1. Estou Satisfeito, obrigado
Durante as refeições, se insistem com
ele para repetir, ele responde: “obrigado, estou satisfeito”. É sueco,
fala português muito bem mas com aquelas pequenas diferenças que
assinalam uma nacionalidade estrangeira.
Na mesma situação, um português dirá:
não, obrigada estou bem, já chega, estou cheio, é bom, mas não quero
abusar. Raramente “estou satisfeito”. Perante isto, a tentação de um
remate filosófico é grande: o português nunca se sente satisafeito, já
que, nas palavras de Alexandre O’Neill, “este país não se vive, mas
sofre-se”. E assim a satisfação não é estado de que o português se possa
vangloriar, nem no caso de uma situação prosaica, como uma simples
refeição.
Mas livre-nos Deus de cairmos nesta tentação! Levar-nos-ia, pela certa, a filosofias baratas e o barato, já se sabe: sai caro!
É do conhecimento geral que, seja qual
for a nacionalidade, a aprendizagem mais precoce que fazemos na vida- na
qual somo todos sobredotados- é a Insatisfação. Neste sentido, adoptei
recentemente a frase deste amigo sueco, de forma a poder, pelo menos em
certas situações da vida, sentir-me PLENAMENTE SATISFEITA.
- Não queres mais desta tarte?
- Não, obrigada, estou satisfeita.
E acreditem ou não, esta frase dá-me
satisfação! Uns minutos de abençoada concentração nos prazeres da
digestão. Porque não abundam as situações em que nos podemos orgulhar de
sentir uma Verdadeira Satisfação.
2. A satisfação não me satisfaz
O dia foi belo, mas à noite sentimos uma
pontadinha: ele não telefonou; a festa de anos foi magnífica, mas não
percebo por que razão a minha filha estava tão amuada; a minha vida
corre bem, mas de manhã dou comigo a sonhar deixar tudo e correr o mundo
de barco; adoro a minha mulher mas quantas vezes não sonho com
aventuras donjuanescas; gosto da minha profissão mas dou comigo a pensar
que devia fazer outra coisa; ontem o meu marido ofereceu-me flores, ui,
isso tem água no bico, estou a achar estranho tanta demonstração; gosto
da minha casa na praia, mas estou farta dos fins-de-semana sempre
iguais, o que eu queria mesmo é não ter nada, despojar-me de tudo! Tenho
um rapaz, mas como a minha vida seria muito mais bela se tivesse tido
outro filho, uma rapariga, a rapariga dos meus sonhos!
Porquê isto? Arrisquemos algumas respostas:
1. Porque tal como não
se fazem bons romances com bons sentimentos ( André Gide) também não se
faz uma vida com satisfação. A insatisfação é o motor da vida.
2. Porque se estamos
insatisfeitos- por não termos dinheiro, saúde, trabalho, calma interior,
etc- desejamos obter estes bens. Se os temos, temos medo de os perder.
3. Porque a sociedade
actual, prostrada no altar do Deus Efémero, fomenta uma Cultura da
Insatisfação: novos destinos, novos looks, novos sabores, novas
Experiências e por acaso, “não deseja mudar de operadora, olhe que temos
preços mais baixos e melhores condições, não quer mudar de cremes, olhe
que os nossos são imbatíveis no combate à velhice, não quer mudar de
colchão e dormir finalmente como um anjo)? Assim, mesmo depois de termos
optado por X, logo sentimos uma pontadinha de arrependimento, pois
afinal, quem sabe, devia ter optado por Y. A moda está do lado do VARIAR
e não do MANTER
4. Porque em todos nós dorme uma criança que sonha.
A criança, apesar de passar a vida a
querer ser grande, não aprecia lá muito ver-nos crescer a sério. Quer
ser grande enquanto isso é uma espécie de miragem no deserto da sua
pequenez e insignificância. Mas mal deixa de se pôr em bicos de pés, o
mundo visto de cima revela-lhe, afinal, ruas sinuosas, estreitas e
escuras. Por isso, quando se apercebe que nos tornámos adultos, ata-nos
um fio à cintura e puxa-o ao sabor dos seus caprichos: quantas vezes a
dormirmos o sono dos justos, sentimos um esticão e a vozinha dela a
reclamar: vamos para a rua, anda, Respondemos, ensonados, que estamos cansados e rua já tiveste hoje que chegue. Mas ela, teimosa como é, mantêm-se perfilada e não desarma: Vá lá, vamos p’rá rua brincar
e dá mais um esticão no fio. Nós viramo-nos para o outro lado, na
esperança que ela nos deixe dormir e abandone a sua teimosia. Esperança
vã pois não só não arreda pé, como nos dá um esticão a valer e p’ra
doer. Aí, erguemo-nos de um pulo já com um raspanete valente pronto a
sair e, nesse momento, o que vemos? Uns olhos que inundam o quarto de
luz, uma pose aventureira, plena de soberba, uma soberba toda feita de
despreocupação e de alegria, a alegria que nos falta, o desafio que nos
falta, a despreocupação que nos falta, o brilho que nos falta, a
aventura que nos falta e vestimo-nos à pressa e vamos p’rá rua tentar
agarrar os balões de sonhos por realizar, que não queremos mais ver
desaparecer pelo ar.
