terça-feira, 31 de agosto de 2010

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Allow mulheres!

PRETINHO BÁSICO


Você sabia que até o inicio do século XX as mulheres não usavam roupas pretas no dia a dia?

Como elas conseguiam sobreviver sem essa corzinha básica é um mistério. Mas a verdade é que o preto era uma cor reservada ao luto e ao guarda-roupa masculino.

A maior responsável por inserir esta cor no armário foi Coco Chanel. A estilista acreditava que a mulher tinha que se sentir confortável em suas roupas e que a feminilidade transcendia cores ou silhuetas. Então lá foi ela, libertar a mulherada das amarras do corpete, desafiar a sociedade com calças e terninhos e cores super básicas. E agora, já no século XXI não podemos mais viver sem o preto.

Há quem acredite que preto é bom porque faz parecer mais magra, ou que preto é ótimo, pois combina com tudo e é elegante. Mas a verdade é que o pretinho básico é tudo isso e pode ser ainda mais.


Então, me propus um desafio para saber o quão básico pode ser nosso pretinho! Montei várias produções, para vários tipos de ocasiões, todas com o mesmo vestido.

Será que dá certo?

Casual - Look montado a partir de peças básicas, para situações informais. Passeios com a família, almoços, happy hour.

Casual chic - Ideal para eventos que não exigem código de vestimenta, mas necessite de um toque de elegância para jantares e festas
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Balada - Em casas noturnas você pode investir mais em uma produção mais pesada, saltos mais altos, brilho, cores e acessórios.

Escritório - O vestido preto básico é com certeza peça chave de toda mulher que trabalha. Quando combinado com peças mais formais não perde suas características de feminilidade.

Fashionista - Mistura referências de várias décadas e de várias origens, mix de estampas e cores inusitadas. O look fashionista imprime várias facetas da personalidade de uma pessoa, sem medo de assumir riscos.


Como escolher o seu pretinho básico

Conheça e valorize suas curvas. Use o vestido para acentuar seus melhores traços, como ombros, decote, cintura, quadril ou pernas. Preste atenção no comprimento e garanta seu vestido apropriado para todo tipo de ocasião.

Como o vestido é básico, para incrementar a produção use e abuse de texturas e estampas nas peças que o sobrepõe, como as camisas e jaquetas.

Fonte: http://bbel.uol.com.br/beleza-e-moda/post/pretinho-basico.aspx

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Um doce olhar

Vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim 2010, o filme turco "Um Doce Olhar", que estreia em São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Salvador, é a terceira e última parte de uma trilogia assinada pelo diretor Semih Kapanoglu.

O título original do filme, "Bal", quer dizer "Mel". Os outros dois longas são "Yumurta" ("Ovo"), de 2007, e "Sut", ("Leite"), de 2008 -- ambos inéditos em circuito comercial no Brasil, mas exibidos em festivais, como a Mostra Internacional de São Paulo.

Cada um dos filmes retrata uma fase na vida de um mesmo personagem, Yusuf, o que não quer dizer que sejam, necessariamente, a mesma pessoa.

Em "Ovo" ele é um homem maduro, um poeta de pouco sucesso, dono de um sebo que volta à cidade natal para o funeral de sua mãe. Em "Leite", está no final da adolescência, não consegue entrar numa universidade, sonha em escrever poesias, e não é aceito no serviço militar.

Cada filme pode ser visto de forma independente, pois se encerra em si mesmo. Mas, obviamente, a trilogia completa, um retrato às avessas de um homem, da maturidade à infância, traz mais camadas de compreensão sobre o personagem.

Em "Um Doce Olhar", o pequeno Yusuf, de 6 anos, mora numa província cercada de montanhas no norte da Turquia. O pai, Yakup (Erdal Besikcioglu), é apicultor, e a mãe, Zehra (Tulin Ozen), plantadora de chá.

SÃO PAULO (Reuters)

Fonte:http://omundocomoelee.blogspot.com/

Esse fim de semana vou desertar das chateações nossas de todos os dias. Levo alguns filmes para ver depois que a algazarra da meninada der uma pausa. Ou seja, quando o bando sair para a Festa da Estação. Vou levar crochê, filmes e cobertor. Dar uma remexida nas minhas plantinhas que devem estar feinhas de falta de afeto e cuidado. Botar terra nova, aguar meu pequenino jardim. Como andarão minhas orquídeas silvestres, papoulas, bouganvilles, lanternas chinesas, jasmins e um irrequieto rabo de gato que resiste a tudo. Pitanga, acerola, laranja e palmeira. Parece que falo de uma roça mas é só um pedacinho de jardim. Ainda tenho um ficus benjamin e duas mudas de ipê amarelo. Acho que só plantando na minha imaginação porque o jardim não tem mais espaço.
Amanhã vou ao trabalho. De lá, ao centrão garimpar algumas coisas. O centrão vale por mil sessões de descarrego. Depois, vou buscar o filme que pedi na Livraria Cultura e deve ter chegado hoje. Chama-se O edifício yacoubien, é um filme egípcio. Vi um texto sobre ele e pirei. É esse! Vou atrás. Será que vou gostar? Nem sei, a vida me entra pelos sentidos e, de repente, foi amor à primeira vista e, como tal, inevitavelmente sujeito às surpresas. Espero que boas. Aproveito e vejo se e quando vai sair o dvd desse filme turco. Não sou cinéfila, não entendo p. nenhuma de cinema mas os títulos e a música me inspiram.
Buenas noches.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Fotos de casamento

Enviada por Flávio Lúcio

Mil perdões


Gente querida

Estou em débito com todos. Tô ausente até de mim. Beijo grande e fico marcando presença com algum post rapidinho enquanto a maré tá braba. Dias mais calmos virão. E espero que cheguem logo. Com saudade de vocês e da rotina.
ML

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

GPS na calcinha


Cinto da castidade: versão século XXI
Vi no blog Cá entre nós

Todo dia é dia de poesia


Canto de Oxalufã
Toquinho
Composição: Toquinho / Vinícius de Moraes


Você que sabe demais,
Meu pai mandou lhe dizer
Que o tempo tudo desfaz.
A morte nunca estudou
E a vida não sabe ler.


O-ba-bá
Não dá pra ninguém saber
Por que é que há
Quem lê e não sabe amar,
Quem ama e não sabe ler.


Você que sabe demais,
Mas que não sabe viver,
Responda se for capaz:
Da vida, quem sabe lá?
Da morte, quem quer saber?


Fonte: http://letras.terra.com.br/toquinho/87187/

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

TÁ SEM CANDIDATO?



VI NO JACARÉ BANGUELA

Quase negros, quase brancos

continuação Caderno Especial JC/Recife

PROSTITUTAS, QUASE LIVRES

A maconha misturada com crack tornava Luciana, tinha apenas 15 anos, mais à vontade para transar por dinheiro. Aí podia comprar roupa sem ter que esperar o Natal

Antes de falarmos sobre quanto Luciana ganhava por programa e com a venda de crack, vamos conhecer Rosalina e Eufrasina. Os nomes são um tanto improváveis para este novo mundo, mas não em 1879, ano em que as duas irmãs menores chegaram sozinhas ao Rio de Janeiro. Tiveram sorte relativa: foram logo encaminhadas para a polícia, mas o primeiro-tenente Guilherme Waddington, comandante do barco Nacional Bahia, já havia levantado 1.232 réis para alforriá-las. Ambas eram brancas e estavam prestes a se deitar em troca de dinheiro. Acabaram virando notícia publicada no dia 8 de abril no jornal carioca O Cruzeiro: (...)“Foram embarcadas na Paraíba por um indivíduo de nome José Rufino, que as ditas menores dizem ser pai delas. Estas raparigas vinham para esta corte a fim de serem vendidas a um indivíduo que compra escravas moças para entregá-las à prostituição”.

“Às vezes negrinhas de dez, doze anos já estavam na rua se oferecendo a marinheiros enormes, grangazas ruivos que desembarcavam nos veleiros ingleses e franceses com fome doida de mulher. E toda esta super excitação de gigantes louros, bestiais, descarregava-se sobre molequinhas; e além da super excitação, a síflis, as doenças do mundo, as quatro partes do mundo, as podridões internacionais do sangue” (Gilberto Freyre, Casa grande e senzala)

Já falaremos sobre como Luciana, dos 15 aos 18 dormindo com homem por uns R$ 15, se envolveu com o tráfico e teve que se esconder para não levar tiro. Antes é importante saber que a chegada de Rosalina e Eufrasina flagra um aspecto que torna nosso novo mundo não tão novo assim: a presença das brancas menores de idade no mundo da prostituição. A notícia atesta que mesmo antes da abolição as garotas de pele clara já começavam a competir com as de pele escura em um mercado em que valia até mesmo ser vendida pelo próprio pai. É por isso que a presença de “três pardinhas” também a bordo do Nacional Bahia não rendeu mais do que uma linha. O mercado do sexo já era algo bastante comum no País, e eram justamente negras (ou mestiças) que desempenhavam tal papel na colônia. Grande parte trabalhava a mando de seus senhores e senhoras, que concediam vales noturnos de liberdade e decoravam as pretas com joias caras para que elas arrumassem clientes. O lucro era repassado para os patrões no início da manhã.

Luciana, agora vamos falar dela, está mais para as pardinhas do que para as irmãs brancas da Paraíba. Mas o seu pardo tão esmaecido, duas gotas de preto na pele branca, torna a menina clara e distinta em meio ao batalhão de menores negras que se prostituem no Brasil. Luciana se vê e é vista como branca, é exemplo de como no País a cor é antes de tudo uma construção. Como se sabe, ela traficou droga, se prostituiu e se escondeu para não ser morta. Mas não toca em nenhum dos três assuntos quando passa a falar de si mesma tendo como pano de fundo uma parede descascada. Vai para longe, chega aos 7 anos de idade. Foi quando um conhecido da família, moram todos no Curado, tocou por baixo da sua calcinha. Foi seu primeiro beijo. Ninguém pergunta, mas ela fala. História sem beleza que ela nunca contou aos pais, mais fácil contar para alguém que ela conhece há dez minutos. Nessa época, a mãe começou a definhar, ficou doente e compraram uma cadeira de rodas. Foi quando as paredes do apartamento começaram a descascar. “Eu fui feliz até ali.”

