou outro blogueiro: nossa imprensa entende que esse é um escândalo dos outros.
Fonte: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/o_escandalo_dos_outros

Velha mídia brasileira esconde escândalo mundial das contas secretas do HSBC na Suíça

Por Patricia Faermann, do Jornal GGN

A lista de nomes de mais de 100 mil correntistas da filial do HSBC em Genebra, que construiu uma indústria de lavagem de dinheiro, intermediada por empresas offshore como forma de fugir da fiscalização dos países de origem, está correndo pelo mundo. Aos poucos, cada uma das pessoas e entidades estão sendo reveladas. França, Espanha, Suíça, Dinamarca, Índia, Angola, Bélgica, Chile, Argentina, e outros países, divulgam reportagens detalhadas a cada dia, com novas informações. Menos o Brasil.
O primeiro jornal a ter conhecimento foi o francês Le Monde. Ele teve acesso aos dados secretos de uma investigação iniciada em 2008, pelo governo da França, por meio de informações vazadas do ex-funcionário do HSBC, franco-italiano especialista em informática, Hervé Falciani.
Percebendo que o esquema envolvia mais de 200 países, o Le Monde decidiu compartilhar todo o material com o ICIJ (Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos), uma rede que integra 185 jornalistas de mais de 65 países, que investigam casos em profundidade. Do Brasil, são cinco membros: Angelina Nunes, Amaury Ribeiro Jr., Fernando Rodrigues, Marcelo Soares e Claudio Tognolli.
Os cinco, portanto, teriam acesso à considerada maior base de investigações fiscais do mundo, até hoje, de posse inicial do Le Monde. Nesses arquivos estão os nomes, profissões e valores de ativos de todos os clientes da filial do HSBC na Suíça. O ponto fraco dos documentos é delimitar quando houve indícios de participação de ilegalidades, uma vez que não é proibido ter uma conta bancária na Suíça. Estão incluídos nomes da realeza, figuras públicas, políticos, celebridades, empresários.
O ICIJ formou um grupo menor de jornalistas para investigar os documentos do projeto denominado como Swiss Leaks. Participam todos os países do Consórcio. Do Brasil, Fernando Rodrigues, do Uol, é o único que tem em mãos as apurações dos clientes brasileiros.
Até o momento, as informações divulgadas pelo ex-repórter da Folha de S. Paulo são de que os dados do HSBC indicam 5.549 contas bancárias secretas de brasileiros, entre pessoas físicas e jurídicas, em um saldo total de US$ 7 bilhões. Nenhum nome. Fernando Rodrigues explica que entrou em contato com autoridades brasileiras, para saber se há ilegalidade nessas operações bancárias, ou se os valores foram declarados à Receita. E que estaria desde novembro aguardando a resposta.
Essa desculpa não bate com o histórico do jornalista. O fato de divulgar a existência da lista e segurar os nomes dá margem a toda sorte de interpretações.
Enquanto isso, o jornalista investigativo argentino, Daniel Santoro, também membro do ICIJ,publica nomes e sobrenomes: os empresários Juan Carlos Relats, Raúl Moneta, e pessoas próximas ao governo, como o grupo Werthein. Os chilenos Francisca Skoknic e Juan Andrés Guzmán, também jornalistas, divulgam os conhecidos de alto patrimônio local: Andrónico Luksic, José Yuraszeck, Ricardo Abumohor, Óscar Lería, Álvaro Saieh, José Miguel Gálmez e o clã Kreutzberger, com filhos e parentes do apresentador de televisão “Don Francisco”.



“O Instituto de Religiosas de San José de Gerona chegou a ter 2,7 milhões na Suíça”, foi a última manchete do jornal espanhol El Confidencial, que horas antes também publicou que a família de empresários Prado figuravam na lista. Nas reportagens, o jornal indica: “a lista Falciani foi descoberta”.



