terça-feira, 17 de agosto de 2010



Joaquins


Joaquim Barbosa, ministro do STF, conheceu a mesma Europa que fascinou Nabuco. Mas foi estudando, e não vendendo um engenho, que ele chegou até lá

Nabuco e Barbosa, Joaquins, um dia se emocionaram com a beleza intestina de Paris. Amaram o Sena e os Jardins de Luxemburgo. Passaram, o coração sensível, pela Pont des Arts, a Pont Neuf, a Basilique du Sacré-Coeur (no original, como no impecável francês dos Quincas). Homens diferentes, momentos distintos, vontades semelhantes: a todos, a possibilidade de experimentar, como eles, o Belo, aquilo o que se entende como a vida boa. Outro aspecto também os aproxima: a figura do pai. Nabuco carregava, vestido nas últimas modas, o peso do nome do seu, José Thomaz, figura de alta estima no Brasil da corte. Barbosa carregava, vestido com o que podia, o peso da ausência do seu, que, ao se separar da mulher, passou para o filho o cetro de provedor familiar.

Cada um, o menino do senador e o menino do pedreiro, chegou pela primeira vez até o alto de Montmartre ao seu modo. Ambos eram jovens. O primeiro teve o prazer de estar a passeio. Assim, pôde ver mais atentamente, sem os constrangimentos da pressa, uma cidade que há pouco findara suas cortes para inaugurar um novo momento, no qual a seda e a renda chantilly passavam mais próximo aos olhos da plebe. Era perfeito para o rapaz que usava uma polêmica (porque inovadora) pulseira de ouro e adorava exibir seus naturalmente construídos dotes aristocráticos. O segundo subiu ao monte, de onde se tem uma vista privilegiada da capital francesa, após um longo trajeto iniciado aos 16 anos, quando saiu de Paracatu, no interior de Minas Gerais, para Brasília. Era, nunca negou, um privilegiado. Sempre houve comida no prato e vontade suficientes para que ele continuasse, naquela quase cidade, seu trajeto até Montmartre. Ao contrário de Paris, a capital federal, inaugurada há pouco mais de dez anos, era lugar de passantes sujos de cimento, de comida na marmita, um novo mundo onde quase tudo era plebe. Perfeita para o rapaz de roupas simples que gostava de piano: seus dotes intelectuais se expandiriam ao lado da urbe cuja aristocracia também estava em formação.

O Joaquim de pele alva conseguiu sua passagem para a Europa após um árduo trabalho de sedução, a venda de um engenho falido e a recusa de um emprego: convidado a trabalhar como auxiliar em exames de retórica, Nabuco sabia que seu porte, a inteligência, a fala, a roupa e o dinheiro paterno tinham poder suficiente para levá-lo aonde quisesse, sem a necessidade de amassar os ternos impecáveis. Essa irresistível soma não teve desempenho poderoso apenas em território brasileiro. Uma vez em Paris, o menino do senador provocou orgulho nos salões cariocas desde o primeiro momento em que proferiu o seu primeiro “bonsoir” para nomes como a escritora George Sand (pseudônimo da também baronesa Amantine Aurore Lucile Dupin) e o respeitado escritor Ernest Renan, que o agraciou com as seguintes palavras: “C’est moi qui serai enchanté de causer avec vous. Tous les jours vers 10 heures, vous êtes sûr de me trouver. E. Renan. Rue Vanneau, 29” (algo como “Sou eu que estou encantado em encontrar você. Todos os dias por volta das 10h você pode me encontrar”). Nabuco, 24 anos, ficou maravilhado. Atingia, ali, um dos propósitos que acendiam a sua alma: aproximar-se de estrelas intelectuais e políticas. “Em 1873 (...), a minha ambição de conhecer homens célebres de toda ordem era sem limites; eu tê-los-ia ido procurar ao fim do mundo”, escreveria em Minha formação, onde também reproduziu a mensagem de Renan. A crisálida virava borboleta, deixando para trás os momentos de melancolia (o mal do século, sentimento e moda espraiados por Byron, também atingiu o coração de Quincas). Estes deram lugar a um deslumbramento acima de qualquer discussão política, esta “amortecida, dominada logo, pela sensação de arte”.