No dia em que Luciana tirou um short curto da gaveta e foi para a rua, o pai não estava em casa, a mãe estava lá dentro sentada na cadeira de rodas. Pegou um ônibus e seguiu para o Ibura, ali podia contar com uma pobreza equivalente ao bairro onde nasceu. Era o mesmo que estar em casa. Ia fazer 15 anos ainda quando sentou em um bar, uma amiga preta ao lado. Algumas horas depois havia um homem com cerca de 50 anos em cima dela. Quando ele foi embora e deixou o dinheiro (deu R$ 25, ela dividiu com a amiga), ela ficou feliz porque se sentiu independente. Não precisava esperar até o Natal para comprar uma roupa.

Outra coisa legal do dinheiro era a farra, todos bebiam, fumavam um melado e riam, riam. Maconha com crack era “o pipoco”. É claro que ela não ia voltar para a casa para ver a mãe sem uma perna, sentada na cadeira de rodas. Todas as vezes que chegava em casa de manhã escutava-a dizer: “Puta”. Outros homens subiram em cima dela. No total, ficava só com R$ 80 por mês. “É porque não era todo dia não. E eu gastava tudo, arrumava confusão. Só não queria voltar para casa.” Era porque, além de “puta”, a quase Rosalina apanhava. Apanhava muito. “Mas eu merecia.”

Numa das farras, Luciana, garota magra que nunca colecionou figurinhas de chiclete ou da Hello Kitty, se apaixonou. Estava doidinha, foi cerveja, aguardente e um melado, sentou na escadaria da boate (da “dança”, boate é meio metido) e vomitou. Ele não deixou ninguém chegar junto. Pode ser que tenha sido sentimento de culpa, porque foi ele que vendeu o cigarro para ela. Dormiram juntos e ele (talvez seu nome seja Raul, ou Cláudio, ou Luiz, ou José) não subiu nela. É claro que ela o ajudou na primeira vez em que ele pediu. Ajudou todas as vezes, ficou conhecendo várias bocas de fumo da Zona Sul. Era só sair com a mochila e vender o melado ou o crack. Era boa de venda, o chefe dele quis até conhecer a menina, elogiou. As paredes do apartamento no Curado continuavam descascando, mas agora Luciana tinha um quase amor, “porque era mais cama e trabalho mesmo”, e ainda recebia elogio. O “puta” daquela mulher triste da cadeira de rodas nem importava tanto. Agora ela só dormia por dinheiro quando brigava com o amor (o quase só valia para ele), sabia quando havia outra. Aí transava mesmo, ganhava dinheiro e pronto. Ia fazer 18 anos quando chegou um rapaz conhecido dizendo: “Se eu fosse você, sairia daqui. Ele mesmo já foi”. Assim, sem ligação ou SMS, ela soube: o namorado sumiu com a droga e o dinheiro do patrão. Estavam procurando por ele e, consequentemente, por ela.

Se o celular amarelo que ela comprou funcionasse direito, teria ligado para ele lá de Vitória, foi parar em outra cidade sem saber muito bem o que estava acontecendo. Passou cinco meses na casa de uma amiga “da farra”. Recebia notícias: ele não voltou ao Curado, dois rapazes numa moto procuraram por ela uma vez, em outra foi uma moça alta e loura. Chegavam em sua casa, perguntavam, a mãe disse a verdade: “Eu não sei”. Luciana estava tentando fazer o celular amarelo funcionar quando soube que Nádia apareceu morta. Sabia que às vezes ela andava com seu quase amor, chegou a discutir com os dois. Mas ficou com pena quando acharam a menina nua perto da BR (algo novo no novo mundo: Nádia era pardinha, mas seu nome saiu no jornal). O policial que deu entrevista falou assim: “Envolvida com o tráfico local”.

MATAR O BEBÊ

A mãe estava no médico no dia em que Luciana voltou para casa. O pai, como sempre, longe. Não sentia mais medo: o namorado estava preso e “os dois caras de moto” que circulavam procurando por ela há tempos não apareciam. Desde então, só sabe que o ex está morando em um dos pavilhões do presídio Aníbal Bruno, foi indiciado por tráfico, roubo e assassinato. Tem saudade. “Eu gosto dele, no começo do namoro ele me abraçava, mas só no começo.” Não consegue mais se aproximar da turma da farra porque a liberdade ficou cara demais (sente saudade também). O pior foi quando uma amiga de muito tempo foi visitada por um dos caras da moto. Queria saber de Luciana. “Ela achou que iam entrar na casa e matar o bebê dela, me disse que da próxima vez ia escondê-lo no armário. Eu vi que não tinha mais jeito, imagina o bichinho dentro do armário. Podiam matar todo mundo, eu, ela, o marido. Mas o bebê não. Eu amo muito o bebê.”

Ela desce três escadas até o térreo, a família quis morar no terceiro andar de um dos prédios do conjunto habitacional porque era “mais chique”. Vai comprar uma Coca-Cola dois litros para oferecer às visitas. Fez pipoca também. Não precisa, não precisa, mas ela insiste e volta com o garrafão preto gelado, serve em copos de plástico. O refrigerante soa como o único artigo de luxo dentro do apartamento descascado, a única coisa realmente nova, fresca, sem nada que lembre o tempo em que apanhava, o tempo (foi ontem) em que se prostituía, o tempo em que Raul, ou Cláudio, ou Luiz, ou José, a abraçava. Ela coloca a garrafa na estante, a cortina rosa que separa a sala dos quartos lá dentro voa um pouco e dá para ver parte de uma cadeira de rodas. “Quer Coca, mãe?” Ninguém responde.

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Maioria preta: De acordo com o relatório Direitos da criança, realizado pelo Relator Especial da ONU sobre a venda de crianças, prostituição infantil e pornografia infantil, Sr. Juan Miguel Petit Addendum (2003), raça e etnicidade são determinantes de vulnerabilidade para a exploração sexual comercial de crianças e adolescentes. Mulheres e crianças traficadas também são, principalmente, de origem negra (afro-brasileiras).

Abuso sexual: O mesmo relatório mostra que o abuso sexual geralmente induz à exploração sexual. Estatísticas da Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência (Abrapia) indicam que 58% dos casos de abuso sexual ocorreram dentro da família, geralmente cometidos pelo pai ou padrasto. Em muitos casos, o abusador era conhecido da vítima.

Pernambuco no topo: Em 2005, a Unicef divulgou que a prostituição infantil está presente em cerca de 16,88% dos municípios brasileiros (todas as capitais estão na lista). As cidades o interior (com população entre 20 e 100 mil habitantes) são aquelas cujos índices são mais altos. O Nordeste foi a região líder no ranking vergonhoso, com 31,8% das cidades citadas. Pernambuco lidervaa o ranking nordestino com setenta cidades onde menores se prostituem. A entidade divulgou no ano passado que 150 milhões de meninas e 73 milhões de meninos menores de 18 anos são vítimas de exploração sexual no mundo.

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SERVIÇO
Fonte: Dicionário da escravidão negra no Brasil (Clóvis Moura).



AMÉM, É NOSSA SENHORA


A cada sete anos, a Mãe de Deus desce até a terra para comandar, encarnada na ialorixá Estelita, 103 anos, a festa da Irmandade da Boa Morte, na Bahia

Nossa Senhora mora numa casa pequena, em uma ladeira de Cachoeira, Recôncavo Baiano, tem 103 anos e é devota de Obaluaê. Usa saias de renda belíssimas, de outros panos, brilhosos, também. Uma é bordada, tecido comprado em São Paulo, tem mais de 30 anos. Nossa Senhora gosta de samba de roda e teve 12 filhos, todos criados no mesmo lar onde ela mantém um terreiro de candomblé. De manhã, costuma comer “um pratão de mingau”. Quando era moça, tinha tabuleiro, vendia doce e acarajé. Foi nessa época que teve um sonho que mostrava que sua vida ia mudar. Aí estava Estelita, esse é o nome de Nossa Senhora, estava Estelita na rua, vendendo doce e acarajé, quando alguém perguntou: “Como é, você vai ser minha irmã ou não vai?”

Ela foi. Isso tem mais de 60 anos e há mais de 30 é a juíza Perpétua da Irmandade da Boa Morte, o mais alto cargo de um grupo criado no início do Oitocentos, em Salvador, por africanas vindas do Ketu. É a única irmandade negra do mundo formada apenas por mulheres. A cada sete anos, a juíza recebe a Santa Mãe de Jesus, encarna Aquela que agrega todas as mulheres, a Virgem que morreu em paz, sem doenças, consumida pelo amor de Deus e o desejo de estar perto do filho. É Ela, na face de Estelita, a mais antiga do grupo, quem comanda periodicamente a enorme festa realizada pela congregação durante o mês de agosto.

A presença divina no corpo frágil, uma bênção para muitos, uma blasfêmia para tantos outros, é incontestável naqueles dias. Segurando um báculo, espécie de cajado que marca seu poder, Estelita senta-se, unindo latim e iorubá, ao lado de padres durante parte da celebração católica da festa (realizada na Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário). O acessório só se materializa em suas mãos a cada sete anos, para marcar a presença sagrada: quando Nossa Senhora não é a provedora da festa, Estelita não senta entre os religiosos e seu báculo existe, mas é invisível.

