sábado, 21 de março de 2015

Quem somos nós?


O homem não é conhecível a si próprio, porque a sua vida consiste em esforços alternados para ser o que não é, e essa transposição e substituição contínuas de almas irreais e estranhas fazem com que aquilo que na verdade e, ao contrário de Deus, pareça o que nunca é. Mesmo no mais pobre de nós existem pelo menos sete homens. 

Há aquele que parece aos outros e o julgado, justamente, sabe quase sempre que não é. Há aquele que diz ser e ele próprio sabe não ser, porque a vaidade ou medo tornam sempre mentiroso. 

Há aquele que julga ser e é o mais distante da verdade, que cada um se inclina para se julgar aquilo que não é, por uma retorsão do orgulho que afasta tudo o pior, que é a maioria. Há aquele que quereria ser, o mito pessoal de todo o homem, o sonho reservado ao futuro, aquele que depois deforma todas as autobiografias. 

Aquele que finge ser para comodidade e necessidade da vida comum, onde o insensível deve mostrar-se caloroso, o avarento liberal e o vil corajoso. 

Há aquele que se poderia chamar o nosso duplo desconhecido: a personalidade subconsciente, que só conhecemos vagamente e por suposição, embora oriente com frequência a nossa vida e sugira, valendo-se hipocritamente de razões fingidas, muitos dos nossos atos. 

E, finalmente, há aquele que é verdadeiramente e ninguém conhece, à parte Deus, do qual apenas um inimigo paciente pode entrever algumas frações inferiores. 

O eu essencial e autêntico esquiva-se sempre, a tudo e a si próprio. Nunca nos assemelhamos a nós mesmos. 

Giovanni Papini, in 'Relatório Sobre os Homens'

terça-feira, 17 de março de 2015

Afinal é tão simples o que parece complicado ... é uma questão de "códigos"...



O Simples e o Complicado

As pessoas não querem que se lhes dê lições. É por isso que não compreendem agora as coisas mais simples. No dia em que o quiserem, verificar-se-á que são capazes de compreender também as coisas mais complicadas. Até lá, as instruções são: continuar a trabalhar, discutir o menos possível. Com efeito, só poderíamos dizer a um indivíduo: você é um imbecil, a outro: você é um patife, e há boas razões que excluem a realização expressiva de tais convicções. Sabemos, de resto, que estamos diante de pobres diabos, que receiam por um lado chocar, prejudicar as suas carreiras e que, por outro lado, se encontram acorrentados pelo medo do que está recalcado neles próprios. Teremos de esperar que todos eles morram ou se tornem lentamente minoritários. De qualquer maneira, o que acontece de fresco e de novo é a nós que pertence. 

Sigmund Freud, in 'As Palavras de Freud'
Fonte: http://maravista-anamar.blogspot.com.br/ 

domingo, 15 de março de 2015

Edgar Morin - A poesia da vida

Sobre a felicidade

“A questão da poesia da vida é mais importante do que a da felicidade.”

a-edgard-morin132_thumbnail.jpg

Quantos de nós já nos perguntamos o que é a felicidade e como alcançá-la? Há milhares de pensamentos e teorias a respeito. Alguns mais particulares que outros, mas seja nos livros ou na boca dos boêmios - que recitam a busca da felicidade em notas etílicas - a questão é algo que atormenta a mente e o coração humano há séculos. 

15072009204915125961484.jpg

O que é a felicidade? Uma busca, uma jornada? O agora, o futuro, o que já foi? Os momentos, as histórias, a capacidade de sonhar? São lembranças? É prosa? É poesia? 

edgar_morin.jpg

Em entrevista ao Fronteiras do Pensamento, o filósofo francês Edgar Morin nos auxilia nesta reflexão, comentando sobre o quão frágil e complexa é a felicidade. Para ele, esta busca contínua é impossível, pois a felicidade depende de uma multiplicidade de condições. O que devemos fazer é favorecer os elementos que permitam uma vida poética, buscando o que nos faz florescer, o que nos faz amar e nos comunicar.
"O verdadeiro problema não é a felicidade - é a questão que faço a mim, porque a felicidade é algo que depende de uma multiplicidade de condições. Eu diria que que o que causa a felicidade é frágil. Por exemplo, se uma pessoa que amamos morre ou vai embora, cai-se da felicidade à infelicidade. Em outras palavras, não se pode sonhar com uma felicidade contínua para a humanidade."
Morin possui currículo e diplomas em incontáveis áreas. Sociólogo, antropólogo, historiador e filósofo, ele é doutor honoris causa em 17 universidades, sendo um dos últimos grandes intelectuais da época de ouro do pensamento francês do século XX. Autor de mais de 60 livros sobre temas que vão do cinema à filosofia, da política à psicologia, e da etnologia à educação, ficou mundialmente conhecido por sua defesa do pensamento complexo.

quarta-feira, 11 de março de 2015

Dos professores

Dos professores


Recomendo vivamente o livro "Da Educação dos Príncipes", de António Mouzinho, Professor na Escola da Portela de Sintra. que mal saiu da editora (Gradiva) já está esgotado na editora (se o leitor encontrar um exemplar ou outro numa livraria considere-se felizardo).

O livro apresenta um projecto simples e coerente, bem intencionado e generoso, para o nosso ensino público. Transcrevo aqui o capítulo dedicado aos professores, esperando que abra o apetite para a leitura do resto do livro. Tal como o autor, e ao contrário do que pensam os burocratas do Ministério da Educação, penso que os professores são a mola real do ensino. É necessário que seja restaurada a confiança neles: 
"Já o disse, de certo modo, atrás: para se ser professor, é fundamental gostar de dar aulas. Para isso, é condição necessária gostar de transmitir conhecimentos, qualquer que seja o seu tipo, e de obter adesões entusiásticas ao que quer que seja que se transmite: aquilo que é o coração do espírito proselitista.

Quem gosta de ensinar não o faz, vulgarmente, com indiferença pelo interlocutor. As pessoas têm diferentes formas de comunicação, e público favorito. Tive, essencialmente, duas experiências de ensino com ausência do público adolescente: uma, no 2.º ciclo do básico; outra, em pós-graduações no ensino superior.

Não encontrei, em qualquer das duas, o mesmo encanto que me proporciona a conversa com adolescentes: a mistura de timidez ou reserva com entusiasmo e provocação que há na atitude destes é, para mim, uma fonte de permanente divertimento.

Ora, é essencial que a profissão de professor divirta. Como é que se sabe? — experimentando. Em miúdo andei uns anos no liceu Pedro Nunes. Era o liceu Normal de Lisboa, e muitos professores tinham a cargo a orientação dos estágios pedagógicos. Era esse o mais importante ritual de entrada na profissão. Os alunos identificavam rapidamente os verdadeiros professores, no meio dos estagiários.

Alguns eram melhores que este ou aquele orientador… Outros — uma minoria — nunca deveriam ter entrado na profissão. Não era tecnicamente que falhavam; simplesmente, não eram talhados para aquilo. Os alunos reconheciam-no; os metodólogos, também. Que faziam a um professor sofrível? Davam-lhe uma nota menos boa.

Nunca lhe diriam algo parecido com: «esta profissão não é para si». Ainda hoje cumprimento uma ex-estagiária do professor Rómulo de Carvalho, de 1962 ou 63 (vimo-nos, uma vez, num concerto; cruzamo-nos, de vez em quando, a passear por Lisboa; já nos cumprimentámos num supermercado).

Era uma professora notável, já na altura, e gostei de lhe falar por reconhecimento, embora ela não faça a ligação entre este colega, pouco mais novo— que agora se lhe reapresentou, e a cumprimenta—, e o rapazola, medíocre aluno de Ciências Físico-Químicas, que prestava mais atenção às suas aulas do que às de outros estagiários, porque eram claras, serenas, com bom ritmo, lucidamente preparadas, apresentadas com firmeza e inteligência aliciantes.

O recrutamento de professores é fundamental. Por isso, não pode haver falhas científicas (não falo de vulgares enganos: cometem-se, e corrigem-se), e não pode haver importantes falhas na relação com os alunos.

Primeira condição: por detrás de um professor deve estar, sempre, um mestrado (falo de Bolonha, evidentemente: diria licenciado, antes do acordo; mas igualmente falo de mestrado no sentido de mestrança: o domínio comprovado de um ofício).

Na minha opinião, deve sair de uma faculdade qualquer com um mestrado geral, e não um mestrado de ensino; ou emergirá da proficiência num ofício. Estudos de pedagogia podem fazer-se numa estrutura posterior de acesso à profissão, bem como — sobretudo — as didáticas das disciplinas que serão ministradas.

Mas isso será, normalmente, o complemento desse mestrado geral ou dessa mestrança que deixará sempre aberta a porta de outra profissão: liberal, funcionalismo público, investigação, ofício ou artesanato, o que se quiser fazer, como alternativa de carreira. A uma porta fechada para o ensino, por parte de quem tiver uma palavra a dizer sobre o acesso à profissão, deverá poder seguir-se um novo rumo, e não um cul de sac.

 Segunda condição: a escolha de um docente deve ser feita por um processo exigente de entrevista, e estágio: os estágios pedagógicos tradicionais sempre tiveram a seguinte virtude: falava-se essencialmente de didática das disciplinas, os estagiários observavam aulas de um professor experimentado, e as dos colegas; as suas aulas eram observadas num prazo extenso.

A própria avaliação por pares praticada a determinada altura (com efeito pouco mais que supletivo), era informada por numerosos momentos de presença em aulas alheias. Não consigo ver nada de errado nesta sequência: mestrado— concurso— estágio— admissão no ensino.

Penso, ainda, que a esta admissão poderá ser acrescentado um período probatório (1 ou 2 anos?), e uma avaliação definitiva. Se tudo correr bem, é para o resto da vida. Um «chumbo» no estágio representaria um recuo para a segunda escolha: um sofrível professor de Biologia pode ser um investigador impecável.

Aos 24 ou 25 anos de idade poderá estar, sem danos, com tudo em aberto— menos na carreira do ensino. Atualmente, a hierarquia funciona ao contrário. Também não admira: aos olhos de muitas das famílias portuguesas os professores, neste momento, mais não são do que diplomados ineptos que, como corolário da inépcia, dão aulas.

Terceira condição: o professor deve poder escolher, do leque que vai, no percurso escolar, do 1.º ano ao fim da preparação profissional, a faixa etária dos alunos com que prefere trabalhar. Tive péssimos professores na faculdade, porque se entendia— e entende— que a pedagogia só se aplica no Básico e no Secundário.

É uma asneira colossal: faz falta na faculdade, e todos os estudantes universitários o sabem. Brilhavam os olhos ao meu pai e soltava-se-lhe a língua quando recordava o seu professor Vitorino Nemésio.

Tenho essa experiência do meu professor José-Augusto França. Conheci investigadores de primeira água que eram professores medíocres, porque eram postos a dar matéria curricular a turmas normais, em vez de se ocuparem com investigação, divulgação de memórias, seminários e orientação científica de mestrandos e doutorandos.