5. Porque em nós dormita a “Deusa” de Emma Bovary: a Insatisfação.
Gustave Flaubert, Madame Bovary, Ed Civilização, tradução de Daniel Augusto Gonçalves, 2012
A
história de Emma Bovary escrita por Flaubert entre 1851 e 1856, como
clássico que é, é sobejamente conhecida, pois um clássico é aquele que
se “conhece” mesmo sem o lermos. Associada a Emma Bovary está o tema do
adultério, um tema muito tratado nos romances do século XIX. E com o
adultério surgem as temáticas da insatisfação sexual, do papel da mulher
na sociedade, dos tabus sociais e religiosos, etc.Neste sentido, o
romance correria o risco de estar bastante datado.
Ora, Emma Bovary é muito mais do que
isto, infinitamente mais e por isto esta obra é um dos romances mais
estudados pela crítica e que mais tem influenciado escritores- europeus,
americanos, sul-americanos, etc- assim como cineastas, ilustradores,
autores de banda desenhada, etc. Quem teimar fazer de Emma uma vítima de
leituras cor-de-rosa, uma frustrada na província onde vive com o seu
marido uma vida monótona, deixa de lado a força maior deste romance: uma
análise assombrosa de uma alma assolada de vazio. Emma Bovary é,
sobretudo, uma análise profunda do VAZIO EXISTENCIAL.
O Vazio de Emma, como Vazio que é, não tem nome: mas
o que a tornava tão infeliz? Onde estava a catástrofe extraordinária
que a transtornava? E levantou a cabeça, olhando em sua volta, como para
procurar a causa que a fazia sofrer. Emma Bovary sofre, como lhe diz a criada um dia, do mesmo mal que uma sua conhecida: uma espécie de nevoeiro que ela tinha na cabeça, e os médicos para isso não podiam nada, nem tão pouco o senhor prior.
Um nevoeiro que se tornará cada vez mais
denso, pois não encontrando, por entre as abertas, uma Luz que o
explique, só pode transformar-se numa consciência acusadora que lhe diz:
olha à tua volta, tens um marido que te adora, uma linda filha, uma
situação estável, o que te falta, afinal?
Pois é isto mesmo: Emma Bovary tem um marido que a adora. E é aqui que Flaubert tem uma ideia de génio.
Como dar toda a dimensão à Insatisfação de Emma? Colocando-lhe à frente
um homem que é exactamente o seu oposto: profundamente satisfeito.
Charles Bovary, médico de província, loucamente apaixonado pela mulher e
julgando o seu amor retribuído, é um ser extremamente bondoso, criado
no campo, sem pretensões, sem ambições, plenamente satisfeito com a
vida. É deste tête-à tête de duas pessoas tão diferentes que
Flaubert tira todos os efeitos dramáticos do tema que se propõe tratar.
Emma, apesar de filha também de um camponês, estudou no convento e
aspirava a algo diferente.
Ela estava cheia de desejos,
de raiva, de ódio. Aquele vestido de pregas direitas ocultava um
coração transtornado, e aqueles lábios tão púdicos não diziam a tormenta
que lhe ia na alma (…) O que a desesperava era que Charles não parecia
fazer a menor ideia do seu suplício. A convicção em que ele vivia de
torná-la feliz parecia-lhe um insulto imbecil, e a sua segurança a esse
respeito uma ingratidão(…) Portanto, fez recair apenas sobre ele o ódio
múltiplo que resultava dos aborrecimetos (…) A mediocridade doméstica
impelia-a para fantasias luxuosas, as ternuras matrimoniais para desejos
adúlteros. Teria preferido que Charles lhe batesse, para poder
detestá-lo com mais razão e vingar-se dele.