Poucas recebem a imensa honra de ceder a carne e o sangue a Maria. É preciso ter angariado a confiança das irmãs e dedicar boa parte da vida a irmandade, onde hoje são aceitas mulheres com menos de 45 anos, uma regra antiga que garantia, de certa maneira, a total dedicação das irmãs (havia o entendimento de que as jovens seriam mais propensas aos prazeres mundanos, à noite, ao álcool, ao abandono da ordem). Só entram mulheres que estão ligadas a um terreiro de candomblé, que sejam filhas de um orixá relacionado à morte (Nanã, Ogum, Obaluaê), que estejam dispostas a pedir esmolas para a compra de alimentos e artigos para as celebrações, que não se importem em passar grande parte de agosto fora de casa, reunidas com as outras irmãs numa espécie de retiro.

“Queres lavar a tua alma com água santa? Queres provar o sal de Deus? Jogas fora da tua alma todos os teus pecados? Não pecarás nunca mais? Queres ser filho de Deus? Jogas fora da tua alma o Diabo?”
(iniciação católica à qual os negros africanos se submetiam quando trazidos ao Brasil)


É necessário ainda cozinhar para a verdadeira multidão que espera as comidas saídas da sede da irmandade nos dias de festa. As iniciantes passam três anos sendo testadas até poderem de fato entrar no grupo. Apenas aquelas consideradas obedientes têm sucesso. Todas, até as mais respeitadas, donas de altos postos, devem pedir permissão a Estelita sobre assuntos ligados à Boa Morte. O símbolo utilizado para definir a hierarquia é uma saia – os vestidos não são permitidos dentro da congregação. A escrivã é a dona da primeira saia; a segunda pertence à tesoureira; a provedora detém a terceira; enquanto a quarta é da procuradora-geral. A Juíza Perpétua, que só deixa o cargo quando alcança a sua boa morte, está acima das quatro saias. O sistema foi criado pelas negras do partido alto que fundaram a ordem, mulheres endinheiradas que conseguiram comprar a liberdade e, em agradecimento, fizeram votos a Santa Maria Mãe de Deus a favor da libertação dos negros. Apesar de o papel das mulheres escravas não ser ressaltado nos estudos sobre o período, elas, pioneiramente, criaram um grupo de força religiosa e também política. Elas também cuidavam dos funerais, existiam para que outros negros, como tanto havia acontecido, não morressem mais na escuridão.

Nossa Senhora, apesar de olhar por todos nós, já foi barrada na Matriz de Cachoeira: em 1989, um conflito envolvendo vaidade, luta pelo poder e preconceito fez com que a irmandade deixasse de celebrar a festa na igreja, rompendo um laço iniciado na metade do século 19, quando a ordem chegou ao município. Assim, Estelita, mesmo divina, perdeu seu lugar no altar, o canto ao lado dos padres, precisou carregar seu báculo até outro local, a Igreja Católica Apostólica Brasileira. Ela lembra até hoje do período, mas evita falar qualquer coisa para não reacender a briga. Até começa a dizer algo, mas é repreendida pelo filho Nelson, que circula pela casa enquanto ela dá entrevista. Foram anos difíceis, em que duas imagens vitais na história da congregação, Nossa Senhora da Glória e Nossa Senhora da Boa Morte (com Nossa Senhora da Assunção, completam a tríade que invoca uma única Maria), foram retidas pelo pároco da cidade. O episódio é conhecido como O Sequestro das Santas. Assim, as irmãs não puderam render suas homenagens, tampouco arrumar as imagens para a festa do ano seguinte, prática ancestral entre elas. A missa pela alma das Irmãs Falecidas, que abre a celebração na quinta; a missa de corpo presente, na sexta; e a missa da subida de Nossa Senhora aos céus, no domingo, deixaram de ter um espaço sagrado. As negras de saias, que gostariam de homenagear Aquela que as teria libertado, não passaram das escadas.


MENOS NOVE FILHOS

O pároco não contava, no entanto, com uma poderosa aliada da Nossa Senhora simbolizada no corpo de Estelita. A seu favor, estava a modernidade de um tempo no qual religião, fé e espetáculo se confundem: há quatro décadas, a festa da Boa Morte já havia deixado de ser uma celebração quase íntima, com no máximo 20 seguidores durante as procissões, para se transformar em cartão-postal institucional, evento integrante do calendário turístico baiano. A presença de turistas passou a ser incentivada, o dinheiro começou a circular, foi o tempo no qual muitos norte-americanos, principalmente negros, procuravam Cachoeira em agosto. Estelita, que não era juíza nem sagrada naquele tempo, recorda bem dos gringos comprando, a preços baixíssimos, os colares e pulseiras de ouro que adornavam as irmãs. “Eu vendi um, grande, fiquei com outro.” Quase todas as joias deixadas pelas antigas escravas foram levadas como suvenir. O dinheiro, em parte, foi usado para a manutenção da irmandade, que passou por períodos difíceis e quase chega ao fim no início dos 70 – apenas seis irmãs faziam parte da congregação. Com o apoio de medalhões baianos – o escritor Amado, o cantor Gil, o político Magalhães – elas receberam uma sede própria. Também veio a visibilidade, os jornais adorando publicar as negras repletas de colares dourados, as roupas que garantiam boas fotos. Eram imagens fortes, mais poderosas do que a do pároco, que, após 20 anos sem abrir as portas para as mulheres da Boa Morte, teve que abrir, no ano passado, passagem para Nossa Senhora, em Estelita, retornar ao altar.

Foi um alívio para a mulher que não perdeu apenas um filho, ao contrário da santa que a visita a cada sete anos. Dos doze nascidos, dez homens e duas moças, apenas três estão vivos. Também enterrou o marido que trabalhou, como ela, numa das fábricas de charutos que cercavam o Rio Paraguaçu, de onde se vê São Félix de um lado, Cachoeira do outro. “Deus já levou quase tudo.” Sentada à mesa da salinha que divide o salão do terreiro e sua cozinha, vai lembrando-se de alguns nomes. Flaviano. Melquíades. Elias. Joel. Dinalva. Cláudio. Renato. O pai dos meninos, Graciliano, que se foi há mais de 30 anos, “cortou o pé e deu a moléstia”. Cada vez que um dos meninos se ia, Estelita chamava pela Virgem que conhece tão bem. “Maria, salvadora dos mortais, orai, orai, orai por nós.” Mistura a fala com um canto, o nome dos filhos escapa à memória, mas a prece não. A filha de Obaluaê (ou Omulu), uma cruz de palha usada na Missa de Ramos dentro do jarro vermelho, sapatilha de algodão nos pés, queria ir à missa, mas o corpo não deixa mais, fala, canta e reza. “Dai-me morte salutar, ó Maria, Mãe de Deus.” Estelita vai morrer livre da escuridão.

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Coisa de preto?

O começo: O surgimento da Irmandade da Boa Morte está relacionado ao aparecimento do primeiro terreiro de Candomblé de Salvador, a Casa Branca do Engenho Velho (ou Ilê Axé Iyá Nassô Oká), por volta de 1820. Três negras africanas são aceitas como fundadoras: Adetá (ou Iya Detá), Iya Kalá e Iya Nassô. Com a urbanização de Salvador, a irmandade se enfraquece, ressurgindo em Cachoeira na metade do século 19.

Espaços religiosos: O Centro de Estudos Afro-orientais (Ceao/UFBA) dá conta de aproximadamente 1.500 templos afro-brasileiros (roças, sítios, terreiros, casas de umbanda) no Brasil.

Praticantes - Segundo o recenseamento de 2000 (IBGE), apenas 0,3% da população brasileira adulta declara-se pertencente a uma das religiões afro-brasileiras, o que corresponde a pouco mais de 470 mil seguidores. Outras pesquisas, porém, indicam valores maiores, da ordem de pelo menos o dobro das cifras encontradas pelo censo (Pierucci e Prandi, 1996). Segundo o IBGE, apenas 16,7% dos umbandistas declararam ser de cor preta. Entre os praticantes do candomblé, foram apenas 22,8%

Proibição e proteção - Durante o Estado Novo, no governo Vargas (1937-1945), o exercício do Candomblé foi proibido no País. Os terreiros ficaram subjugados à Delegacia de Jogos, Entorpecentes e Lenocínio. A decisão ia contra a Constituição de 1824, que dava garantia à liberdade de culto desde que os templos não ostentassem símbolos ou identificações em sua fachada. Atualmente, a Lei federal nº. 6.292, de 15 de dezembro de 1975, protege os terreiros de candomblé no Brasil contra qualquer tipo de alteração de sua formação material ou imaterial. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e o Instituto Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac) são os responsáveis pelo tombamento das casas. O preconceito, no entanto, se mantém. Um exemplo é a declaração do pastor fluminense Samuel Gonçalves, da Assembléia de Deus, que afirmou que uma das "três maldições" do Brasil é a religião africana (Folha de S.Paulo, 30/7/2002, p. A6). Em abril deste ano, o papa Bento XVI, durante encontro realizado com 15 bispos brasileiros, criticou o sincretismo no País.

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Fontes: Renato Silveira (O candomblé da Barroquinha: processo de constituição do primeiro terreiro baiano de keto/UFBA); Luiz Cláudio Dias Nascimento (Candomblé e Irmandade da Boa Morte); Afonso Maria Soares (Sincretismo afro-católico no Brasil: lições de um povo em exílio);Reginaldo Prandi(O Brasil com axé: candomblé e umbanda no mercado religioso); Daniella Dias (Os terreiros de candomblé na Região Metropolitana do Recife: localização geográfica e sua identificação nas fachadas, ontem e hoje); Wiltércia Silva de Souza (A “guerra santa” entre a Irmandade da Boa Morte e a Igreja Católica. Bahia – 1989/1990); Jucinete Maria Machado (Irmandade da Boa Morte - a comunicação do mistério).