Da Bélgica, o Mondiaal Nieuws mancheta: “entre os 722 belgas da lista do HSBC, estão novamente um monte de diamantes industriais bem conhecidos e descendentes de famílias nobres”. A mesma linha segue o folhetim indiano The Indian Express: “77 dos 1.195 indianos na lista suíça do HSBC estão ligados à indústria de diamantes. O jornalista Appu Esthose Suresh viajou à Mumbai para descobrir como uma pequena empresa familiar controla a indústria”.
O Paraguai denunciou o próprio presidente Horacio Cartes, que tem uma conta na filial do banco na Suíça. Egito, Dinamarca, Rússia, os países não param. O que pode ser o maior esquema de rombo fiscal está paralisando o noticiário mundial.



No Brasil, o jornalista que poderia trazer as melhores investigações publicou quatro reportagens em sua página do blog. Três delas (aquiaqui e aqui) são a tradução de artigos de outros jornalistas estrangeiros, sem nenhuma referência ao que ocorre aqui, e quem está envolvido.
Na quarta reportagem, enquanto aguarda a resposta das autoridades brasileiras, Fernando Rodrigues deu espaço a dados latino-americanos: “na América Latina, nacionais de vários países estão na lista do HSBC. (…) O saldo total máximo mantido nessas contas secretas de latino-americanos ultrapassa US$ 31 bilhões”.
O Brasil figura como o 9º no ranking de países com a maior remessa de dólares, de acordo com os arquivos vazados da Suíça. A quantia máxima de dinheiro associada a um cliente ligado ao Brasil foi de US$ 302 milhões. Foram abertas 5.549 contas de clientes brasileiros entre 1970 e 2006. Essas informações estão no site do ICIJ.



Os documentos ainda mostram que 8.667 clientes são vinculados ao Brasil. Destes, 55% tem um passaporte brasileiro ou a nacionalidade. No gráfico, é destacada a distribuição entre os tipos de contas: 70% numeradas, 10% contas vinculadas a companhias Offshore, e 20% vinculadas a uma pessoa.


As investigações, partindo de jornalistas pelo mundo, está permitindo recuperar centenas de milhões de dólares em impostos não pagos.
Como bem frisaram os jornalistas chilenos Francisca Skoknic e Juan Andrés Guzmán, “o interesse em divulgar o conteúdo destas contas não é baseado na curiosidade em conhecer os segredos dos milionários. Este projeto de jornalismo internacional – que participam mais de 140 jornalistas de 45 países – busca trazer luz sobre o dinheiro depositado na Suíça, uma jurisdição utilizada pelo alto sigilo sobre os ativos, que os protege e, em particular, sobre os clientes do HSBC, o banco que já foi objeto de uma investigação do Senado dos EUA que revelou que tem sido usado para proteger os fundos de lavagem de dinheiro do tráfico de drogas, entre outras irregularidades. Além disso, um grande número de contas – incluindo as de muitos chilenos – estão ligados ao uso de empresas sediadas em paraísos fiscais, uma das maneiras mais comuns de esconder quem são os verdadeiros donos”.

FONTE: http://www.revistaforum.com.br/rodrigovianna/forca-da-grana/velha-midia-brasileira-esconde-escandalo-internacional-das-contas-secretas-hsbc-n

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Faada Freddy - We Sing In Time (SENEGAL)

CAMPANHA DA FRATERNIDADE 2015


Casa que abriga, terra que produz, direitos que reconhecem a cidadania. Enquanto não entendermos isto como política, vamos continuar fazendo pequenas caridades, prestando solidariedade apenas aos que são objetos de campanhas midiáticas de propósitos oportunistas, aguardando elogios, cultivando dependências e vivendo no nosso pequeno mundo cada dia mais desigual, mais violento e menos fraterno.
ML

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Papa: “Jesus não se escandaliza com abertura ou outra forma de pensar”


O Papa na Basílica de São Pedro. / Franco Origlia (Getty Images)