Ou eram medíocres simplesmente porque sim: não eram professores, e não deviam estar ligados à docência regular, embora fossem uma presença inestimável na universidade no papel de investigadores.

Mas, enfim: tudo isto extravasa; é já com as direções e os conselhos pedagógicos das universidades.

Quarta condição: decorre das três anteriores, e aplica-se particularmente ao perfil dos candidatos a ensinar as primeiras classes do Básico: não faz qualquer sentido, sabendo o que se sabe hoje, inventar umas escolas à parte da universidade onde se formam — com critérios, nalguns casos, nebulosos — jovens que não são fortíssimos em Matemática e Português e não falam um par de línguas estrangeiras, não desenham, não cantam nem dançam, não percebem patavina de música, não têm um gosto afirmado pela leitura, e pelas ciências, e pela História, não praticam desporto — mas estudaram Piaget, e sabem ensinar a ler por um método global tirado à sorte, na sala de aula, com palhinhas. 

Pobres professores; pobres alunos.

Pertenço a uma família de docentes e, como já afirmei, com professores primários incluídos. Sei como estava bem organizada a cabeça destes, e a qualidade das aulas que ministravam. Conheço a excelência do que faziam, mediante um trabalho diário que sempre me encheu de espanto. Conheço as insuficiências que amiúde me revelavam por trabalharem— evidentemente— em monodocência: «ah, se eu soubesse isto; ah, se eu tivesse jeito para aquilo».

Nós outros, professores de anos mais à frente no Básico, ou no Secundário, «refugiamo-nos» na especialização. Isto não é desejável no 1.º ciclo do Básico, porque já há muito se percebeu que a monodocência tem, para meninos dessas idades, inúmeras virtudes.

Então, os professores do 1.º ciclo têm de ter um mestrado em alguma coisa que lhes dê abertura às profissões liberais, ou à carreira pública, sendo, para mais, dos melhores generalistas de todos nós. Assim como estão, são como nós— e muitos de nós seríamos insofríveis mestres-escola! Uma carreira profissional feita com gente escolhida desta forma, tem de ser bem remunerada e independente.

Não vale a pena estar aqui a listar números com muitos algarismos: basta afirmar que a remuneração de uma elite que tem como ocupação ensinar os nossos cidadãos não pode comparar-se muito desfavoravelmente com as profissões liberais. Ou quaisquer profissões.

E é escusado dizer que não pode reger-se por uma equivalência com tabelas da função pública: a profissão de professor é específica, e essa especificidade deve ser clara, também, no capítulo da carreira— que se quer longa, sem sobressaltos, em benefício da comunidade, com vantagens comummente reconhecidas na economia de qualquer nação. Deixemos as avaliações rotineiras para onde elas façam falta e sentido: professores escolhidos por processos de seleção como o atrás descrito só precisam de ser avaliados, como já foi dito, se algo correr mal.

Nem sequer precisam de ser escrutinados quanto à frequência e qualidade das ações de formação que frequentem durante a vida: são pessoas que se mantêm, por todos os meios, atualizadas quanto à sua profissão— porque a acham de primordial importância para serem felizes, servindo com os seus conhecimentos as raparigas e rapazes que ensinam.

Hão-de frequentar tudo quanto, de facto, sentirem que lhes faz falta, porque são gente irrepreensivelmente curiosa. De facto, haverá muito a dizer acerca da sobreposição entre a profissão de professor e variadíssimas profissões fora da escola: um mestre na arte de fabricar sapatos só pode ser reconhecido no exercício dessa atividade, pelo que convém que também a exerça; o mesmo se poderá dizer de um pintor, ou de um cozinheiro; de um músico, ou de um ator; de um serralheiro, ou de um arquiteto.

Se um bom professor de Português pode simplesmente ser um amante da literatura do seu país que tirou um curso superior, já um bom professor de alfaiataria tem de ser descoberto entre os contramestres que por aí exercem…

Quinta condição: quanto aos restantes professores da escolaridade obrigatória: mantenham-se os critérios exigentes na primeira seleção, quanto à Matemática, ao Português, e ao gosto pela leitura, e reforce-se isto com uma indiscutível solidez de conhecimentos na sua área de especialidade.

Sexta condição: os estágios, seguidos dum período probatório, envolveriam, na sua essência, aquilo que a investigação científica mais recente estivesse a fornecer quanto a práticas de sala de aula e de avaliação de conhecimentos dos alunos: teoricamente — em seminários, etc. — mas, igualmente, em contexto de sala de aula (dois exemplos, à sorte: confronto com uma turma faladora; efeito dos testes escritos na evolução do conhecimento).

Envolveriam, por outro lado, maciçamente, didática das disciplinas ministradas (exemplificando de novo: como lançar, em Matemática, os números imaginários; como estabelecer, em Latim, estratégias para o entendimento de uma frase).

Sétima condição: começar pelo princípio, criando todas as condições para o 1.º ciclo do Básico ser terreno prioritário para receber reforços— sem importunar os professores que já estão no sistema e fazem o seu trabalho corretamente (são muitos!).

Se a monodocência não é, desde já, praticável como solução única, recorra-se à pluridocência de reforço. É insano pensar que se faz o que quer que seja em dois dias — ou em dois anos. Um plano de educação novo só pode começar a produzir efeitos em dez a vinte anos, pressupõe colaboração entre quem chega e quem está, e condições de transição equitativas, sólidas e muito pacíficas.

