domingo, 30 de novembro de 2014

Ficção necessária

Aprender o chão, uma hipótese: valorar a função fáctica da linguagem.

A linguagem como garante dos elos interpessoais é uma ficção. Ela permite ligar, certo, mas também desligar, como as calúnias recorrentes das mulheres atestam. Como escreveu Leibniz, o mundo humano funciona na base do saneamento mental, isto é, calúnias e injúrias cumprem uma função: amenizar tensões (ainda que outros saiam lesados). Escreveu Lacan, por seu turno: a linguagem é fonte de dissídios e equívocos. Ainda assim, sem linguagem, sem mundo simbólico, perdemos o contacto com o real. Uma ficção necessária, pois.
  Yasujiro Ozu, Bom dia, 1959
Fonte:  http://cruezabruta.blogspot.pt/

O que significa regular a mídia

da BBC Brasil



Credito: Getty - Proposta de regulamentar mídia causa polêmica no país

Regulação, democratização ou censura à mídia? Os próprios termos usados para se referir à proposta de modificar as normas que regulamentam o setor de comunicação no Brasil já deixam claro o tamanho da polêmica que envolve o tema.
Muito falada mas pouco discutida, a regulação da mídia deve deve voltar a ganhar força a partir desta sexta-feira, pois está prevista para ser debatido em uma reunião do PT com início previsto para esta sexta-feira.
A BBC Brasil explica aqui os principais pontos da discussão.
Por que o tema está sendo debatido agora?
A regulação da mídia é uma bandeira histórica do PT. Durante a campanha à Presidência, o partido pressionou para que a presidente Dilma Rousseff encampasse a discussão em um eventual segundo mandato.
Após sua reeleição, a petista deu algumas declarações defendendo a regulação econômica da mídia. Ela negou repetidamente a intenção de regular conteúdo.
Em entrevista a jornais brasileiros no mês passado, ela disse que "Regulação econômica diz respeito a processos de monopólio e oligopólio." A presidente deve iniciar uma consulta pública sobre o tema no segundo semestre do ano que vem.
O enviado especial da ONU para liberdade de expressão, David Kaye, destacou, em entrevista à BBC Brasil, a necessidade de evitar monopólios na mídia - com mais competição, segundo ele, é maior a possibilidade de repórteres investigarem histórias que podem não ser favoráveis ao Estado.
"Só é preciso ter mais cuidado para que esta lei não dê ao governo uma forma de controlar o conteúdo", afirma.
A mídia precisa ser regulada?
Os grupos que defendem a regulação da mídia dizem que o projeto aumentaria a democratização do setor.
O FNDC (Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação), entidade que reúne diversos grupos que defendem mudanças na regulação, afirma, por exemplo, que cinco grandes emissoras de TV (Globo, SBT, Record, Band e Rede TV!) dominam o mercado brasileiro.
A Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão), diz, no entanto, que há no país 521 emissoras de TV - a conta inclui TVs regionais que retransmitem, em grande parte, conteúdo das grandes emissoras.
"A democracia se aprofunda em ambientes onde há mais diálogo, onde a diversidade de ideias, as diferenças regionais, têm espaço equilibrado na mídia em geral. O que nós queremos, em resumo, é mais democracia. E o caminho é a criação de um marco regulatório moderno", disse à BBC Brasil o presidente do PT, Rui Falcão.
Defensores da regulação da mídia destacam que alguns artigos da Constituição que falam do setor não foram regulamentados pelo Congresso.
Eles proíbem monopólios e oligopólios, estabelecem que a programação deve atender a critérios regionais e determinam regras para publicidade.


Credito: Reuters - Presidente pretende incentivar discussão em 2015

O presidente da Abert, Daniel Slaviero, afirma que, apesar da demora para regulamentação destes artigos, a mídia já é regulada.
"Quando fala-se em regulação parece que a mídia não é regulada. Isso é um erro, porque temos mais de 650 normas -portarias, decretos ou leis- que regulamentam o setor de comunicação social, não só rádio e TV como impresso."
Quem seria atingido pela regulação?
No Brasil, emissoras de rádios e TV são concessões públicas - é como se o governo "emprestasse" às empresas o espaço para transmissão, que é um bem público. Por isso, assim como outros setores em que há concessões, são passíveis de regulação.
Jornais, revistas e sites noticiosos não seriam atingidos por esta discussão.
Durante a campanha eleitoral, o PT aumentou o tom de suas críticas à imprensa, principalmente à revista Veja.
O presidente do partido diz que, nesta área, a sigla defende o projeto de lei que dá ao eventual ofendido o "direito de divulgação de resposta gratuita e proporcional à matéria ofensiva, com o mesmo destaque, publicidade, periodicidade e dimensão."
O governo já apresentou o projeto para regulação?
Há, provavelmente, mais dúvidas do que certezas sobre como seria a regulação da mídia no Brasil. Isso ocorre porque ainda não há um projeto definido.
A presidente Dilma afirma que o debate terá que ser feito com a sociedade. Até agora, ela já afirmou que o foco seria a proibição de monopólios e oligopólios, mas não especificou os critérios.
A posição da presidente contrasta, em parte, com a de seu partido. O PT tem posições mais à esquerda e apoia os movimentos sociais que lutam pela democratização da mídia.
"Não temos como ter posição firmada sobre isso enquanto não conhecermos o projeto concreto. Mas, de antemão, qualquer coisa que interfira no conteúdo tem repulsa e rechaço não só por parte dos veículos e profissionais como da sociedade como um todo, que considera liberdade de imprensa um dos pilares da democracia", diz o presidente da Abert.
Então qual o projeto que existe?
O FNDC formulou um projeto de lei de iniciativa popular e está, há cerca de um ano, colhendo assinaturas para que a proposta chegue ao Congresso. São necessárias 1,3 milhão de assinaturas - o mecanismo é semelhante ao que criou a Lei da Ficha Limpa.
Entre os principais pontos da proposta estão:
1. Impedir a formação de monopólio e a propriedade cruzada dos meios de comunicação (um mesmo grupo não poderá, por exemplo, controlar diretamente mais do que cinco emissoras, e não receberá outorga se já explorar outro serviço de comunicação eletrônica no mesmo local, se for empresa jornalística ou publicar jornal diário)
2. Veto à propriedade de emissoras de rádio e TV por políticos
3. Proibição do aluguel de espaços da grade de programação (para grupos religiosos ou venda de produtos, por exemplo)
4. Criação do Conselho Nacional de Comunicação e do Fundo Nacional de Comunicação Pública


Credito: Agencia Brasil - Mídia foi um dos alvos dos protestos de junho de 2013

O presidente da Abert classifica o projeto como atrasado, porque ele não tem regras, por exemplo, para a internet.
Slaviero afirma também que é um erro confundir rede de programação com propriedades - segundo eles, diferentes emissoras não pertencem ao mesmos donos, mas transmitem em parte conteúdos semelhantes para apresentar novelas e conteúdos nacionais.
Ele diz que a mídia já é plural. Segundo ele, por exemplo, São Paulo tem 21 canais abertos - "só fica atrás de Nova York".
O representante das emissoras também classifica como "impeto autoritário" a criação de conselhos de comunicação.
Esta proposta inclui regulação de conteúdo?
O projeto aponta diretrizes para a programação de emissoras, sem fazer referência a conteúdo.
A proposta determina, por exemplo, que emissoras afiliadas a uma rede de televisão deverão dedicar pelo menos 30% da grade com produção regional. Já as nacionais precisam destinar 70% da programação a conteúdo nacional, e pelo menos duas horas por dia a jornalismo.
Também há regras relacionadas a crianças e adolescentes, como a proibição de publicidade dirigida a crianças com menos de 12 anos.
Propostas semelhantes a esta provocaram polêmica em 2010, ao serem apresentadas pelo então ministro da Comunicação, Franklin Martins. O projeto, que previa a regulação de conteúdo, foi engavetado pela presidente Dilma.
Mas ainda hoje a proposta de "controle social da mídia" é apontada por críticos como um exemplo de que o PT teria a intenção de censurar a mídia.
Regular a mídia significa restringir a liberdade de imprensa?
O presidente da Abert, Daniel Slaviero, diz que ainda não é possível discutir o significado da regulação econômica, porque o governo não apresentou a proposta. Mas ele é contrário à regulação de conteúdo prevista, por exemplo, no projeto de lei de iniciativa popular.
"Quando se fala em regulação da mídia no sentido de acompanhar, fiscalizar, o conteúdo das emissoras, controle social da mídia, é óbvio que isso tem um viés de interferência no conteúdo, e conteúdo não pode sofrer intervenção. A mídia pode ser responzabilizada pelos eventuais excessos: tem Código Civil, Penal, etc. Mas acho que qualquer iniciativa que, mesmo de forma indireta, interfira no funcionamento é uma interferência indevida."
Ele usa como exemplo a determinação de um percentual mínimo de tempo dedicado à programação infantil, por exemplo. "Depois determinam para público infanto-juvenil, para jovens-adultos...", o que retiraria, assim, a liberdade da emissora de determinar sua própria programação.
O presidente do PT, Rui Falcão, afirma que o partido nunca defendeu e não defende a censura.
"Quando a ideia de um conselho - mecanismo usado inclusive em vários países desenvolvidos - foi apresentada pelo governo, ela foi imediatamente demonizada pela mídia monopolizada e sequer foi debatida. Minha posição é de que o tema precisa ser discutido democraticamente, porque o Brasil não pode continuar refém de grupos de interesses."
Fonte: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2014/11/141128_regulacao_midia_lab

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Patrulhamento do “politicamente correto” assombra professores


Patrulhamento do “politicamente correto” assombra professores

Cristina Charão - Para especialistas, conflitos entre educadores e alunos revelam campos de tensões ainda não resolvidos na sociedade e devem ser respondidos pedagogicamente.
Quando professores e alunos passam pelos portões da escola, carregam com eles não só livros, cadernos, lápis ou canetas. Trazem consigo também o que leram no jornal ou viram na TV, o que compartilharam na internet e tudo o mais que ouviram, conversaram, experimentaram pelo caminho. Professores e alunos carregam para a escola suas crenças, descrenças, certezas, incertezas e também opiniões e questionamentos que circulam pelas ruas.
Ou seja: os portões não têm o poder mágico de anular a história dos indivíduos que passam por eles e, por consequência, tampouco neutralizam os conflitos que podem nascer do encontro de visões distintas de mundo em uma sala de aula. “É uma grande ingenuidade achar que pode haver ação humana neutra”, diz Pedrinho Guareschi, professor do programa de pós-graduação em psicologia social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ele, que foi orientando de Paulo Freire, lembra que é justamente do encontro entre diferentes posições que nasce o processo pedagógico.
Mas quando os conflitos do lado de fora se acirram, os ânimos dentro da escola também se influenciam. “É substancialmente mais fácil uma educação em uma sociedade em que haja consenso sobre o que é belo, feio, certo e errado”, diz José Sérgio Fonseca de Carvalho, doutor em Filosofia da Educação pela Universidade de São Paulo, professor da Faculdade de Educação na mesma instituição e colunista de Educação. “Mas vivemos, no Brasil, um momento de absoluta diversidade de posição e absoluta incomunicabilidade entre essas posições,” avalia. Neste embalo, o que seria oportunidade de educar reduz-se a confronto. E sem sentido.
Patrulhamento
Um professor de cursinhos pré-vestibulares em São Paulo – que pediu para não ser identificado – reclama, por exemplo, do que ele chama de “patrulha do politicamente correto”. “É uma patrulha tão cega de alguns alunos, sempre em busca de alguns indícios que, na opinião deles, mostram algum tipo de preconceito escondido que é o suficiente para que você seja alvo do ódio e perseguição”, diz ele. Como exemplo, conta que fez um comentário despretensioso sobre não gostar de lojas de utilidades domésticas durante uma aula e teria sido chamado de “machista nojento” por uma aluna. Ele se diz tolhido por este tipo de postura, que considera belicosa.
José Sérgio contextualiza a questão. “Não há por que a gente temer o conflito: a relação professor aluno é uma relação pautada pelo conflito”, diz. “A questão é como responder pedagogicamente aos conflitos que estão instalados.”
E não há fórmula pronta a ser seguida pelos docentes, mas exclusivamente um preceito que deve balizar a prática pedagógica: a busca permanente do equilíbrio entre as convicções pessoais e o papel do professor como parte de uma instituição – a escola – regida por valores sociais, como, por exemplo, o combate a todo tipo de preconceito, a busca da igualdade racial e de gênero, a laicidade do Estado.
O professor Guareschi recorre novamente a Paulo Freire – “não há um que sabe mais e outro que sabe menos; há um que sabe uma coisa e outro que sabe outra coisa” -, para indicar que a busca desse equilíbrio passa justamente por acolher os questionamentos dos outros frente a questões.
“A essência do processo pedagógico é fazer perguntas”, diz. Quando a escola se pretende neutra e deixa de ser o espaço para se questionar, passa a formatar e não formar cidadãos e cidadãs.
E quando esse ambiente não está dado no ambiente escolar, seja qual for o motivo? O professor de pré-vestibulares ouvido pela reportagem – que descreve as ações de patrulha a que tem sido submetido no seu trabalho – lembra, no entanto, que esta dinâmica de discussão e debate de ideias não cabe em aulas de cursinho, voltadas para a transmissão de conteúdos muito específicos.
Questão de classe
O professor aponta na direção das escolas ou, mais especificamente, de determinadas escolas “de elite” – que formam a maioria dos alunos que fazem parte do público que procura os cursinhos preparatórios – e que se dedicariam a uma formação mais crítica dos alunos, para indicar a origem do que considera um autoritarismo dos alunos.
Ele reconhece que é importante estar atento para não se reproduzirem o racismo, o machismo, a homofobia, mas se diz incomodado com a “patrulha injusta”.
De forma sintomática, aquilo que é considerado um avanço – o reconhecimento de que a maneira como falamos ou nos referimos às minorias sociais é também uma forma de reprodução dos preconceitos – parece não ter chegado justamente à população que mais é vitimada pela exclusão social. Na escola pública, que recebe a imensa maioria dos filhos das classes mais pobres, o “politicamente correto” passa longe.