Fonte:http://www2.uol.com.br/JC/sites/especial_joaquimnabuco/html/materia_04.html

Empreendedorismo sem riscos


FOLHA DE SÃO PAULO

Vou abrir minha igreja e já volto!!! -

O primeiro milagre do heliocentrismo

Eu, Claudio Angelo, editor de Ciência da Folha, e Rafael Garcia, repórter do jornal, decidimos abrir uma igreja. Com o auxílio técnico do departamento Jurídico da Folha e do escritório Rodrigues Barbosa, Mac Dowell de Figueiredo Gasparian Advogados, fizemo-lo. Precisamos apenas de R$ 418,42 em taxas e emolumentos e de cinco dias úteis (não consecutivos). É tudo muito simples. Não existem requisitos teológicos ou doutrinários para criar um culto religioso. Tampouco se exige número mínimo de fiéis.
Com o registro da Igreja Heliocêntrica do Sagrado EvangÉlio e seu CNPJ, pudemos abrir uma conta bancária na qual realizamos aplicações financeiras isentas de IR e IOF. Mas esses não são os únicos benefícios fiscais da empreitada. Nos termos do artigo 150 da Constituição, templos de qualquer culto são imunes a todos os impostos que incidam sobre o patrimônio, a renda ou os serviços relacionados com suas finalidades essenciais, as quais são definidas pelos próprios criadores. Ou seja, se levássemos a coisa adiante, poderíamos nos livrar de IPVA, IPTU, ISS, ITR e vários outros "Is" de bens colocados em nome da igreja.
Há também vantagens extratributárias. Os templos são livres para se organizarem como bem entenderem, o que inclui escolher seus sacerdotes. Uma vez ungidos, eles adquirem privilégios como a isenção do serviço militar obrigatório (já sagrei meus filhos Ian e David ministros religiosos) e direito a prisão especial. <>

FONTE: http://www1.folha.uol.com.br/folha/pensata/helioschwartsman/ult510u660688.shtml

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Quase brancos, quase negros


continuação caderno especial JC/Recife



O BRANCO TOMÁS

Em 1869, o Preto Tomaz livrou-se da pena de morte ao ser defendido por Nabuco. Em 2010, um ex-detento de pele clara tenta se livrar do preconceito e da falta de emprego

Tomás é um rapaz bonito da Zona Sul do Recife. Cresceu naquilo que costumam chamar de bairro nobre, “o metro quadrado mais caro do Estado”. Fala um pouco de italiano, estudou a língua na adolescência. Gosta de ir à praia. Tem carro. Cresceu com a família em uma quitinete localizada no bairro nobre. Sempre conviveu com os rostos felizes da família branca vista na placa que anunciava o próximo maior apartamento de seu bairro. Eram, como ele, “de boa aparência”. Estudou em escola pública, passou uma época vendendo sanduíche na praia. Hoje, remove resto de construção, vende um ou outro bem para sustentar ele, a mulher e o filho de 10 meses. Aluga o carro que tem mais de 15 anos e há tempos precisa de uma série de reparos.

Ao lado da desqualificação e da discriminação social do trabalho braçal, visto com grande desprezo, contrapunha-se o não trabalho ou o lazer aristocrático, exercido com arrogância sobre as camadas subalternas. O modo de agenciamento, de organização e de controle do trabalho constituem, desde o período colonial, um dos mais importantes eixos de dominação na sociedade brasileira e podem ser computados como uma das formas centrais para a constituição da violência estrutural que submete grandes setores da população, impelindo-os para uma permanente situação de risco social.

“...E ao ouvir o silêncio sorridente de São Paulo/ diante da chacina/111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos/ ou quase pretos, ou quase brancos, quase pretos de tão pobres/E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos...” (Gilberto Gil/Caetano Veloso)O garoto louro da beira-mar passou os últimos quatro anos em pavilhões dos presídios e centros de detenção da Região Metropolitana de Recife. Numa espécie de tour de pouquíssimo prestígio, conheceu as “quatro Alemanhas”: o Centro de Observação Criminológico e Triagem Professor Everardo Luna, o Cotel (1.887 detentos, capacidade para 311), o presídio Aníbal Bruno (3.465 presos, capacidade para 1.140) e as penitenciárias Barreto Campelo (1.383 detentos, capacidade para 1.448) e a Agroindustrial São João (1.857 presos, capacidade para 630). Portava 15 papelotes de maconha quando foi abordado por um policial militar numa manhã de quarta-feira.

No tocante à suspeita, a polícia deixou de suspeitar de indivíduos e passou a suspeitar de categorias sociais. Por exemplo, quanto a parar e revistar: é mais efetivo suspeitar de categorias consideradas mais propensas a cometer infrações (e.g. negros, irlandeses, homens jovens da classe operária) do que suspeitar de indivíduos. Joga-se o arrastão em águas de resultados mais prováveis e ricos, em vez de tentar a sorte de achar a ‘maçã no cesto’, isto é, de efetuar prisões procedendo na base de indivíduo por indivíduo (...). A velha evocação ‘prenda os suspeitos de sempre’ se transforma em ‘prenda as categorias de sempre’: suspeita individual passa a ser suspeita categórica.

Tomás, que queria se formar veterinário, foi autuado em flagrante e preso por tráfico. Era usuário desde a adolescência, comprava o produto com o dinheiro ganho na banca de frutas na qual trabalhava. Até hoje, enquanto cumpre pena em regime aberto – precisa se apresentar mensalmente na Chefia de Apoio a Egressos e Liberados (Cael) - nega a venda e conta que às vezes apenas dividia a droga com outros colegas. “Chamava o pessoal, comprava cerveja, ficava conversando, ouvindo música.” Mesmo se colocando como simples usuário, ele não se livraria de uma penalidade: a prática de dividir a maconha com os amigos, por exemplo, também se constitui em crime na legislação penal brasileira, onde a pessoa que oferece drogas, mesmo eventualmente e sem objetivo de lucro, pode ser detida (seis meses a um ano), além de pagar multa de R$ 700 a R$ 1.500 (Lei 11.343/06).

(...) A problematização do crime não apenas contribui para estender as fronteiras da criminalização, mas também para limitá-la. É o caso da existência de diferentes grupos de pressão em busca da introdução de uma série de descriminalizações. Sejam exemplarmente citados os movimentos tanto para legalizar determinadas drogas (a maconha, por exemplo) como para restringir o uso de outras (por exemplo, o tabaco). A problematização colocou, assim, a definição do crime como estando permanentemente sujeita ao debate público.

Uma vez preso, o rapaz que agora integra o exuberante número de 337 mil trabalhadores desempregados em Pernambuco (números do Dieese para março e abril de 2010) passou a sofrer um tipo de discriminação racial às avessas. Era um dos poucos brancos em meio a multidão de negros e pardos cuja liberdade foi suspensa institucionalmente. “Eu assim, galego, recebendo visita, alguma coisa devia ter.” A ideia altamente discriminatória da “boa aparência”, que historicamente o ajudaria a conquistar um emprego mais rapidamente do que um homem negro, o transformou numa espécie de “provedor” natural das celas onde viveu. No Aníbal Bruno, por exemplo, ele era o único de pele clara num espaço onde dormiam 35 presos. “Chegavam para mim e diziam: 'Tô precisando de dinheiro, arruma aí'. Se você não consegue, ganha um inimigo, corre risco. Eu não demonstrava medo, dizia que estava precisando também, que tinha mulher e filho para cuidar”. O manual de bons modos dentro do sistema carcerário começou a ser incorporado logo no início do tour pelas “Alemanhas”, iniciado no Cotel. Das 58 celas do centro de triagem, foi levado para aquela conhecida como a dos “tarados, pedófilos, doentes e noiados”. O último termo é utilizado para designar os viciados em crack. “Eu sou um vencedor, não entrei no vício da pedra.”

Com efeito, a universalidade do crime revela, ao mesmo tempo e pelo negativo, a seletividade da Justiça criminal. Se o crime é endêmico e se o mesmo se encontra em “todos os lugares”, em todas as classes sociais, aqueles que são punidos não são expressão dessa universalidade. Para Young, “(...) o sistema criminal seleciona ‘amostragens’ particulares cuja base não é aleatória, mas o próprio estereótipo”. Esta evidência contribuiu para transformar a criminologia em disciplina suspeita.

O raro “Galego” preso em Pernambuco aprendeu a negociar a sobrevivência em meio a uma enormidade de presos cujos nomes eram quase sempre genéricos (e que também tentavam se manter vivos dentro dos pavilhões): “Negão”, “Nego Fulano”, “Veado”, “Cego”, “Garanhuns”. “O defeito físico e o lugar onde nasceram servem de nome para identificar o outro lá dentro”, diz Luíza, mulher de Tomás. Curiosamente, optar pelo “defeito” no corpo e pela cidade ou Estado de onde os presos vieram serve também para localizar melhor os colegas de presídio, já que “Negão” podia ser quase qualquer um dos encarcerados. A quantidade de pretos só não é maior porque vários deles são calados na rua: dos crimes cometidos no Recife, 68% são contra jovens entre 15 a 29 anos. Desses, 92% das vítimas são jovens negros. Envolvidos ou não com drogas, estudantes, desempregados ou trabalhadores, com um histórico que pode levá-los aos pavilhões ou, ao contrário, à universidade, eles são dizimados pelo filtro da bala. Também são assassinados dentro das unidades prisionais, a exemplo de um que foi morto na frente de Luíza, domingo, dia de visita. Era um “coelho”, o cara que pega o pacote de maconha jogado dentro dos presídios para levá-lo até o preso que comercializa a erva. “O tiro entrou e saiu pela barriga.”

Como se pode observar, o Brasil tem sido um grande mestre na elaboração e execução de práticas de exclusão de sua população “plebeia”. Apesar de todos os movimentos sociais e de toda a modernização política, econômica e social que marcaram o século 19, a sociedade brasileira encontrou novos mecanismos para marginalizar grande parte de sua população, lançando os ex-escravos à sua própria sorte.