Charles não lhe bate, pois adora-a e
assim, só lhe resta…. ela bater em si própria, mais e mais, até ao
flagelo final: o suicídio. Emma tem uma filha, mas acha-a horrorosa,
feia e não gosta nada dela ( pode perceber-se, apenas por estes
exemplos, o choque provocado por este romance nos meados do século XIX,
razão que o levou a ser acusado de ofensa à moral pública).
E como nada a preenche, ela mergulha em
comportamentos que hoje classificamos de BIPOLARES: ora repudia a filha,
ora se arrepende e enche-a de ternuras, ora sente vontade de viajar ou de voltar para o seu convento. Desejava ao mesmo tempo morrer e morar em Paris.
Insatisfeita, infeliz, como
os marinheiros em perigo, ela passeava pela solidão da sua vida uns
olhos desesperados, procurando ao longe qualquer vela branca nas brumas
do horizonte. As velas brancas encontra-as nos homens, no
adultério, que lhe dará alegrias tão exaltantes como quedas monumentais
num ainda maior vazio e desespero. E após de dois casos amorosos,
acossada por dívidas que não consegue pagar e que o marido desconhece,
Emma mata-se.
O que nenhum leitor deste romance espera
é o final surpreendente, onde tudo parece virar-se de pernas para o ar,
para nos deixar a chorar de pena de Charles e quase a cairmos na
tentação ( de que nos livramos a tempo, claro) de amaldiçoarmos Emma
Bovary.
O que acontece então? Charles, o
satisfeitinho, o provinciano, o rude, o limitado, transforma-se, perante
os nossos olhos abertos de espanto e de incredulidade, numa personagem
Sublime, que nos arranca um caudal de lágrimas de compaixão.
A sua vida tinha tido apenas um eixo à
volta do qual tinha gravitado: Emma. O seu estilo, beleza, delicadeza
e, sobretudo, tudo o que nela lhe era Estanho e Incompreensível,
exerciam nele uma sedução ímpar. Não espanta, assim, que a morte da
mulher o mate, também. Viverá muito pouco tempo, o tempo de o
descobrirmos de uma forma cativante e irresistivelmente enternecedora: Para
agradar-lhe, como se ela vivesse ainda, adotou as suas predileções, as
suas ideias; comprou botas envernizadas, passou a usar gravatas brancas.
Punha cosméticos no bigode e, tal como ela, assinava letras à ordem.
Emma corrompia-o do além túmulo.
Até à morte de Emma, nunca suspeitou dos
seus amantes.No profundo desmoronar da sua vida após a sua morte- vende
tudo para pagar as dívidas da mulher, que nunca questiona- descobre a
verdade. Um dia, numa escrivaninha até aí fechada, descobre as cartas
que ela escrevera a um dos amantes, Rodolphe, com quem tinha decidido
fugir, a certa altura. Charles lê-as e relê-as, deixa de sair, fecha-se
em casa e começou a constar que ele se fechava para beber.
Um dia, Charles vai ao mercado vender o seu cavalo- depois de ter vendido tudo o que tinha- e encontra Rodolphe. Empaliderem ao verem-se. O antigo amante da mulher convida-o para uma bebida. Rodolphe, belo homem, falava, falava e Charles perdia-se
em devaneios diante daquele rosto que ela amara. Parecia-lhe tornar a
ver qualquer coisa dela. Era um deslumbramento. Teria querido ser aquele
homem. E, sem mais, diz-lhe Charles:
- Não lhe quero mal.
Rodolphe ficara mudo.
E Charles, com a cabeça entre as mãos, com uma voz apagada e com o tom resignado das dores incomensuráveis:
-Não, já não lhe quero mal!
E acrescentou mesmo uma grande frase, a única que jamais dissera:
- A culpa foi da fatalidade!
No dia seguinte foi encontrado morto num banco e segurava na mão uma comprida madeixa de cabelos pretos.
Flaubert disse: Madame Bovary sou eu.
Esta frase ficou lendária. O que queria ele dizer com isto? Não
sabemos. Sabemos que ele mostrou como nenhum autor conhecido antes dele (
e depois, talvez), que a insatisfação é uma areia movediça que nos puxa
para o fundo do pântano da vida. Mas mostrou também que só deste
pântano podemos ver emergir criaturas sublimes como Charles Bovary.
E ainda sobre este magnífico romance, visite o Guia de Bordo.
Fonte: http://www.lereperigoso.pt/blog/em-todos-nos-dorme-deusa-de-emma-bovary-insatisfacao-flaubert.html