O Joaquim de pele escura conseguiu sua passagem para a Europa após um árduo período de trabalho físico no qual realizou, por exemplo, faxina nos banheiros do Tribunal Regional Eleitoral (TRE). Também foi contínuo e acumulou tarefas: as 12 horas de trabalho por dia resultavam em cochilos durante as aulas. Melhorou quando se tornou operador de máquina ofsete em uma gráfica. Não podia recusar emprego: era o salário que garantia a promoção de sua inteligência e da sua fala, além da roupa e da comida. Também sabia dizer bonsoir, se interessava pela leitura, Kant, Hegel, o alemão de Maria Stuart e Wallenstein. A performance intelectual garantida pelo suor na testa possibilitou a sua metamorfose pessoal: na casa dos 20, o menino do pedreiro provocava orgulho ao cursar direito na Universidade de Brasília, de onde saiu bacharel em 1979. Neste momento, já havia conseguindo o emprego de oficial de chancelaria do Ministério das Relações Exteriores do Brasil na Finlândia, onde ficou entre 1976 e 1979. Aproveitou a relativa aproximação entre fronteiras na Europa e viajou pela região, passando pela Inglaterra que também encantou um dia o filho do senador. A sua crisálida ficara no passado, deixando para trás os momentos de cansaço provocado pela simultaneidade de estudo e de trabalho, as noites de faxina, os cochilos na sala de aula. Estes deram lugar ao interesse pelo direito público, linha do mestrado e do doutorado que cursaria na Panthéon-Assas, a Universidade de Paris II.

O amor pela arte, a Europa, as letras e a vontade de dominar outras línguas unem o Joaquim intelectual e dândi do século 18 e o Joaquim intelectual e trabalhador do século 21. Homens diferentes, momentos distintos, vontades semelhantes, eles também iriam se voltar para uma mesma questão: a cor da pele. Para o nascido branco, que na infância havia recebido de presente um menino preto, Vicente, era vergonhoso ver sua terra continuar com a política escravocata enquanto os países que tanto admirava repudiavam a prática agora relacionada a uma antiga economia, e não à moderna, baseada na revolução das máquinas. Seu espírito, que passara dez anos longe da política, “atraído pelas viagens, pelo caráter dos diferentes países, pelos livros novos, pelo teatro, pela sociedade”, estava cheio de revolta e voltara-se para o mundo exterior não pelo o que ele tinha de divertido e belo, e sim pelo que mostrava de indigno e feio. Elegeu-se deputado por Pernambuco em 1878 e olhou com mais atenção para os negros escravos que serviam nos salões. É certo que desde 1868 dizia-se incomodado com a escravidão, mas o belo, aquilo o que se entende como a vida boa, havia despertado o dândi. Feito homem público e político, publicaria, cinco anos depois, O abolicionismo. De certa maneira, era seu presente tardio para Vicente.

Para o nascido negro, os diferentes países, os livros novos, o teatro e a sociedade, pelos quais sempre se sentiu atraído, haviam se tornado uma realidade palpável. Seguia ouvindo música clássica, entendendo melhor o emprego do “even”, do “mientras”, da “deutsche sprache”. Mas ao lado do lazer aristocrático, da fruição do divertido e belo, continuou a observar o que era indigno e feio. Conhecia os últimos termos de perto e, dentro da prestigiosa université parisiense, estava também o garoto que ficou sem aulas durante um ano, período em que sua escola em Paracatu, mesmo pública, decidiu cobrar mensalidades. Escreveu sobre a Justiça brasileira – e sobre o meio do qual faria parte mais tarde - em La Cour suprême dans le système politique brésilien (editora LGDJ/Montchrestein, 1994, 320 páginas, 40,55 euros). Em 2001, olhou com mais atenção para as distinções causadas pela cor da pele e publicou Ação afirmativa & princípio constitucional da igualdade. O direito como instrumento de transformação social – a experiência dos EUA (454 páginas, edição esgotada). Era sua forma, elegante, de falar sobre “o mais grave de todos os nossos problemas sociais (o qual, curiosamente, todos fingimos ignorar), o que está na raiz das nossas mazelas, do nosso gritante e envergonhador quadro social”, como ele escreveria em um artigo. De certa maneira, era seu presente para a mãe, o pai, os seis irmãos, também para milhões de brasileiros.