Quase livre, o Branco Tomás diz que é hora de esquecer o que sofreu, que aprendeu muito na prisão, que agora entende uma outra realidade. “É preciso ter certos medos.” Quase foi morto dentro do Aníbal, em grande parte pela antipatia de outro preso, que via a cor do rapaz como uma afronta. Era dia de rebelião, ele aproveitou a confusão para se esconder dentro da igreja no interior do presídio. Nesse caso, foi Jesus, e não Nabuco, que o livrou da morte, como aconteceria com o Tomaz preso na Casa de Detenção do Recife e julgado no dia 24 de junho de 1869 no Tribunal do Júri. Condenado à pena de morte, havia assassinado dois, o negro conseguiu manter-se vivo após o então estudante de direito defendê-lo. “Não cometeu um crime: removeu um obstáculo”, argumentou Nabuco, ressaltando que a supressão da liberdade e os açoites justificavam as atitudes do Preto Tomaz. Com 25 anos, ele ficou preso até a morte, sem nunca mais experimentar a liberdade relativa que conhecera. Já o rapaz da Zona Sul, por bom comportamento, talvez, conscientemente ou não, pela cor da pele, voltou a ir à praia, passeia com o filho que hoje cresce na mesma quitinete onde ele cresceu. Teme que seu rosto no jornal impeça-o de conseguir sua carteira assinada. Luíza fica nervosa e diz que as amigas do trabalho não podem saber. Sabe que o preconceito é a grande barreira para que seu marido hoje consiga um emprego. Tomás cometeu um crime e foi perdoado legalmente por ele. Mas agora precisa remover um enorme obstáculo.

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O famoso caso da defesa do “Preto Tomaz”, como relata Joaquim Nabuco em A escravidão, trouxe grande visibilidade para o estudante da Faculdade de Direito de Recife. Tomás vivia em Olinda e não conheceu o cativeiro, trabalhando como fogueteiro para uma senhora branca. Certo dia, foi preso, amarrado e açoitado em praça pública. Acreditando que o subdelegado da cidade, o farmacêutico Braz Pimentel, fora o responsável por mandar açoitá-lo, assassinou-o. Preso, ele foi julgado e condenado à morte. Fugiu da cadeia e foi preso novamente, agora na Casa de Detenção, onde, durante nova fuga, matou o guarda Afonso Honorato Bastos. Nabuco conseguiu mudar a pena de Tomaz para a prisão perpétua. O caso é tema do livro Joaquim Nabuco e o Escravo Tomaz, que Humberto França, da Fundaj, lança no segundo semestre.

Presos do Brasil: No País, de acordo com a Diretoria de Políticas Penitenciárias (Ministério da Justiça), 37% dos presos se declaram brancos, enquanto 55% se declaram negros e pardos (38% pardos, 17% negros). 1% se declara amarelo, enquanto os indígenas não pontuaram (511). Outras raças: 4%; e não informado: 3%. Os dados são relativos ao ano de 2009. O Brasil tem 473.626 presos.

Medo da polícia: De acordo com o Índice de Homicídios na Adolescência (IHA), do Unicef, a probabilidade de um adolescente ser assassinado é quase 12 vezes maior quando este é do sexo masculino. Se ele é negro, o risco é três vezes maior em relação aos brancos. Segundo pesquisa do sociólogo Túlio Kahn (que analisou diversas pesquisas de opinião realizadas entre 1995 e 1997, pelo Instituto Datafolha), os negros eram o único grupo que tinha mais medo dos policiais do que dos bandidos .

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SERVIÇO
Os trechos destacados foram extraídos do artigo Criminologia e etnicidade: culpa categórica e seletividade de negros no sistema judiciário brasileiro, de Arim Soares do Bem, doutor em sociologia pela Universidade Livre de Berlim e professor do Instituto Ciências Sociais da Universidade Federal de Alagoas (Ufal).

O número de presos nas unidades penitenciárias citadas corresponde até a data de 22/5/2010

Fonte:http://www2.uol.com.br/JC/sites/especial_joaquimnabuco/html/html2/materia_02.html



Joaquins


Joaquim Barbosa, ministro do STF, conheceu a mesma Europa que fascinou Nabuco. Mas foi estudando, e não vendendo um engenho, que ele chegou até lá

Nabuco e Barbosa, Joaquins, um dia se emocionaram com a beleza intestina de Paris. Amaram o Sena e os Jardins de Luxemburgo. Passaram, o coração sensível, pela Pont des Arts, a Pont Neuf, a Basilique du Sacré-Coeur (no original, como no impecável francês dos Quincas). Homens diferentes, momentos distintos, vontades semelhantes: a todos, a possibilidade de experimentar, como eles, o Belo, aquilo o que se entende como a vida boa. Outro aspecto também os aproxima: a figura do pai. Nabuco carregava, vestido nas últimas modas, o peso do nome do seu, José Thomaz, figura de alta estima no Brasil da corte. Barbosa carregava, vestido com o que podia, o peso da ausência do seu, que, ao se separar da mulher, passou para o filho o cetro de provedor familiar.

Cada um, o menino do senador e o menino do pedreiro, chegou pela primeira vez até o alto de Montmartre ao seu modo. Ambos eram jovens. O primeiro teve o prazer de estar a passeio. Assim, pôde ver mais atentamente, sem os constrangimentos da pressa, uma cidade que há pouco findara suas cortes para inaugurar um novo momento, no qual a seda e a renda chantilly passavam mais próximo aos olhos da plebe. Era perfeito para o rapaz que usava uma polêmica (porque inovadora) pulseira de ouro e adorava exibir seus naturalmente construídos dotes aristocráticos. O segundo subiu ao monte, de onde se tem uma vista privilegiada da capital francesa, após um longo trajeto iniciado aos 16 anos, quando saiu de Paracatu, no interior de Minas Gerais, para Brasília. Era, nunca negou, um privilegiado. Sempre houve comida no prato e vontade suficientes para que ele continuasse, naquela quase cidade, seu trajeto até Montmartre. Ao contrário de Paris, a capital federal, inaugurada há pouco mais de dez anos, era lugar de passantes sujos de cimento, de comida na marmita, um novo mundo onde quase tudo era plebe. Perfeita para o rapaz de roupas simples que gostava de piano: seus dotes intelectuais se expandiriam ao lado da urbe cuja aristocracia também estava em formação.

O Joaquim de pele alva conseguiu sua passagem para a Europa após um árduo trabalho de sedução, a venda de um engenho falido e a recusa de um emprego: convidado a trabalhar como auxiliar em exames de retórica, Nabuco sabia que seu porte, a inteligência, a fala, a roupa e o dinheiro paterno tinham poder suficiente para levá-lo aonde quisesse, sem a necessidade de amassar os ternos impecáveis. Essa irresistível soma não teve desempenho poderoso apenas em território brasileiro. Uma vez em Paris, o menino do senador provocou orgulho nos salões cariocas desde o primeiro momento em que proferiu o seu primeiro “bonsoir” para nomes como a escritora George Sand (pseudônimo da também baronesa Amantine Aurore Lucile Dupin) e o respeitado escritor Ernest Renan, que o agraciou com as seguintes palavras: “C’est moi qui serai enchanté de causer avec vous. Tous les jours vers 10 heures, vous êtes sûr de me trouver. E. Renan. Rue Vanneau, 29” (algo como “Sou eu que estou encantado em encontrar você. Todos os dias por volta das 10h você pode me encontrar”). Nabuco, 24 anos, ficou maravilhado. Atingia, ali, um dos propósitos que acendiam a sua alma: aproximar-se de estrelas intelectuais e políticas. “Em 1873 (...), a minha ambição de conhecer homens célebres de toda ordem era sem limites; eu tê-los-ia ido procurar ao fim do mundo”, escreveria em Minha formação, onde também reproduziu a mensagem de Renan. A crisálida virava borboleta, deixando para trás os momentos de melancolia (o mal do século, sentimento e moda espraiados por Byron, também atingiu o coração de Quincas). Estes deram lugar a um deslumbramento acima de qualquer discussão política, esta “amortecida, dominada logo, pela sensação de arte”.

O Joaquim de pele escura conseguiu sua passagem para a Europa após um árduo período de trabalho físico no qual realizou, por exemplo, faxina nos banheiros do Tribunal Regional Eleitoral (TRE). Também foi contínuo e acumulou tarefas: as 12 horas de trabalho por dia resultavam em cochilos durante as aulas. Melhorou quando se tornou operador de máquina ofsete em uma gráfica. Não podia recusar emprego: era o salário que garantia a promoção de sua inteligência e da sua fala, além da roupa e da comida. Também sabia dizer bonsoir, se interessava pela leitura, Kant, Hegel, o alemão de Maria Stuart e Wallenstein. A performance intelectual garantida pelo suor na testa possibilitou a sua metamorfose pessoal: na casa dos 20, o menino do pedreiro provocava orgulho ao cursar direito na Universidade de Brasília, de onde saiu bacharel em 1979. Neste momento, já havia conseguindo o emprego de oficial de chancelaria do Ministério das Relações Exteriores do Brasil na Finlândia, onde ficou entre 1976 e 1979. Aproveitou a relativa aproximação entre fronteiras na Europa e viajou pela região, passando pela Inglaterra que também encantou um dia o filho do senador. A sua crisálida ficara no passado, deixando para trás os momentos de cansaço provocado pela simultaneidade de estudo e de trabalho, as noites de faxina, os cochilos na sala de aula. Estes deram lugar ao interesse pelo direito público, linha do mestrado e do doutorado que cursaria na Panthéon-Assas, a Universidade de Paris II.