Não é para mágicos da política munidos de conversa, pressa, e palavras como «abracadabra». É para políticos sérios, e vai sendo tempo de eles surgirem, porque a forma como sucessivos ministérios tentam ocupar primeiras páginas de jornais com gabarolices relativamente ao último Pisa que correu bem, por exemplo, devia enchê-los de vergonha. Pessoalmente, tenho-me sentido sempre constrangido: por quem é que essa gente nos toma? Que arrivismo embaraçoso!

Oitava condição: um posto definitivo num lugar da estrutura educativa é merecedor de respeito: aí, sim, o professor é-o com todas as prerrogativas, e todos os privilégios. Tem direito a estabelecer os fundamentos de uma vida de ensino e uma vida privada sem ser agitado por fenómenos espúrios como concursos sucessivos, colocações compulsivas, horários zero, tarefas inadequadas de feição administrativa, e toda a carga de trabalhos e reuniões inúteis que hoje em dia é considerado normal infligir a docentes — com o pretexto de que estão lá e o Estado tem a obrigação regular de chocalhá-los.

Claro que há necessidade de tornar atrativos os lugares mais afastados dos grandes centros urbanos, o que significa que haverá que pensar em alguns apoios para instalar o professor e a família que queiram aceitar a vida na província, no par de anos que corresponde à integração no terreno. Qualquer empregador privado inteligente faz isso. Qualquer empregador privado faz mais outra coisa: explica minuciosamente, a alguém que esteja a contratar, para o que é que precisa dele, e onde.
E abre concurso para uma vaga em Valença, não abrindo um concurso para uma vaga nacional para, de seguida, surpreender o contratado algarvio com uma posição no Minho… que ele não pode recusar sem penalizações.

Nona condição, que decorre da anterior: os horários devem ser— em qualquer idade— razoáveis; as pessoas devem ter a noção de que (a menos que se trate de vigiar uma turma que faz um teste, ou coisa semelhante) um professor aplicado que dá quatro aulas de enfiada, com uma hora cada, fica cansado. Muito cansado.

Recordo-me dos meus vinte e tal anos, e já era assim; não muda com a idade. Colegas de profissão estão de acordo. Ambos os meus pais foram professores do ensino técnico (passaram após o 25 de abril ao regime comum), e tinham o mesmo limite. Horários letivos equilibrados, em dedicação exclusiva, poderão andar por volta das 20 horas de aulas semanais, compreendendo turmas normais e turmas de ensino especial de enquadramento de alunos com qualquer tipo de dificuldades.

O resto poderá ser um conjunto variado, dependendo dos projetos de escola, ou pessoais, em que o professor esteja envolvido, mas a componente letiva deverá ser essa— e, admito, sem grandes diminuições com o passar dos anos; um limite mínimo de 14 a 16 horas é aceitável: como é natural, é aquilo que alguém que escolheu esta profissão mais gosta de fazer. 

Décima e última condição: dadas as orientações do curriculum nacional, particularizadas nos programas das disciplinas, assentemos nisto: o professor deve ser totalmente independente na organização das matérias e das suas aulas. Pode, e deve, trabalhar com os colegas para apontar caminhos dentro da sua escola. Mas em matéria pedagógica aceita sugestões, estabelece consensos— não precisa de ordens.

O texto do Estatuto da Carreira Docente atrás mencionado está certo, apenas deve ser aplicado. Demasiados conselhos pedagógicos de demasiadas escolas portuguesas ganharam o mau hábito de intervir (com a cobertura das leis da gestão dos estabelecimentos de ensino) nos projetos de trabalho dos seus professores.

São, geralmente, incompetentes pedagógica e cientificamente para o fazer, porque são corpos de representação disciplinar reduzida, porque são designados pela direção, e porque não possuem qualquer preparação que lhes empreste bigodes de metodólogos. São, das estruturas atuais, uma das que mais precisa de mudar— e não deixarei de voltar a este assunto no capítulo sobre a gestão das escolas.

Que fique a seguinte conclusão, entretanto: é pela qualidade dos professores que se garante a qualidade do ensino; é por aí que se deve iniciar um projeto educativo, e ai do país que pense que isto pode representar um gasto excessivo ou um desvio de coisas mais prementes: instalações, novas tecnologias, novas pedagogias ou o que quer que seja.

Sem grandes professores não há um grande ensino; sem este, não temos um grande país. Qualquer outra ideia é muito parecida com considerar que temos um grande almoço se uma refeição medíocre for acompanhada por um queijinho fresco decente."

António Mouzinho
Fonte;  http://dererummundi.blogspot.com.br/

Sobre os homens

O Homem Engana-se a Si Próprio

Os homens nunca revelam os verdadeiros objetivos pelos quais atuam. Intimamente, exageram os motivos baixos, materiais: publicamente, anunciam os motivos nobres, espirituais. Mentem em ambos os casos. Os homens não conhecem os outros nem a si próprios.

A maior parte dos homens vive de instinto, hábito e imitação, animalmente - por vezes, com intermédios de felicidade inconsciente. Os poucos superiores sofrem, tentam, desesperam. Os mais elevados são os que desejam apenas as coisas inacessíveis, impossíveis (amor perfeito, arte perfeita, felicidade, eternidade, etc.).

Todos os homens tentam enganar o próximo. Todos os homens procuram superar e dominar o próximo. Todos os homens se imaginam no bem, no passado ou no futuro. Todos homens se esquecem dos verdadeiros fins e fazem dos meios os seus objetivos. Para onde quer que os homens se voltem, depara-se-lhes o impossível. Todos os homens se julgam mais que os outros.