“Ninguém tá nem aí, há deboches de todo tipo”, relata uma professora de português da rede municipal de Porto Alegre, que também pediu para não ter seu nome citado.
Ela conta que é muito comum o conhecido “pegar no pé” por conta da orientação sexual dos colegas e ver alunos gritando ofensas raciais – inclusive, alunos negros. Mas o deboche alcança também o próprio politicamente correto. “Outro dia, um deles me disse: ”Só não deixa eu ir ao banheiro porque sou negro”. E ele era branco!”
O que é da escola?
Mais do que com as piadas sem graça, a professora mostra-se preocupada com o fato de que a concepção de escola internalizada pelos alunos igualmente reflete o ideário da escola neutra, focada na transmissão do conteúdo. Ela narra um episódio revelador: “Eu propus aos alunos que participássemos de um concurso, produzindo vídeos sobre a questão do negro, partindo da história de Zumbi do Palmares. Um aluno, negro, me contestou, me enfrentou até em sala de aula dizendo que onde já se viu, isso não era coisa para se fazer na escola.”
O que é ou não é “coisa para se fazer na escola” é foco permanente de disputas que se expressam também na postura das direções e coordenações e, frequentemente, dos pais em relação ao conteúdo e ou práticas pedagógicas propostas por professores. Em grande parte dos casos, essas disputas ganham contornos moralizantes, como ocorreu – mais de uma vez – com uma professora de português da rede privada de Porto Alegre.
Ela conta que a presença da palavra “coito” em um texto que ela havia selecionado para ler com alunos da segunda etapa do Ensino Fundamental foi o suficiente para ouvir reclamações. Em outro episódio, a menção ao hábito de fumar também foi questionada. “As pessoas que fazem a escola têm se achado muito modernas, mas em geral eu vejo muitos discursos prontos”, diz a professora. “E o pior é que esta coisa toda do politicamente correto acaba mascarando as questões mais profundas.”
Um efeito disso parece ser o enquadramento também dos alunos a esta lógica moralizante. Com esta professora, os alunos estranham e alguns até reclamam que livros infantojuvenis, indicados pelos programas de livros didáticos e de incentivo à leitura para a idade deles, contenham termos como “putz” ou “merda”. “A escola continua trabalhando com esta coisa da aura da criança ingênua, pura. Parece não haver uma discussão sobre este suposto ser angelical com quem trabalhamos”, desabafa.
Para Pedrinho Guareschi, a ideia da escola neutra mascara perguntas importantes. “”Que tipo de sociedade nós queremos?” é a pergunta que deve guiar toda ação educativa”, afirma ele. “A questão é que, como em muitas sociedades ninguém está contente, estamos vivendo convulsões em todas as sociedades, nós temos de parar para discutir o que queremos. E a educação tem de estar dentro disso.”
Pressões e política
Os conflitos de caráter político-ideológico que permeiam a educação não se expressam exclusivamente como um fenômeno de sala de aula. Num momento da história do país em que se intensificam os debates sobre os diferentes tipos de discriminação – racial, de gênero, por orientação sexual -, em que as mudanças no cenário de distribuição de renda põem em questão as divisões de classe social e em que temas envolvendo as liberdades individuais e visões religiosas também se tornam foco de discussões, também na área da educação isso tudo vem à tona.
Há dois anos, o projeto Escola sem Homofobia do Ministério da Educação transformou-se no centro de uma longa polêmica sobre a tematização da sexualidade nas escolas. Representantes de igrejas evangélicas e a bancada conservadora do Congresso Nacional pressionaram o governo federal, que acabou desistindo da distribuição do material pedagógico que serviria à discussão da orientação se­xual e dos preconceitos e violências relacionados. Mais recentemente, ganhou notoriedade nas redes sociais um site que reúne denúncias contra professores que utilizariam o espaço escolar para “doutrinar” os alunos. No caso, a “doutrina” denunciada inclui questões como a reforma agrária, o direito de propriedade, os direitos da população GLBTT e o que são consideradas “versões de esquerda” da história.
A tentativa de cristalizar o conhecimento em versões estanques é apontada como grande ameaça a um projeto de educação democrático. “Quem quer continuar dominando não aceita uma nova prática educativa”, alerta Guareschi. “O que pode fazer da escola um lugar emancipador em termos políticos não é apresentar a posição A, B ou C, liberal, socialista ou anarquista, mas sim ser o espaço onde estão reunidas pessoas que têm várias posições”, avalia José Sérgio Carvalho. “A grande vantagem de estar no espaço escolar não é apreender uma dessas posições, mas entender as razões que cada um, nessa pluralidade de experiências, tem para tomar as suas decisões.
Texto postado originalmente em:
http://revistaeducacao.uol.com.br/textos/210/artigo327567-1.asp
Fonte:  http://controversia.com.br/11665

