terça-feira, 3 de agosto de 2010

Ode às Secas do Nordeste (Zila Mamede)


Na estrada norte era noite
na estrada sul era dia
Em todo o Sertão queimado
que diferença fazia
se o sol nascesse de noite
se a lua enchesse de dia?


- O resultado era o mesmo
em cada boca vazia
cada estômago encolhido
cada pá de terra esguia
cada enxada que cavando
só pedra e fome trazia:
nem grão cozido ou farinha
fumo angu mel-rapadura
molambos que os lombos toscos
cobrir do calor não vinham


A estrada norte nem sabe
se a estrada sul vai levando
o arrastar das boiadas
(descaminhadas, perdidas)
os paus-de-arara vendidos
aos graúdos latifúndios
a sombra dos rostos gastos
todos os joãos, as marias,
os antônios, as comadres
as cacimbas entupidas
riachos sem correntezas
a rede chã, incertezas
no medo dos retirantes
os pés-no-chão das veredas
os rastos das estiagens
mutilação das vazantes


Juremal, terra fendida
os carros-de-boi calados
as rezas, as benzeduras
contra as bicheiras do mal
Tanto papel carimbado
(a Lei exige, que jeito!)
para enterrar os morridos
justificar os matados


Estradas (capões do Norte)
carreadas para o Sul
varrendo o chão do Nordeste
(sob o Cruzeiro do Sul)
do povo crente da terra
da gente aferrada ao chão
que vira bicho-sem-alma
no toldo de um caminhão
fugindo da morte-fome
do sodoro, fava-brava
da lama em que torna a água-
sede-morte do Sertão


- Homem cadê teu jumento
alqueires de plantação
aquela vaca leiteira
as raízes do algodão
o açudeco (arrombado)
teu pé de milho-em-pendão?

- Cadê a casa de taipa
tuas ramas de feijão
os terços do Mês-de-Maio
tua força de varão
tua honra de marido
tua Mãe para a abenção
a cova do teu Pai morto
integrado nesse chão?

- Tudo ficou no descampo
no casco da solidão
nas roças em queimamento
(sol de velha maldição!)
O homem-Nordeste em fuga
em desespero de cão
parte em busca de ocidentes
(geografias de eleição
dos votos encurralados
da ceifa da votação)
E a gente don’t know onde
habitar um outro chão


Muitos percorrem caminhos
- os apelos asfaltados -
esperando o prometido
teto roupa eito e pão
No vazio dessa espera
descambam nas valas rasas
sonhando com o seu retorno
às invernas do sertão
Outros confusos se esvaem
consumidos pelos vermes
ou aves-balas errantes
que cruzam tantos caminhos
e arrancam dos retirantes
a raiz do coração


Na estrada Norte, só noite.
Nessa estrada, quando, o dia?



Fonte: http://www.revista.agulha.nom.br/zmamede03p.html

Nenhum comentário: