(Paulo Mendes Campos)
Ter
na véspera o cuidado de escancarar a janela. Despertar com a primeira luz
cantando e ver dentro da moldura da janela a mocidade do universo, límpido
incêndio a debruar de vermelho quase frio as nuvens espessas. A brisa alta, que
se levanta, agitar docemente as grinaldas das janelas fronteiras. Uma gaivota
madrugadora cruzar o retângulo. Um galo desenhar na hora a parábola de seu
canto. Então, dormir de novo, devagar, como se dessa vez fosse para retornar à
terra só ao som da trombeta do arcanjo.
Café
e jornais devem estar à nossa espera no momento preciso no qual violentamos a
ausência do sono e voltamos à tona. Esse milagre doméstico tem de ser. Da área
subir uma dissonância festiva de instrumentos de percussão — caçarolas,
panelas, frigideiras, cristais anunciando que a química e a ternura do almoço
mais farto e saboroso não foram esquecidas. Jorre a água do tanque e, perto
deste, a galinha que vai entrar na faca saia de seu mutismo e cacareje como em
domingos de antigamente. Também o canário belga do vizinho descobrir
deslumbrado que faz domingo.
Enquanto
tomamos café, lembrar que é dia de um grande jogo de futebol. Vestir um short,
zanzar pela casa, lutar no chão com o caçula, receber dele um soco que nos
deixe doloridos e orgulhosos. A mulher precisa dizer, fingindo-se muito
zangada, que estamos a fazer uma bagunça terrível e somos mais crianças do que
as crianças.
Só
depois de chatear suficientemente a todos, sair em bando familiar em direção à
praia, naturalmente com a barraca mais desbotada e desmilingüida de toda a
redondeza.
Se a Aeronáutica não se dispuser esta manhã a divertir a infância com os seus mergulhos acrobáticos, torna-se indispensável a passagem de sócios da Hípica, em corcéis ainda mais kar do que os próprios cavaleiros.
Se a Aeronáutica não se dispuser esta manhã a divertir a infância com os seus mergulhos acrobáticos, torna-se indispensável a passagem de sócios da Hípica, em corcéis ainda mais kar do que os próprios cavaleiros.
Comprar
para a meninada tudo que o médico e o regime doméstico desaconselham: sorvetes
mil, uvas cristalizadas, pirulitos, algodão doce, refrigerantes, balões em
forma de pingüim, macaquinhos de pano, papaventos. Fingir-se de distraído no
momento em que o terrível caçula, armado, aproximar-se da barraca onde dorme o
imenso alemão para desferir nas costas gordas do tedesco uma vigorosa paulada.
A pedagogia recomenda não contrariar demais as crianças.
No instante em que a meninada já comece a "encher", a mulher deve resolver ir cuidar do almoço e deixar-nos sós. Notar, portanto, que as moças estão em flor, e o nosso envelhecimento não é uma regra geral. Depois, fechar os olhos, torrar no sol até que a pele adquira uma vida própria, esperar que os insetos da areia nos despertem do meio-sono.
No instante em que a meninada já comece a "encher", a mulher deve resolver ir cuidar do almoço e deixar-nos sós. Notar, portanto, que as moças estão em flor, e o nosso envelhecimento não é uma regra geral. Depois, fechar os olhos, torrar no sol até que a pele adquira uma vida própria, esperar que os insetos da areia nos despertem do meio-sono.
A
caminho de casa, é de bom alvitre encontrar, também de calção, um amigo
motorizado, que a gente não via há muito tempo. Com ele ir às ostras na Barra
da Tijuca, beber chope ou vinho branco.
O
banho, o espaçado almoço, o sol transpassando o dia. Desistir à última hora de
ver o futebol, pois o nosso time não está em jogo. Ir à casa de um amigo,
recusar o uísque que este nos oferece, dizer bobagens, brigar com os filhos
dele em várias partidas de pingue-pongue.
Novamente
em casa, conversar com a família. Contar uma história meio macabra aos meninos.
Enquanto estes são postos em sossego, abrir um livro. Sentir que a noite desceu
e as luzes distantes melancolizam. Se a solidão assaltar-nos, subjugá-la; se o
sentimento de insegurança chegar, usar o telefone; se for a saudade, abrigá-la
com reservas; se for a poesia, possuí-la; se for o corvo arranhando o caixilho
da janela, gritar-lhe alto e bom som: never more.
Noite pesada. À luz da lâmpada, viajamos. O livro precisa dizer-nos que o mundo está errado, que o mundo devia, mas não é composto de domingos. Então, como uma espada, surgir da nossa felicidade burguesa e particular uma dor viril e irritada, de lado a lado. Para que os dias da semana entrante não nos repartam em uma existência de egoísmos.
Noite pesada. À luz da lâmpada, viajamos. O livro precisa dizer-nos que o mundo está errado, que o mundo devia, mas não é composto de domingos. Então, como uma espada, surgir da nossa felicidade burguesa e particular uma dor viril e irritada, de lado a lado. Para que os dias da semana entrante não nos repartam em uma existência de egoísmos.
Texto extraído do livro "O Cego de Ipanema", Editora do Autor – Rio de Janeiro, 1960, pág. 41.
Fonte: http://www.releituras.com/pmcampos_receita.asp
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