O amor pela arte, a Europa, as letras e a vontade de dominar outras línguas unem o Joaquim intelectual e dândi do século 18 e o Joaquim intelectual e trabalhador do século 21. Homens diferentes, momentos distintos, vontades semelhantes, eles também iriam se voltar para uma mesma questão: a cor da pele. Para o nascido branco, que na infância havia recebido de presente um menino preto, Vicente, era vergonhoso ver sua terra continuar com a política escravocata enquanto os países que tanto admirava repudiavam a prática agora relacionada a uma antiga economia, e não à moderna, baseada na revolução das máquinas. Seu espírito, que passara dez anos longe da política, “atraído pelas viagens, pelo caráter dos diferentes países, pelos livros novos, pelo teatro, pela sociedade”, estava cheio de revolta e voltara-se para o mundo exterior não pelo o que ele tinha de divertido e belo, e sim pelo que mostrava de indigno e feio. Elegeu-se deputado por Pernambuco em 1878 e olhou com mais atenção para os negros escravos que serviam nos salões. É certo que desde 1868 dizia-se incomodado com a escravidão, mas o belo, aquilo o que se entende como a vida boa, havia despertado o dândi. Feito homem público e político, publicaria, cinco anos depois, O abolicionismo. De certa maneira, era seu presente tardio para Vicente.

Para o nascido negro, os diferentes países, os livros novos, o teatro e a sociedade, pelos quais sempre se sentiu atraído, haviam se tornado uma realidade palpável. Seguia ouvindo música clássica, entendendo melhor o emprego do “even”, do “mientras”, da “deutsche sprache”. Mas ao lado do lazer aristocrático, da fruição do divertido e belo, continuou a observar o que era indigno e feio. Conhecia os últimos termos de perto e, dentro da prestigiosa université parisiense, estava também o garoto que ficou sem aulas durante um ano, período em que sua escola em Paracatu, mesmo pública, decidiu cobrar mensalidades. Escreveu sobre a Justiça brasileira – e sobre o meio do qual faria parte mais tarde - em La Cour suprême dans le système politique brésilien (editora LGDJ/Montchrestein, 1994, 320 páginas, 40,55 euros). Em 2001, olhou com mais atenção para as distinções causadas pela cor da pele e publicou Ação afirmativa & princípio constitucional da igualdade. O direito como instrumento de transformação social – a experiência dos EUA (454 páginas, edição esgotada). Era sua forma, elegante, de falar sobre “o mais grave de todos os nossos problemas sociais (o qual, curiosamente, todos fingimos ignorar), o que está na raiz das nossas mazelas, do nosso gritante e envergonhador quadro social”, como ele escreveria em um artigo. De certa maneira, era seu presente para a mãe, o pai, os seis irmãos, também para milhões de brasileiros.

ÍNTIMA REVOLUÇÃO

“As perspectivas de integração, oferecidas pela ordem social e competitiva, precisam ser conquistadas palmo a palmo, numa luta desigual para o 'homem de cor.'”
Florestan Fernandes
O Joaquim de Minas leu com muito interesse o Joaquim de Pernambuco. Concordou, sem dúvida, com vários dos pontos de vista do abolicionista da pulseira de ouro, como o que se segue: “Depois que os últimos escravos houverem sido arrancados ao poder sinistro que representa para a raça negra a maldição da cor, será ainda preciso desbastar, por meio de uma educação viril e séria, a lenta estratificação de 300 anos de cativeiro, isto é, de despotismo, superstição e ignorância”. O menino do pedreiro, o terceiro negro a ocupar uma cadeira no Supremo Tribunal Federal, está teórica e empiricamente convencido da frase escrita há quase 150 anos. Mas, do alto do prestígio conferido ao lugar ocupado no gabinete c-429, o último do corredor do quarto andar do prédio (anexo 2) do Supremo, ele segue a opção de não levantar nenhuma bandeira, como fez um dia o menino do senador. Não faz da cor uma atração a mais (“não acordo de manhã e olho para a cor da minha pele”), não permite que o instrumentalizem, como já declarou. Diferentemente de Quincas (“Oh! o que não recebi nesses anos de luta pelos escravos! Como os sacrifícios que por vezes inspirei eram maiores que os meus! Eu tinha a fama, a palavra, a carreira política...”), prefere o silêncio e evita entrevistas. É uma maneira de minimizar o peso da raridade da sua pele naquele ambiente, raridade esta que muitas vezes reduz sua fala, que é ampla, apenas ao problema da discriminação. “A questão racial não é uma obsessão para mim.” Para superarmos o despotismo, a superstição e a ignorância, crê, será necessária uma mudança antes de tudo pessoal, e não política. “A primeira revolução que o Brasil e os brasileiros teriam que fazer seria uma revolução íntima, uma mudança radical de visão, de ordem moral, de aceitar o outro tal como ele é, de respeito pela igual dignidade de todos os seres humanos.” Joaquim Barbosa fala um excelente português.

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NO MUNDO DOS BRANCOS

- Escolaridade e cor: Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2008 os brancos tinham, em média, quase dois anos a mais de escolaridade que pretos e pardos. Em relação à média de anos de estudo da população de 15 anos e mais, os brancos apresentavam vantagem de quase dois anos (8,3 anos de estudos), em relação a pretos e pardos (6,7 e 6,5 anos)

- Ensino superior: dois terços dos jovens brancos e menos de um terço dos pretos e pardos cursavam o nível superior Em 1998, um terço dos brancos jovens de 18 a 24 anos de idade estava frequentando o ensino superior, contra 7,1% dos pretos e pardos. Em 2008, a presença de jovens brancos no ensino superior era de 60,3%, enquanto entre pretos e pardos o percentual era de 28,7%.14,7% dos brancos e somente 4,7% dos pretos e pardos adultos tinham superior completo em 2008. Entre brancos com mais de 25 anos, 14,3% haviam concluído o curso superior. Entre os negros e pardos da mesma idade, eram apenas 4,7% (2008). No Nordeste, apenas 3,8% desta população tinha concluído o ensino superior em 2008.

- Renda e cor: em relação à renda (o salário dos ministros do STF é atualmente R$ 26.723,13, o mais alto do poder público), entre o 1% com os maiores rendimentos, apenas 15% eram pretos ou pardos. Entre 1998 e 2008, houve um crescimento de 6,8 pontos percentuais na participação de pretos e pardos no estrato superior de renda (IBGE). Segundo o instituto, a situação dos brancos ainda é bem mais interessante: entre os 10% com os menores rendimentos, 25,4% se declararam brancos, enquanto 73,7% eram pretos e pardos. Já entre o 1% mais rico, 82,7% eram pessoas brancas e apenas 15% eram de cor preta e parda. Em 1998, a proporção dos que se declararam pretos e pardos no 1% mais rico era muito menor: 8,2%.


Fonte: IBGE


Começou...

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Compartilhando a insonia

Um idoso na fila do Detran


"O senhor aqui é idoso", gritava a senhora para o guarda, no meio da confusão na porta do Detran da Avenida Presidente Vargas, apontando com o dedo o tal "senhor". Como ninguém protestasse, o policial abriu o caminho para que o velhinho enfim passasse à frente de todo mundo para buscar a sua carteira.

Olhei em volta e procurei com os olhos 0 velhinho, mas nada. De repente, percebi que o "idoso" que a dama solidária queria proteger do empurra-empurra não era outro senão eu.

Até hoje não me refiz do choque, eu que já tinha me acostumado a vários e traumáticos ritos de passagem para a maturidade: dos 40, quando em crise se entra pela primeira vez nos "entra"; dos 50, quando, deprimido, salte que jamais vai se fazer outros 50 (a gente acha que pode chegar aos 80, mas aos 100?); e dos 60, quando um eufemismo diz que a gente entrou na "terceira idade". Nunca passou pela minha cabeça que houvesse uma outra passagem, um outro marco, aos 65 anos. E, muito menos, nunca achei que viesse a ser chamado, tão cedo, de "idoso", ainda mais numa fila do Detran.

Na hora, tive vontade de pedir à tal senhora que falasse mais baixo. Na verdade, tive vontade mesmo foi de lhe dizer: "idoso é o senhor seu pai. O que mais irritava era a ausência total de hesitação ou dúvida. Como é que ela tinha tanta certeza? Que ousadia! Quem lhe garantia que eu tinha 65 anos, se nem pediu pra ver minha identidade? E 0 guarda paspalhão, por que não criou um caso, exigindo prova e documentos? Será que era tão evidente assim? Como além de idoso eu era um recém-operado, acabei aceitando ser colocado pela porta adentro. Mas confesso que furei a fila sonhando com a massa gritando, revoltada: "esse coroa tá furando a fila! Ele não é idoso! Manda ele lá pro fim!" Mas que nada, nem um pio.

O silêncio de aprovação aumentava o sentimento de que eu era ao mesmo tempo privilegiado e vítima — do tempo. Me lembrei da manhã em que acordei fazendo 60 anos: "Isso é uma sacanagem comigo", me disse, "eu não mereço." Há poucos dias, ao revelar minha idade, uma jovem universitária reagira assim: "Mas ninguém lhe dá isso." Respondi que, em matéria de idade, o triste é que ninguém precisa dar para você ter. De qualquer maneira, era um gentil consolo da linda jovem. Ali na porta do Detran, nem isso, nenhuma alma caridosa para me "dar" um pouco menos.

Subi e a mocinha da mesa de informações apontou para os balcões 15 e 16, onde havia um cartaz avisando: "Gestantes, deficientes físicos e pessoas idosas." Hesitei um pouco e ela, já impaciente, perguntou: "O senhor não tem mais de 65 anos? Não é idoso?"

— Não, sou gestante — tive vontade de responder, mas percebi que não carregava nenhum sinal aparente de que tinha amamentado ou estava prestes a amamentar alguém. Saí resmungando: "não tenho mais, tenho só 65 anos."

O ridículo, a partir de uma certa idade, é como você fica avaro em matéria de tempo: briga por causa de um mês, de um dia. "Você nasceu no dia 14, eu sou do dia 15", já ouvi essa discussão.