Não basta aos homens possuir um bem, se não for maior que o do próximo. E, obtido um bem, cansam-se dele (saciedade, náusea) - ou então têm medo de o perder e padecem - ou desejam outro. Para obterem um bem imediato, não pensam no mal próximo que advirá.

Todos tentam extrair dos outros mais do que podem: os industriais dos compradores - os patrões dos operários - os operários dos patrões, etc., etc. -, e dar o menos que podem - e como todos fazem o mesmo, a vida é uma contenda, um engano - sem vantagem para ninguém.

Giovanni Papini, in 'Relatório Sobre os Homens'

Artista, Homem e Revolucionário

Creio que não é preciso. Em todo o caso, fica aqui a declaração. O que eu fui sempre, o que eu sou, e o que serei, é um artista, um homem e um revolucionário. Na medida em que sou artista, quero um mundo onde a beleza seja o vértice da pirâmide. Na medida em que sou homem, quero que nesse mundo os indivíduos sejam livres e conscientes. E na medida em que sou revolucionário, quero que a revolução traga à tona as grandes massas, e que nunca acabe de percorrer o seu caminho perpétuo, sem estratificações e sem dogmas.

Miguel Torga, in "Diário (1948)"

O Homem não está à Altura da sua Obra

Dir-se-ia que a civilização moderna é incapaz de produzir uma elite dotada simultaneamente de imaginação, de inteligência e de coragem. Em quase todos os países se verifica uma diminuição do calibre intelectual e moral naqueles a quem cabe a responsabilização da direção dos assuntos políticos, econômicos e sociais. As organizações financeiras, industriais e comerciais atingiram dimensões gigantescas. São influenciadas não só pelas condições do país em que nasceram, mas também pelo estado dos países vizinhos e de todo o mundo. Em todas as nações produzem-se modificações sociais com grande rapidez. Em quase toda a parte se põe em causa o valor do regime político.

As grandes democracias enfrentam problemas temíveis que dizem respeito à sua própria existência e cuja solução é urgente. E apercebemo-nos de que, apesar das grandes esperanças que a humanidade depositou na civilização moderna, esta civilização não foi capaz de desenvolver homens suficientemente inteligentes e audaciosos para a dirigirem na via perigosa por que a enveredou. Os seres humanos não cresceram tanto como as instituições criadas pelo seu cérebro. São sobretudo a fraqueza intelectual e moral dos chefes e a sua ignorância que põem em perigo a nossa civilização.

Alexis Carrel, in 'O Homem esse Desconhecido'

A Profundidade da Nossa Separação

O homem está dividido dentro de si. A vida volta-se contra si própria através da agressão, do ódio e do desespero. Estamos habituados a condenar o amor-próprio; mas aquilo que pretendemos realmente condenar é o oposto do amor-próprio. É aquela mistura de egoísmo e aversão por nós próprios que permanentemente nos persegue, que nos impede de amar os outros e que nos proíbe de nos perdermos no amor com que somos eternamente amados. Aquele que é capaz de se amar a si próprio é capaz de amar os outros; aquele que aprendeu a superar o desprezo por si próprio superou o seu desprezo pelos outros.

Mas a profundidade da nossa separação reside, justamente, no facto de não sermos capazes de um grande amor, clemente e divino, por nós próprios. Pelo contrário, existe em cada um de nós um instinto de autodestruição, tão forte como o nosso instinto de autopreservação. Na nossa tendência para maltratar e destruir os outros existe uma tendência, visível ou oculta, para nos maltratarmos e nos destruirmos.

A crueldade para com os outros é sempre também crueldade para com nós próprios. Deste modo, o estado de toda a nossa vida é o distanciamento dos outros e de nós próprios, porque estamos distanciados da Razão do nosso ser, porque estamos distanciados da origem e do objetivo da nossa vida. E não sabemos de onde viemos nem para onde vamos. Estamos separados do mistério, da profundidade e da grandeza da nossa existência. Ouvimos a voz dessa profundidade, mas os nossos ouvidos estão fechados. Sentimos que algo radical, total e incondicional nos é exigido; mas rebelamo-nos contra isso, tentamos fugir à sua urgência e não aceitamos a sua promessa.

Paul Tillich, in 'És Aceite'
Fonte: http://assisprocura.blogspot.com.br/

Um dia depois

por Carla Hilário Quevedo, em 09.03.15
CHQ144.JPG
App Hipstamatic com lente Jane e rolo Ina's 1969

Ontem foi comemorado o Dia Internacional da Mulher. Um dia depois nada mudou. Só o que era superficial. Hoje já não há descontos e “mimos” nas lojas para as felizes contempladas com doses mais elevadas de estrogénio do que de testosterona. Hoje ninguém me dará os parabéns por ter uma vagina. Talvez por ser muito estúpido felicitar alguém por ser como nasceu: rapariga ou rapaz, gay ou hetero, branco ou preto; e não por ter feito o que fez: inventar o wi-fi, como fez a actriz Hedy Lamarr; combater ferozmente pelo direito ao voto, como fez a extraordinária família Pankhurst, mãe e filhas; comer a maçã que nos expulsaria do sítio onde a humanidade não poderia evoluir, como fez Eva. Mas se é muito estúpido felicitar o próximo por ser o que é, porque é que o Dia da Mulher continua a existir? 