Neste domingo, o Papa Francisco reduziu todo seu pontificado em duas folhas e meia. Durante a homilia dirigida aos 20 novos cardeais nomeados no sábado, Jorge Mario Bergoglio admitiu que a Igreja se encontra em uma encruzilhada de “duas lógicas de pensamento e de fé”, a de se afastar do perigo “por medo de perder os que foram salvos”, e a de “alcançar e curar os que estão distantes”. Francisco, mais contundente do que nunca, colocou Deus como testemunha para deixar claro qual é o caminho a seguir: “Jesus não tem medo do escândalo, não tem medo como pessoas fechadas que se escandalizam com qualquer abertura, com qualquer passo que não entre em seus esquemas mentais ou espirituais, com qualquer carícia ou ternura que não corresponda à sua forma de pensar e à sua pureza ritualística”. Bergoglio pediu aos novos cardeais—com a mensagem também entregue aos veteranos— que “não se isolem em uma casta” e fez uma advertência de que a Igreja está colocando em risco sua credibilidade em relação à atenção aos marginalizados: “Não fiquem olhando o sofrimento do mundo de forma passiva”.

Quase dois anos depois de sua eleição, as velhas estruturas do Vaticano continuam rangendo sob os passos experientes de Bergoglio. Até o argentino chegar, a Igreja oficial vivia tão confortável em seus palácios que, quando se perguntava a algum alto mandatário sobre um assunto que parecia exigir uma decisão urgente, a resposta vinha com inércia romana: “Já tivemos esse problema no século XIII...”. Mas a piada já não funciona. Bergoglio tem pressa e—na Cúria sabem muito bem disso—ai de quem não acompanhar o ritmo.
A homilia do domingo não será esquecida. Na cópia que a assessoria de imprensa do Vaticano distribuiu para os jornalistas, é possível constatar que foi minuciosamente trabalhada: as duas folhas e meia foram fundamentadas em 22 passagens das sagradas escrituras. Talvez para deixar claro —para os que estão dentro, que é onde costumam estar os inimigos mais perigosos— que sua mensagem está construída sobre os princípios autênticos— frequentemente esquecidos pelos donos da franquia— do cristianismo.
Jesus não escandaliza por qualquer carícia
que não corresponda à sua forma de pensar
Apoiando-se na passagem evangélica do leproso do qual Jesus se aproximou, contrariando as leis e os preconceitos da época, Francisco explicou qual deve ser a atitude da Igreja diante daqueles que sofrem marginalização física ou espiritual. “Jesus”, explicou Bergoglio, “responde à súplica do leproso sem demora e sem os costumeiros atrasos para estudar a situação e todas suas eventuais consequências. Para Jesus, o que conta, acima de tudo, é alcançar os que estão distantes”. E aí está o xis da questão. Alcançar os marginalizados. Não são poucos os que, vestidos de roxo ou não, continuam arrancando os cabelos diante das tentativas de abertura de Bergoglio em relação, por exemplo, aos divorciados que se casam novamente, os homossexuais ou os novos modelos de família. É aí que começa em boa medida o desafio que, segundo o Papa, a Igreja tem pela frente: “Nos encontramos na encruzilhada dessas duas lógicas: a dos doutores da lei, ou seja, afastando-se do perigo ao se distanciar da pessoa contaminada, e a da lógica de Deus que, com sua misericórdia, abraça e acolhe reintegrando e transformando o mal em bem, a punição em salvação e a exclusão em inclusão”.
Os doutores da lei se afastam do perigo para não se contagiar
Em um momento da homilia Francisco lembra os cardeais —aos que nomeou no sábado e também aos presentes— que, apesar da aparente encruzilhada, eles não terão escolha a não ser enfrentar a intempérie: “O caminho da Igreja, desde o concílio de Jerusalém em diante, é sempre o caminho de Jesus, da misericórdia e da integração. Isso não significa menosprezar os perigos ou deixar que os lobos entrem no rebanho, mas acolher o filho pródigo arrependido; curar com determinação e valor as feridas do pecado; atuar decididamente e não ficar olhando de forma passiva o sofrimento do mundo (...) Não descobriremos o Senhor, se não acolhermos genuinamente o marginalizado”. E algo que desagradaria aqueles antigos pregadores do “nacionalcatolicismo”, tão adeptos da ameaça do fogo eterno e do ranger de dentes: “O caminho da Igreja é o de não condenar ninguém para sempre”.