Enquanto espero ser chamado, vou tentando me lembrar quem me faz companhia nesse triste transe. Ai, se não me falha a memória — e essa é a segunda coisa que mais falha nessa idade —, me lembro que Fernando Henrique, Maluf e Chico Anysio estariam sentados ali comigo. Por associação de idéias, ou de idades, vou recordando também que só no jornalismo, entre companheiros de geração, há um respeitável time dos que não entram mais em fila do Detran, ou estão quase não entrando: Ziraldo, Dines, Gullar, Evandro Carlos, Milton Coelho, Janio de Freitas (Lemos, Cony, Barreto, Armando e Figueiró já andam de graça em ônibus há um bom tempo). Sei que devo estar cometendo injustiça com um ou com outro — de ano, meses ou dias —, e eles vão ficar bravos. Mas não perdem por esperar: é questão de tempo.

Ah, sim, onde é que eu estava mesmo? "No Detran", diz uma voz. Ah, sim. "E o atendimento?" Ah, sim, está mais civilizado, há mais ordem e limpeza. Mas mesmo sem entrar em fila passa-se um dia para renovar a carteira. Pelo menos alguma coisa se renova nessa idade.

Zuenir Ventura


Este texto foi publicado no livro "Crônicas de um fim de século", Ed. Objetiva - Rio de Janeiro - 1999 - pág. 25; e extraído do livro "As cem melhores crônicas brasileiras", Ed. Objetiva - Rio de Janeiro - 2007 - pág. 265 - organização de introdução de Joaquim Ferreira dos Santos.

Fonte: http://omundocomoelee.blogspot.com/

Quase brancos, quase negros


Continuando a publicação do caderno especial do JC- Recife



Um negro é um branco muito rico

O antropólogo norte-americano Marvin Harris estava intrigado. Afinal qual era exatamente a cor de uma pessoa acastanhada? Ou alviescura, amarelada, alvirrosada? Passava os olhos pela lista divulgada nos anos 70 pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnud), na qual os entrevistados declaravam a própria cor. Eram incríveis: alvarenta; alvarinta; alvinha; amarela; amarelo-queimada; amarelosa; amorenada; avermelhada; azul; baiana; bem-branca; avermelhada; branco-melada; branco-morena; branco-pálida; branco-queimada; branco-sardenta; branco-suja; branquinha; bronze. Estava estudando uma população no interior da Bahia. Ali, lançou uma questão que até hoje reverbera em solo nacional: who are white? (quem é branco?).

Para conseguir a resposta, teve que se investir de uma percepção refinada e um olho descondicionado – ajudava o fato de não ter nascido na terra dos múltiplos coloridos. A quantidade de declarações sobre a cor da pele mostrava que, mesmo em um Estado com alto índice de negros e mulatos como a Bahia, a população simplesmente não conseguia se dizer “branca” ou “negra”. Harris foi seguindo a trilha dessa multiplicidade de tons e percebeu que a cor estava claramente atrelada ao sucesso social de seu dono. Chegou a uma conclusão surpreendente, formulando assim um instigante esquema. Ele nos diz: um negro é um branco muito pobre; um mulato muito pobre; um mulato pobre; um negro muito pobre; um negro pobre; um negro medianamente rico. Já um branco é: um branco muito rico; um branco medianamente rico; um branco pobre; um mulato muito rico; um mulato medianamente rico; um negro muito rico.

É, sem dúvida, uma forma mais eficaz para lidar com a questão racial no País: ela não se localiza apenas no fenótipo, na aparência, mas perpassa também pela classe social do indivíduo. Significa dizer que o racismo no Brasil manifesta-se pelo branqueamento daqueles que agregam diferentes status e, ao contrário, o enegrecimento ou empardecimento daqueles sem prestígio social. Os psicólogos Marcus Eugênio Lima (Universidade Federal da Bahia) e Jorge Vala (Universidade de Lisboa) se muniram da análise de Harris para tentar decifrar essa rede complexa – e, por isso, nem sempre muito visível no trato cotidiano. “Estamos diante de um racismo camaleônico, que utiliza o notável caleidoscópio de cores que compõem a sociedade brasileira para construir um tipo de representação social que associa o fracasso à cor negra e o sucesso à cor branca. Essa forma brasileira de racismo pode fazer mudar subjetivamente a cor de um indivíduo a fim de manter intactas as crenças coletivas e as atitudes negativas associadas à categoria de pertença desse indivíduo.”

A cor também está veiculada àquilo que é associado ao que é negativo (preto) ou positivo (branco). A pesquisa empreendida pelo sociólogo Sérgio Adorno a partir dos boletins de ocorrências de crimes violentos em São Paulo durante os anos 90 traz uma assustadora conclusão: se o réu era inocentado pelas evidências, tornava-se “branco” nos registros. Já aqueles cujas evidências apontavam para a culpa eram descritos, mesmo tendo a pele clara, como “morenos” ou “negros”. Mas foi o vice-presidente do Instituto Cidadania Democrática (ICD/SP), Silvio Luiz de Almeida, quem conseguiu responder mais sucintamente à pergunta do assombrado Marvin Harris. Ao estudar o acesso à universidade e a emancipação dos afro-brasileiros, ele afirma: ser “branco”, no Brasil, não se refere apenas à cor da pele, mas a todo um conjunto de atitudes e de privilégios políticos e econômicos que nossa sociedade atribui aos que possuem uma aparência branca. E essa aparência, como sabemos, pode ser construída de diversas maneiras, seja através do sucesso econômico, político, cultural. A falta de privilégios, por sua vez, confere simbólicos pigmentos, uma melanina brasileiríssima.

É por isso que são quase negros brancos como Maria José, que vive no quilombo do Castainho, em Garanhuns; o menino louro Esdras Gomes, morador dos alagados da Camboa, em Serrambi, aonde chegavam os navios repletos de escravos; as irmãs Jéssica e Gislaine, que moram à beira de um esgoto na Vila Massangana, a poucos metros do engenho onde Joaquim Nabuco viveu até os 8 anos de idade. São quase negros também a ex-prostituta e traficante Luciana, assim como o ex-presidiário Tomás, rapaz de olhos verdes que possui o mesmo nome do primeiro réu defendido por Nabuco. O Tomás de ontem era um negro fugitivo. O Tomás de hoje, um quase negro que tenta uma vaga no mercado de trabalho. Alguns deles passaram fome, outros pela falta de lugar para morar, pelo drama do abuso sexual. São desempoderados de pele alva, vivenciam uma existência de alto risco que os aproxima da maioria daqueles que passam pelo mesmo diário sufoco, os negros.

Há entanto, apesar do “enegrecimento social”, um capital com o qual todos estes claros podem contar e que os diferencia substancialmente dos pretos pobres: a brancura da própria pele. Mesmo sofrendo as dificuldades da falta de emprego, renda, moradia e saúde, eles conseguem, na rua, a olho nu, diferenciar-se positivamente. Aproximam-se, visualmente, da maioria daqueles que compõem as fatias economicamente mais privilegiadas do País, vide o ótimo trabalho do economista Marcelo Paixão, que criou para a Organização das Nações Unidas, em 2005, um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) com recorte racial para mostrar a brutal diferença de existências no País. Se apenas o IDH dos brancos fosse levado em consideração, o Brasil ocuparia a 44ª posição entre os 174 países listados pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). Se apenas o IDH dos negros fosse listado, o Brasil iria parar no 105º lugar. São 61 posições de diferença.

Assim, estes brancos são donos da cor, mas não da realidade, da elite econômica do País. Por isso, quase negros. Quase porque, no cotidiano, têm menos chances de, por exemplo, serem abordados pela polícia. “Baculejo” em branco, mesmo pobre, é mais difícil. Eles são mais “raros” neste estrato: dos 22 milhões de brasileiros que vivem abaixo da linha da pobreza, 70% são negros. Na entrevista para conseguir emprego, são eles os mais cotados para dar conta do item “boa aparência”, um dos filtros que mantêm a população negra afastada dos postos de trabalho. “Quando as pessoas olham uma criança branca pedindo na rua, comovem-se com mais facilidade, chama atenção, ‘olha, coitado, tão bonitinho, tem os olhos azuis’. Porque aquele não é o lugar para aquela criança, aquele é o lugar para o negro, é sempre ele que aparece nesta situação”, diz a professora Eliane Veras, do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). O capital da cor, única riqueza dos brancos pobres, também foi observado pelo antropólogo Kabengele Munanga, professor do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Ao defender o sistema de cotas nas universidades brasileiras, ele afirma: não há como tratar, falando de políticas públicas numa cultura e sociedade racista, igualmente os negros pobres e os brancos pobres, já que os primeiros são discriminados duas vezes, pela cor e pela condição socioeconômica, enquanto os últimos são discriminados uma única vez. Aqui, ressalta, não é possível acreditar em democracia racial: é preciso tratar tais grupos como profundamente desiguais (de acordo com o Relatório Anual das Desigualdades Raciais no Brasil 2007/2008, 4.027,710 brancos cursavam até 2006 o nível superior no Brasil, enquanto apenas 1.757,336 pretos e pardos acessaram o mesmo nível).

Enquanto a alvura pode livrar estes quase negros de alguns constrangimentos, a pobreza os mantém distintos, como aponta o cientista político Gustavo Venturi, da Fundação Perseu Abramo. Segundo ele, os pobres não negros não deixam de ser discriminados como pobres. E essa discriminação é provocada pelo próprio contexto social no qual, cada vez mais, o poder é traduzido na aquisição de bens materiais. “Essa experiência advém de um enraizamento cultural profundo de valores derivados de uma estrutura de classes historicamente muito desigual, valores que se expressam no menosprezo do trabalho braçal, que antes cabia aos escravos e depois se sustentou na abundância de mão de obra barata, desqualificada pela falta de oportunidade de estudo e de formação profissional. A discriminação contra pobres no Brasil alimenta-se também da exacerbação dos valores consumistas da nossa sociedade, que sobrevaloriza a aparência, traduzida em vestuário e adereços considerados símbolos de beleza e de sucesso. Em que pese a melhoria da distribuição de renda nos últimos anos, é evidente que essa lógica segue expondo milhões de brasileiros à discriminação social pelo simples fato de serem pobres.”