ÍNTIMA REVOLUÇÃO

“As perspectivas de integração, oferecidas pela ordem social e competitiva, precisam ser conquistadas palmo a palmo, numa luta desigual para o 'homem de cor.'”
Florestan Fernandes
O Joaquim de Minas leu com muito interesse o Joaquim de Pernambuco. Concordou, sem dúvida, com vários dos pontos de vista do abolicionista da pulseira de ouro, como o que se segue: “Depois que os últimos escravos houverem sido arrancados ao poder sinistro que representa para a raça negra a maldição da cor, será ainda preciso desbastar, por meio de uma educação viril e séria, a lenta estratificação de 300 anos de cativeiro, isto é, de despotismo, superstição e ignorância”. O menino do pedreiro, o terceiro negro a ocupar uma cadeira no Supremo Tribunal Federal, está teórica e empiricamente convencido da frase escrita há quase 150 anos. Mas, do alto do prestígio conferido ao lugar ocupado no gabinete c-429, o último do corredor do quarto andar do prédio (anexo 2) do Supremo, ele segue a opção de não levantar nenhuma bandeira, como fez um dia o menino do senador. Não faz da cor uma atração a mais (“não acordo de manhã e olho para a cor da minha pele”), não permite que o instrumentalizem, como já declarou. Diferentemente de Quincas (“Oh! o que não recebi nesses anos de luta pelos escravos! Como os sacrifícios que por vezes inspirei eram maiores que os meus! Eu tinha a fama, a palavra, a carreira política...”), prefere o silêncio e evita entrevistas. É uma maneira de minimizar o peso da raridade da sua pele naquele ambiente, raridade esta que muitas vezes reduz sua fala, que é ampla, apenas ao problema da discriminação. “A questão racial não é uma obsessão para mim.” Para superarmos o despotismo, a superstição e a ignorância, crê, será necessária uma mudança antes de tudo pessoal, e não política. “A primeira revolução que o Brasil e os brasileiros teriam que fazer seria uma revolução íntima, uma mudança radical de visão, de ordem moral, de aceitar o outro tal como ele é, de respeito pela igual dignidade de todos os seres humanos.” Joaquim Barbosa fala um excelente português.

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NO MUNDO DOS BRANCOS

- Escolaridade e cor: Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2008 os brancos tinham, em média, quase dois anos a mais de escolaridade que pretos e pardos. Em relação à média de anos de estudo da população de 15 anos e mais, os brancos apresentavam vantagem de quase dois anos (8,3 anos de estudos), em relação a pretos e pardos (6,7 e 6,5 anos)

- Ensino superior: dois terços dos jovens brancos e menos de um terço dos pretos e pardos cursavam o nível superior Em 1998, um terço dos brancos jovens de 18 a 24 anos de idade estava frequentando o ensino superior, contra 7,1% dos pretos e pardos. Em 2008, a presença de jovens brancos no ensino superior era de 60,3%, enquanto entre pretos e pardos o percentual era de 28,7%.14,7% dos brancos e somente 4,7% dos pretos e pardos adultos tinham superior completo em 2008. Entre brancos com mais de 25 anos, 14,3% haviam concluído o curso superior. Entre os negros e pardos da mesma idade, eram apenas 4,7% (2008). No Nordeste, apenas 3,8% desta população tinha concluído o ensino superior em 2008.

- Renda e cor: em relação à renda (o salário dos ministros do STF é atualmente R$ 26.723,13, o mais alto do poder público), entre o 1% com os maiores rendimentos, apenas 15% eram pretos ou pardos. Entre 1998 e 2008, houve um crescimento de 6,8 pontos percentuais na participação de pretos e pardos no estrato superior de renda (IBGE). Segundo o instituto, a situação dos brancos ainda é bem mais interessante: entre os 10% com os menores rendimentos, 25,4% se declararam brancos, enquanto 73,7% eram pretos e pardos. Já entre o 1% mais rico, 82,7% eram pessoas brancas e apenas 15% eram de cor preta e parda. Em 1998, a proporção dos que se declararam pretos e pardos no 1% mais rico era muito menor: 8,2%.


Fonte: IBGE


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