 Fonte:http://brasil.elpais.com/brasil/2015/02/15/actualidad/1424028421_109866.html

domingo, 15 de fevereiro de 2015

Príncipe Ribamar da Beira Fresca



José Wilker

(extraído da Revista Globo Rural, 1995, e republicado na edição 85 do JuaOnline, de 7 de janeiro de 2007)



Imagine uma pequena cidade do interior do Ceará aí pelos  primeiros anos da década de cinquenta. Imagine Juazeiro do Norte nessa época. Aconteceu lá isso que vou contar. Pode ser que não tenha sido assim, mas é assim que eu me lembro e é assim que eu conto.

Havia lá um príncipe que se chamava Ribamar. Sempre vestido em seu traje de gala, todas as condecorações derramadas no peito, a solenidade atrapalhada pelas sandálias de dedo e um chapéu-coco. Com chuva ou com sol, ele descia a Rua Grande de Juazeiro todas as tardes, vindo de lugar nenhum e indo para nenhum lugar. Debaixo de um guarda-chuva branco, ele passeava sua solidão. É que o príncipe era noivo. A noiva morava num lugar distante, do outro lado do Oceano Atlântico. A viagem era uma aventura e ela demorava a chegar. O navio em que ela vinha, ele contava, enfrentando piratas, dragões, sereias e a inveja de outros príncipes preteridos, tardava, mas o amor era imenso e o mar pequeno. Ela, estava escrito, um dia chegaria.
Conheci o príncipe já perto dos anos 70 e, diziam, desde jovem ele esperava. A quem lhe perguntasse ou duvidasse, ele exibia as apaixonadas cartas de amor que ela escrevia e, para os mais incrédulos, o seu retrato. Com dedicatória: ao príncipe do meu coração, todo o amor da sua Gioconda da Vinci. O príncipe Ribamar era noivo da Gioconda, de Leonardo da Vinci.

Para muitos, o príncipe era maluco, um pobre coitado com o cérebro derretido pelo sol do sertão. Riam dele, roubavam e escondiam o retrato da Gioconda. Nestes momentos, o príncipe se imobilizava, uma explosão de dor o congelava. Eu me lembro dele, assim privado da sua amada, feito uma estátua no meio da praça. Parecia tão triste e ausente de si que, eu juro, flutuava a meio metro do chão, pendurado no guarda-chuva branco. Quando uma alma boa lhe devolvia seu bem mais precioso, a felicidade saltava dos seus olhos como um raio na tempestade. Talvez ele fosse realmente louco. Mas uma loucura que fazia nascer uma tal felicidade e uma felicidade que vinha de um amor tão grande me deixavam na dúvida.

E, um dia, a dúvida se dissipou. Cansado do descrédito e do deboche em relação ao seu noivado, ele decidiu apressar seu encontro com a noiva. Chega de navios, ela viajará por via aérea. Para uma plateia de invejosos, ele leu o telegrama: “embarco hoje Roma-Juazeiro vg via Panair do Brasil pt amor pt Gioconda da Vinci”. Depois de um silêncio cheio de ironias, alguém perguntou: e o avião desce onde? Foi quando o príncipe resolveu construir um aeroporto. Depois de um tempo lutando para conseguir adesões, argumentando com uns e com outros para que lhe ajudassem a preparar o terreno, montou uma pequena tropa de trabalhadores e começou a construção. Havia quem trabalhasse apenas por farra, mas o príncipe não tentou enganar ninguém. Todos seriam pagos. Afinal, trazia na sua bagagem o tesouro do seu dote. Ribamar, sem nenhuma ambição material, todo amor, prometia dividir aqueles bens entre o que o ajudaram.