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SERVIÇO
Fontes: Atlas Racial Brasileiro (2004); Relatório de Desenvolvimento Humano Brasil (2005): racismo, pobreza e violência (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento/Pnud/ONU); Políticas de ação afirmativa em benefício da população negra no Brasil: um ponto de vista em defesa de cotas (Kabengele Munanga/USP); Normas sociais e racismo: efeitos do individualismo meritocrático e do igualitarismo na infra-humanização dos negros (Marcos Oliveira Lima e Jorge Vala); Relatório Anual das Desigualdades Raciais no Brasil 2007/2008 (Laeser/UFRJ)


Sorria, você está no mundo da pele clara


Os negros deixarão de existir no Brasil daqui a menos de dois anos. O desaparecimento da cor no País está previsto para 2012. Também haverá a drástica redução de mestiços, que serão apenas 3% da população. Seremos uma enorme nação de brancos. A previsão não é nova: ela foi apresentada em 1929 pelo respeitado antropólogo Roquette-Pinto durante o Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, no Rio. Outro intelectual de renome, João Batista Lacerda, diretor do Museu Nacional, mostrou antes esse mesmo “futuro brilhante” no Congresso Internacional das Raças, realizado em 1911. Utilizou as premissas do primeiro, seu colega e também antropólogo, que se baseou nos censos de 1872 e de 1890 para sustentar o branqueamento do Brasil. Muitos brasileiros, é claro, ficaram extremamente incomodados. Primeiro, porque Lacerda mostrou lá fora, e logo na Europa, dados que revelavam um Brasil negro demais. Segundo (e mais grave): ainda seria preciso esperar cem anos para que pudéssemos caminhar felizes entre gente como os “tipos puros e belos do Velho Mundo”, como quis o crítico Silvio Romero?

O fato é que a ciência pode decepcionar mesmo os corações e mentes mais crédulos, como perceberam os três intelectuais. (Romero foi um dos mais desiludidos ao ver que seu sonho de tez clara não ia acontecer.) Sofreram uma dura e simbólica prova do tempo, que os transformou em ingênuos. Ela está baseada não apenas em números, mas em todo o processo social e histórico pelos quais a Nação passou nas últimas décadas. Pela primeira vez no País, mais da metade da população se declarou afrodescendente (negra ou parda), segundo divulgou no ano passado a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Pnad/IBGE). São 50,3% os de pele escura (43% pardos e 6,5% pretos). Não é pouco. Em 1940, 60% afirmavam que eram brancos para o mesmo instituto. Em 2006, 42,6% se dizia preta ou parda. Parece que vai deixando de ser um problema não parecer com os “belos” do Velho Mundo, uma realidade que muitos relacionam a fatores como a crescente queda na taxa de pobreza no Brasil, a entrada significativa de afrodescendentes nas escolas e universidades, a presença de pretos e pretas na publicidade, na TV, nas novelas, estes instrumentos que atuam quase pedagogicamente no País.

Há, porém, uma enorme ironia na situação: muitos dos negros que atingem locais de destaque simplesmente embranquecem – e não estamos nos referindo à cor da pele. Ao se afastarem das posições comumente atreladas aos “escuros” (o trabalho braçal, o espaço do servir) e ao se aproximarem de esferas cujo domínio é branco, tornam-se, quase, iguais. Pinto, Romero e Lacerda ficariam fascinados com o processo. Ele não é simples: são necessárias diversas e silenciosas negociações. Para participar do “mundo dos brancos”, observou o sociólogo Florestan Fernandes já nos anos 70, negros e mestiços precisam em vários momentos se submeter a um branqueamento psicológico, social e moral. As portas desse universo de pele clara não estão exatamente fechadas – para ultrapassá-las, basta a adesão a outros códigos, basta mostrar a velha e esperada cordialidade, aquilo o que o pesquisador Ronaldo Sales, da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), chamou de “Complexo de Tia Anastácia”. “É a síndrome do negro que é aceito apenas enquanto fica no lugar que lhe é reservado.” Sim, estamos falando de uma integração. Mas ela, antes de tudo, é subordinada.

O contrato de adesão ao mundo dos brancos tem outros itens. Quem atinge esse posto de prestígio tem ainda a missão de servir como exemplo, é o ícone que comprova: não somos racistas. Confirma-se o Brasil cuja “democracia racial” é questionada há quase 40 anos no meio acadêmico, mas que ainda prevalece na rua, no ônibus, na escola, em casa. É só olhar: lá no Supremo Tribunal Federal (STF) não tem um ministro negro? No desfile daquela grife famosa não havia uma moreninha em meio às branquinhas? Na novela não apareceu uma Helena preta? E, para provar que não é só aqui que os negros têm vez, há aquele homem simpático e “de cor” que hoje ocupa a presidência dos EUA. Tais exemplos são utilizados continuamente para sustentar o discurso da inexistência da discriminação racial. Ao mesmo tempo – e é aí que eles são particularmente poderosos –, mostram como exceções apenas confirmam a existência de uma regra. O ineditismo dos negros no mundo dos brancos não nos faz menos discriminatórios, e sim o oposto.

De vez em quando, chega a conta cobrando a passagem pela porta dos claros. É aí que os quase brancos têm o “quase” sublinhado. Em junho deste ano, na última São Paulo Fashion Week, a modelo pernambucana Emanuela de Paula recebeu a sua. Décima primeira top mais bem paga do mundo em 2009 de acordo com a revista Forbes, ela estava em um camarim quando, revelou à imprensa, foi chamada de “macaca”. A lógica que explica o insulto é simples: você pode ser linda, milionária, pode compartilhar aquele espaço glamourizado e majoritariamente branco. Mas continua negra, e, por isso, “macaca”. O ministro Joaquim Barbosa (STF) também lidou com várias destas faturas até tomar posse no Supremo – e elas continuam a chegar ao seu gabinete. A raridade de sua presença em um alto escalão da Justiça brasileira não está livre de tensões, como demonstrou o famoso comentário da também ministra Carmen Lúcia: “Esse [Joaquim Barbosa] vai dar um salto social agora com esse julgamento”. Referia-se ao fato de o ministro ser relator, em 2007, do escândalo do mensalão, como foi chamada a “mesada” paga a deputados federais para que estes votassem a favor de projetos do Executivo. Aqui, novamente nos deparamos com um raciocínio simples: fale várias línguas, realize um doutorado na Sorbonne, prepare um respeitado relatório transformando em réus 40 importantes nomes da política nacional. Torne-se ministro, contrariando o futuro esperado para um filho de pedreiro. Todos esses feitos são louváveis, mas a sua pele negra nos informa que você ainda não atingiu o Grande Degrau Social.

Os exemplos protagonizados por Emanuela de Paula e Joaquim Barbosa revelam que o racismo entre negros de alto prestígio pode ser extremamente perverso, porque quase invisível. Porque, é claro, dirige-se logo àqueles que são observados como “felizardos”, os “bons exemplos” de uma falsamente tranquila miscigenação. Os perfis do padre Clovis Cabral, da ialorixá centenária Estelita Santana e da professora norte-americana Barbara Carter (que viveu o tempo da discriminação institucionalizada em seu país) também mostram, nas próximas páginas, como as barreiras que distinguem pretos e brancos não deixam de existir apesar da importância de seus lugares e conquistas. A classe mais alta pode fazer com que a cor negra tenha menos peso, produz o tal embranquecimento, mas ela não nivela aqueles que dividem. “Se você é bem-sucedido, termina sendo menos negro do que é. No entanto, no fim, é a cor que dá conta de tudo, do corpo e do lugar social”, diz Ronaldo Sales.

O antropólogo Ivo de Santana estudou, em Salvador, uma “elite negra” que pôde adentrar em cursos como direito, medicina, estatística, engenharia, letras, alguns deles com pós-graduação realizada fora do País. Percebeu ali os sutis mecanismos de discriminação racial que, como ele escreve, se colocam apenas àqueles que conseguem acessar locais de prestígio, e não à maioria dos que ficam de fora. A tal sutileza, porém, não é comum a todos: uma de suas informantes, que foi morar num condomínio de classe média alta, enfrentou uma série de constrangimentos racistas, que culminaram com uma carta ofensiva deixada sob sua porta. Precisou mover uma ação judicial para que a presença de sua família fosse tolerada (“tolerada”, importante frisar). Ela e os negros que aparecem perfilados neste especial se negaram a realizar, em diferentes níveis, o pacto que exigia o embranquecimento deles. Não assumiram, como tantas vezes é observado entre esta população específica, uma postura de cordialidade, o que os transforma em atores essencialmente políticos. Ao defender temas polêmicos como as cotas em universidades – e até nas passarelas – eles demonstram que, apesar de vivenciarem condições quase utópicas para a maioria dos afrodescendentes, não romperam os laços de solidariedade com os outros “de cor”, uma realidade bastante comum, segundo escreve Silvio Luiz de Almeida, advogado e vice-presidente do Instituto Cidadania Democrática (ICD/SP). “Ao adentrar as estruturas que possibilitam a 'ascensão social', o negro muitas vezes passa a servir à causa da opressão, mas sem nunca deixar de ser oprimido.”


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SERVIÇO
O negro no mundo dos brancos (Florestan Fernandes, 1972); A mobilidade social dos negros brasileiros (Rafael Guerreiro Osório. Brasília, agosto de 2004, IPEA); Uma história de branqueamento ou o negro em questão (livro organizado por Andreas Hofbauer); À margem do centro: ascensão social e processos identitários entre negros de alto escalão no serviço público – o caso de Salvador (Ivo de Santana, UFBA); O acesso à universidade e a emancipação dos afro-brasileiros (Silvio Luiz de Almeida, USP); Roquette-Pinto: uma vida dedicada ao progresso da nação (Andreas Hofbauer); Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad/IBGE), 2009

Fonte: http://www2.uol.com.br/JC/sites/especial_joaquimnabuco/index.html