Durante séculos, não se esperou grande coisa do sexo feminino. Durante séculos, aos olhos da lei, as mulheres não foram diferentes de crianças. Durante séculos, as mulheres não falaram, não contaram histórias, não existiram a não ser através do que os homens contaram sobre elas. Ou seja, durante séculos o poder mais relevante esteve nas mãos dos homens. Até hoje me surpreende a resignação das mulheres face à falta de respeito e à injustiça.

Vejamos um exemplo de falta de respeito e injustiça. Nos países ditos civilizados, como Portugal, as mulheres com qualificações, horas de trabalho e a exercer as mesmas funções do que os homens ganham em média menos 18% do que eles. O dia de ontem revelou números e gráficos acerca do que dias antes tinha sido noticiado: vai demorar 80 anos até que as mulheres atinjam a igualdade salarial. Não se importa de repetir? Mas antes de falarmos desta previsão astrológica, especulemos sobre as razões que levam os empregadores a pagar menos às mulheres do que aos homens. Não se julgue que se trata de um problema que afecta sobretudo a classe operária. Segundo dados compilados pela Pordata, (as poucas) mulheres em cargos de topo nas empresas ganham em média menos 30% do que homens nas mesmas funções.

Em que argumentos se baseiam para sustentar esta desigualdade? Além do descaramento, digo. Os motivos podem estar relacionados com a maternidade. Afinal de contas, as mulheres têm filhos, por isso é melhor “transferir” uma parte do salário para quando vier a licença de maternidade. Se a razão para pagar menos a uma mulher for esta, então quer dizer que as mulheres pagam para poderem trabalhar e ter filhos. Uma vez que dar à luz é uma capacidade exclusivamente feminina, a mulher é penalizada por ser mulher.

Acontece que esta “penalização” parece não ser suficiente. Além de correrem o risco de serem despedidas por engravidarem, correm também o risco de não encontrarem o seu local de trabalho quando a licença de maternidade terminar. Em suma, pagam com a redução salarial e mesmo assim não há garantias.

Um dia depois nada mudou. Dizem-nos aliás que vai demorar 80 anos a mudar. Porque não 140? Ou porque não três? Não batam à porta. Deitem-na abaixo.

Publicado na edição de hoje do i.
Fonte: http://bomba-inteligente.blogs.sapo.pt/

sexta-feira, 6 de março de 2015

Os paralelos do ontem e do hoje no ritual do amar

Simone Bittencourt Shauy

Os processos do conhecer, conviver e amar são precisos deixar marinar, porque talvez desta forma a gente possa construir relacionamentos mais gratificantes, significativos e duradouros.

amor7 klimt.jpg

No passado, para viver o amor, era preciso seguir o compasso da espera. Não havia telefone, computador, smartphones, carro. Trocavam-se cartas e os encontros aconteciam com hora marcada e em público. As despedidas ao pé do portão nunca depois das 10 da noite.
Para o rapaz namorar a moça, era preciso pedir permissão para o pai da pretendente. O namoro em casa era supervisionado. Cada passo de proximidade exigia mais do cumprimento do ritual da espera, levar para o baile, segurar na mão, conversar no banco da praça, conquistar o ficar junto um pouquinho mais a cada encontro .
As descobertas aconteciam em conta-gotas. Se vivia a saudade e a surpresa com intensidade. O amor se desenvolvia em capítulos. Era tudo um processo ritualístico. Hoje tudo isto parece tão arcaico, ultrapassado, mas os relacionamentos de outrora talvez tivessem mais substância em certos aspectos. Quem sabe, naqueles tempos, o amor fosse mais valorizado porque tinha que enfrentar obstáculos para ser vivido.

amor7 norman rockwell.jpg

Hoje não se vive a surpresa ou a saudade. O sexo é livre. Pode-se tudo, mas de convivência substancial pouco se aprende. Tudo parece tão efêmero, oco, volátil, insincero. Relacionamentos descartáveis como copos plásticos depois de usados.
Hoje se beija um, amanhã outro. Experimenta-se de tudo, mas não há muito compromisso com nada. O amor virou um jogo de conveniência sem quase ou nenhuma realmente profunda vivência. Excesso de permissividade pode bem levar fatalmente a falta de parâmetros. Fica difícil situar o valor das coisas que a gente vive. Há tanta gente junta separada. Há tanta gente engajada socialmente em completa solidão.

amor1.jpg

Não acho que a gente tenha que voltar para trás para viver o amor de fato porque, também no passado, nem tudo era o ideal. Talvez o importante seja aprender a viver o ritual do conhecer, aproximar, entender, ouvir semelhante ao modo como se prepara um prato, deixa-se marinando. E é neste marinar que o âmago de cada um se revela para o outro. Isso demanda tempo e interesse genuíno, o importar-se! Existe o compasso do conviver, do conversar, do desenvolver uma amizade, um bem querer substancial. Quando tudo acontece rápido demais, o aprendizado sobre o outro é atropelado. O outro pode até ser considerado íntimo sexualmente, mas ainda é, em muitos quesitos, um desconhecido. E é este atropelamento de etapas que leva um relacionamento a desmoronar-se como um castelo de areia, porque depois do sexo, pode não haver mais nada para preencher o momento de um com o outro. 

amor3.jpg

Faço um paralelo de um relacionamento sem muita essência, com uma multidão que, em desespero, corre para registrar os selfies. Tornou-se quase que uma compulsão ter uma foto de tudo. Mas, no fim do dia, as imagens já estão velhas e muito ou nada do fotografado foi vivido de fato. Felicidade fotografada pelas lentes da camera, mas que não se revelou internamente, emocionalmente. É o desencontro do virtual com o real. A felicidade daquele instante, no próximo já foi embora, evaporou-se com o estouro de um fash ou fogos de artifício que, depois que explodem, perdem o brilho.