Um belo dia, o aeroporto ficou pronto. Ou melhor, uma longa clareira aberta no Vale do Cariri, delimitada de um lado por um jardim plantado com capricho e, de outro, por um pomar onde faziam sombra juazeiros e mangueiras. E Ribamar esperou com seus companheiros. Os dias se passaram, os companheiros se foram e ele continuou esperando, só. Não sei quanto tempo ele esperou. Na cidade, ninguém mais falava ou lembrava dele. De repente, num domingo de sol nordestino, Ribamar reapareceu. Todo de branco, com aquele ar de quem viu Deus, dirigiu-se para a Matriz de Nossa Senhora das Dores, ajoelhou-se diante do altar e esperou. Aparentemente ia se casar. Ninguém se preocupou com ele. Foi esquecido e lá dormiu. Na manhã seguinte segurando um buquê, caminhava de volta para sua casa, que ninguém sabia onde era. 
Depois desse dia, não o vi mais. Minha família mudou-se para Recife e, durante muito tempo, Juazeiro era uma lembrança, nada mais. Nunca mais soube do Ribamar. Entretanto, o atual aeroporto de Juazeiro do Norte, trazido pelo progresso, foi construído sobre o terreno aberto por Ribamar para a chegada da sua Gioconda. Eu acho que, por justiça, deveria ser chamado de Aeroporto Príncipe Ribamar.

José Wilker, 1995
Fonte: http://oberronet.blogspot.com.br/2011/07/principe-ribamar-o-sonhador-de-juazeiro.html


 
Foto publicada em  http://www.portaldejuazeiro.com/2012/02/viva-o-principe.html

Quem passou pelo Cariri nos anos 60 invariavelmente conheceu o príncipe ou as estórias que contavam sobre ele. Entre outras, dizia-se que ele tinha uma fábrica de descascar banana, uma usina de produzir fumaça e coisas do gênero.  Lembro sempre dele nas minhas recordações do Crato em meados dos anos 60. Ainda hoje gosto do Crato e sempre digo que se eu tirasse na mega sena moraria na Praça da Sé ainda que para isso gastasse inteirinho o dinheiro do premio. Eita, Cratinho de açúcar!
ML

sábado, 14 de fevereiro de 2015

Ipaumirim-CE – TAC regulariza abastecimento de água na cidade


 

O Ministério Público do Estado do Ceará, através da promotora de Justiça da comarca de Ipaumirim, Camilla Rolim de Medeiros, celebrou, no dia 12, um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com as empresas CAGECE, COELCE, COGERH e PRIMOR, a fim de regularizar o abastecimento de água naquele município, bem como garantir uma utilização consciente da água na região. Através do TAC, ficou acordado que a empresa Primor arcará com os custos provenientes da ligação de energia elétrica necessária para ativação da adutora. A CAGECE, por sua vez, realizará a mudança de titularidade da ligação elétrica para o seu nome, bem como realizará a ligação direta entre a adutora e a rede de água da cidade de Ipaumirim.
 Há anos a cidade de Ipaumirim vivencia uma precariedade no abastecimento de água e estava à espera da finalização e ativação da adutora do Jenipapeiro para amenizar esta situação. Isso porque a adutora em questão tem como cidades destinatárias Ipaumirim, Baixio e Umari. O Ministério Público constatou que as obras estavam finalizadas, entretanto, existia um impasse entre as empresas supramencionadas acerca das atribuições de cada uma para a ativação da adutora, notadamente com relação à instalação da rede elétrica no setor.
No TAC ficou definida, ainda, a necessidade de apresentação de um plano de racionamento de água para a região até o dia 20 de março de 2015.  A Coelce, por sua vez, terá até o dia 21 de fevereiro de 2015 para realizar a instalação da rede elétrica que propicia o funcionamento imediato da adutora do Jenipapeiro. Já a COGERH ficou responsável por realizar uma campanha educativa de utilização consciente da água, destinada à população da cidade em comento, a qual terá início em 13 de março de 2015.
Todas essas medidas garantem que o abastecimento de água da cidade de Ipaumirim ocorrerá, através da adutora do Jenipapeiro, ainda no mês de fevereiro de 2015. Em caso de descumprimento das obrigações avençadas, as empresas acordantes ficarão sujeitas ao pagamento de multa diária no valor de R$ 1.000,00, a qual será revertida em favor do Fundo Estadual de Direitos Difusos do Ceará.

O que é TAC – Termo de Ajuste de Conduta
É um documento utilizado pelos órgãos públicos, em especial pelos ministérios públicos, para o ajuste de condutas contrárias à lei.
FONTE:http://ipaumirim.diariojovem.com/33995/ipaumirim-ce-tac-regulariza-abastecimento-de-agua-na-cidade/