quinta-feira, 5 de março de 2015

O Papa que diz o que a esquerda já não lembra de dizer


3 de março de 2015 | 17:15 Autor: Fernando Brito
papa
Tudo o que está no post anterior está aqui neste, e muito mais.
É a cabeça privilegiada de Mauro Santayanna descrevendo a razão profunda das reações à fala do Papa Francisco sobre o dinheiro ser “o estrume do diabo”.
Diante de uma esquerda amorfa e imobilizada por uma covardia imensa em dizer o que pensa, com todas as letras, para que, “republicana” , nutra a esperança de que os salões não lhes torça o nariz, foi preciso que um Papa, um homem de tradição simples e discreta, tomasse o chicote contra os fariseus.
Santayanna descreve com talento a batalha ideológica que a nossa esquerda – impregnada pelo neoliberalismo até a medula e tolamente dócil à ideia do “fim da história” e da supremacia do “mercado” sobre o homem abandonou.
Não somos uma “geléia geral”, todos iguais.
E se devemos saber conviver e cooperar, jamais devemos deixar de mostrar o que somos, o que sentimos e porque dedicamos nossas vidas á política.

O Papa e o estrume do Diabo

Mauro Santayanna
O Papa Francisco está sendo amplamente atacado na internet, por ter dito, em cerimônia, em Roma, que “o dinheiro é o estrume do diabo” e que quando se torna um ídolo “ele comanda as escolhas do homem”.
Acima e abaixo da cintura, houve de tudo.
De adjetivos como comunista, “argentino hipócrita”, demagogo e outros aqui impublicáveis, a sugestões de que ele se mude para uma favela, e – a campeã de todas – que distribua para os pobres o dinheiro do Vaticano.
É cedo, historicamente, para que se conheça bem este novo papa, mas, pelo que se tem visto até agora, não se pode duvidar de que daria o dinheiro do Vaticano aos pobres, tivesse poder para isso, não fosse a Igreja que herdou dominada por nababos conservadores colocados lá pelos dois pontífices anteriores, e ele estivesse certo de que essa decisão fosse resolver, definitivamente, a questão da desigualdade e da pobreza em nosso mundo. Inteligente, o Papa sabe que a raiz da miséria e da injustiça não está na falta de dinheiro mas na falta de vergonha, de certa minoria que possui muito, muitíssimo, em um planeta em que centenas de milhões de pessoas ainda vivem com menos de dois dólares por dia.
E que essa situação se deve, em grande parte, justamente à idolatria cada vez maior pelo dinheiro, o estrume do Bezerro de Ouro que estende a sombra de seus cornos sobre a planície nua, os precipícios e falésias do destino humano.
Em nossa época, deixamos de honrar pai e mãe, de praticar a solidariedade com os mais pobres, com os doentes, com os discriminados e os excluídos, para nos entregar ao hedonismo.
Os pais transmitem aos filhos, como primeira lição e maior objetivo na existência, a necessidade não de sentir, ou de compreender o mundo e a trajetória mágica da vida – presente maior que recebemos de Deus quando nascemos – mas, sim, a de ganhar e acumular dinheiro a qualquer preço.
Escolhe-se a escola do filho, não pela abordagem filosófica, humanística, às vezes nem mesmo técnica ou científica, do tipo de ensino, mas pelo objetivo de entrar em uma universidade para fazer um curso que dê grana, com o objetivo de fazer um concurso que dê grana, estabelecendo, no processo, uma “rede” de amigos que têm, ou provavelmente terão grana.
Favorecendo, realimentando, uma cultura voltada para o aprendizado e o compartilhamento de símbolos de status fugazes e vazios, que vão do último tipo de smartphone ao nome do modelo do carro do papai e da roupa e do tênis que se está usando.
O que determina a profissão, o que se quer fazer na vida, é o dinheiro.
Escolhe-se a carreira pública, ou a política, majoritariamente, pelo poder e pelas benesses, mas, principalmente, pelo dinheiro.
Montam-se igrejas e seitas, também pelo poder, mas, sobretudo, pelo dinheiro.
Até mesmo na periferia, assalta-se, mata-se, se morre ou se vive – como rezam as letras dos funks de batalha ou de ostentação – pelo dinheiro.
Para os mais radicais, não basta colocar-se ao lado do capital, apenas como um praticante obtuso e entusiástico dessa insensata e permanente “vida loca”.
É necessário reverenciar aberta e sarcasticamente o egoísmo, antes da solidariedade, a cobiça, antes da construção do espírito, o prazer, antes da sabedoria.
É preciso defender o dindin – surgido para facilitar a simples troca de mercadorias – como símbolo e bandeira de uma ideologia clara, que se baseia na apologia da competição individual desenfreada e grosseira, e de um “vale tudo” desprovido pudor e de caráter, como forma de se alcançar riqueza e glória, disfarçado de eufemismos que possam ir além do capitalismo, como é o caso, do que está mais na moda agora, o da “meritocracia”.
Segundo a crença nascida da deturpação do termo, que atrai, como um imã, cada vez mais brasileiros, alguns merecem, por sua “competência”, viver, se divertir, ganhar dinheiro. Enquanto outros não deveriam sequer ter nascido – já que estão aqui apenas para atrapalhar o andamento da vida e do trânsito. Melhor, claro, se não existissem – ou que o fizessem apenas enquanto ainda se precise – ao custo odioso de quase 30 dólares por dia – de uma faxineira ou de um ajudante de pedreiro.
O capitalismo está se transformando em ideologia. Só falta que alguém coloque o cifrão no lugar da suástica e comece a usá-lo em estandartes, colarinhos e braçadeiras, e que em nome dele se exterminem os mais pobres, ou ao menos os mais desnecessários e incômodos, queimando-os, como polutos cordeiros, em fornos de novos campos de extermínio.
Disputa-se e proclama-se o direito de ter mais, muito mais que o outro, de receber de herança mais que o outro, de legar mais que o outro, de viver mais que o outro, de gastar mais que o outro, e, sobretudo, de ostentar, descaradamente, mais que o outro. Mesmo que, para isso, se tenha de aprender dos pais e ensinar aos filhos, a se acostumar a pisar no outro, da forma mais impiedosa e covarde. Principalmente, quando o outro for mais “fraco”, “diverso” ou pensar de forma diferente de uma matilha malévola e ignara, ressentida antes e depois do sucesso e da fortuna, que se dedica à prática de uma espécie de bullying que durará a vida inteira, até que a sombra do fim se aproxime, para a definitiva pesagem do coração de cada um, como nos lembram os antigos papiros, à sombra de Maat e de Osíris.
A reação conservadora à ascensão de Francisco, depois do aparelhamento, durante os dois papados anteriores, da Igreja Apostólica e Romana por clérigos fascistas, e da renúncia de um papa envolvido indiretamente com vários escândalos, que comandou com crueldade e mão de ferro a “caça às bruxas” ocorrida dentro da Igreja nesse período, se dá também nos púlpitos brasileiros.
Não podendo atacar frontalmente um pontífice que diz que o mundo não é feito, exclusivamente, para os ricos, religiosos que progrediram na carreira nos últimos 20 anos, e que se esqueceram de Jesus no Templo e do Cristo dos mendigos, dos leprosos, dos aleijados, dos injustiçados, proferem seu ódio fazendo política nas missas – o que sempre condenaram nos padres adeptos da Teologia da Libertação – ressuscitando o velho e baboso discurso de triste memória, que ajudou a sustentar o golpismo em 1964.
O ideal dos novos sacerdotes e fiéis do Bezerro de Ouro é o de um futuro sem pobres, não para que diminua a desigualdade e aumente a dignidade humana, mas, sim, a contestação aos seus privilégios.
Em 1996, em um livro profético – “L´Horreur Economique”, “O Horror Econômico” – a jornalista, escritora e ensaísta francesa, Viviane Forrester, morta em 2013, já alertava, na apresentação da obra, para o surgimento desse mundo, dizendo que estamos no limiar de uma nova forma de civilização, na qual apenas uma pequena parte da população terrestre encontrará função e emprego.
“A extinção do trabalho parece um simples eclipse – afirmou então Forrester – quando, na verdade, pela primeira vez na História, o conjunto formado por todos os seres humanos é cada vez menos necessário para o pequeno número de pessoas que manipula a economia e detêm o poder político…
dando a entender que diante do fato de não ser mais “explorável”, a “massa” e quem a compõe só pode temer, e perguntando-se se depois da exploração, virá a exclusão, e, se, depois da exclusão, só restará a eliminação dos mais pobres, no futuro.
O culto ao Bezerro de Ouro, ao dinheiro e ao hedonismo está nos conduzindo para um mundo em que a tecnologia tornará o mais fraco teoricamente desnecessário.
A defesa dessa tese, assim como de outras que são importantes para a implementação paulatina desse processo, será alcançada por meio da implantação de uma espécie de pensamento único, estabelecido pelo consumo de um mesmo conteúdo, produzido e distribuído, majoritariamente, pela mesma matriz capitalista e ocidental, como já ocorre hoje com os filmes, séries e programas e os mesmos canais norte-americanos de tv a cabo, em que apenas o idioma varia, que podem ser vistos com um simples apertar de botão do controle remoto, nos mesmos quartos de hotel – independente do país em que se estiver – em qualquer cidade do mundo.
As notícias virão também das mesmas matrizes, em canais como a CNN, a Fox e a Bloomberg, e das mesmas agências de notícias, e serão distribuídas pelos mesmos grandes grupos de mídia, controlados por um reduzido grupo de famílias, em todo o mundo, forjando o tipo de unanimidade estúpida que já está se tornando endêmica em países nos quais – a exemplo do nosso – impera o analfabetismo político.
E o controle da origem da informação, da sua transmissão, e, sobretudo dos cidadãos, continuará a ser feito, cada vez mais, pelo mesmo MINIVER, o Ministério da Verdade, de que nos falou George Orwell, em seu livro “1984”, estabelecido primariamente pelos Estados Unidos, por meio da internet, a gigantesca rede que já alcança quase a metade das residências do planeta, e de seus mecanismos de monitoração permanente, como a NSA e outras agências de espionagem, seus backbones, satélites, e as grandes empresas norte-americanas da área, e a computação em nuvem, identificando rapidamente qualquer um que possa ameaçar a sobrevivência do Sistema.
O mundo do Bezerro de Ouro será, então – como sonham ardentemente alguns – um mundo perfeito, onde os pobres, os contestadores, os utópicos – sempre que surgirem – serão caçados a pauladas e tratados a chicotadas, e, finalmente, perecerão, contemplando o céu, nos lugares mais altos, para que todos vejam, e sirva de exemplo, como aconteceu com um certo nazareno chamado Jesus Cristo, há 2.000 anos.
Fonte:http://tijolaco.com.br/blog/?p=25102