domingo, 23 de novembro de 2014

Antes que o mundo acabe

“Para lidar com coisas mais complicadas, a gente precisa crescer. Por isso que a gente casa com mulheres. Porque elas são complicadas e pra lidar com elas a gente tem que crescer. Entendeu?”

Antes que o Mundo Acabe
Versão cinematográfica de Antes que o Mundo Acabe, com direção de Ana Luiza Azevedo

Em tempos de globalização e acesso à internet, conhecer o mundo através de cartas parece algo um tanto ultrapassado, mas em Antes que o Mundo Acabe, de Marcelo Carneiro da Cunha, livro publicado no ano de 2000, vemos que tal situação pode ser bastante instigante. O livro é uma novela juvenil narrada pelo protagonista Daniel, um estudante do Ensino Médio, que vive as alegrias e os conflitos da adolescência.
O jovem tem uma família legal e namora Mim, a vocalista de uma banda de rock. Tal qual muitos adolescentes, Daniel sabe ser um bom amigo e colega, o que o faz ajudar Lucas, um menino pobre que estuda na mesma escola particular, e é discriminado por ser um bolsista, adotado e ex- detento da Febem.
Daniel vive harmonicamente com o padrasto, a mãe e a avó. Toda essa paz é chacoalhada quando o menino recebe uma correspondência da Tailândia: é uma carta de seu pai biológico, o qual nunca conhecera. O menino vive seu primeiro conflito interno e é com muita relutância, e com muito incentivo de Antônio, o padrasto, que o jovem lê a carta. Nesta correspondência havia algumas fotos e informações que o pai, até então ausente, resolveu revelar ao filho. Seu progenitor comentou sobre as várias viagens que fez pelo mundo, trabalhando como fotógrafo, falou sobre a malária que pegara três vezes e sobre a região que vivia no momento, a Tailândia.
Mesmo não admitindo, a correspondência desperta a curiosidade de Daniel pelo universo do pai, o que o leva a pesquisar sobre o local em que ele vive. Ao mesmo tempo em que há essa curiosidade, existem sentimentos adormecidos, como o de rejeição, raiva e falta de amor. Além disso, existe o medo de que um possível contato com o pai venha desestabilizar sua relação com a família, temor amenizado por Antônio, que diz:
“Sabe, a vida é uma coisa muito completa, a gente não pode comprar em partes. A sua vida inclui uma mãe, uma avó, uma escola, uma namorada, dois pais. É isso, e você vai precisar lidar com isso e tirar o máximo do que a situação tiver para oferecer. Para lidar com coisas mais complicadas, a gente precisa crescer. Por isso que a gente casa com mulheres. Porque elas são complicadas e pra lidar com elas a gente tem que crescer. Entendeu?”  (página 55)
Daniel alega para Antônio que ele não tinha que lidar com um cara que o abandonara ainda bebê, que não quisera saber dele e nem da mãe. O menino achava que não tinha de passar por isso. O jovem se perguntava por que ele tinha de saber disso? O padrasto lhe diz:
“Porque ele existe, porque faz parte da sua história, e porque talvez as coisas não sejam assim tão simples. Você vai ter que se arriscar e saber mais. É complicado, é necessário. Só isso. Aliás, pode ser bom. Nos últimos tempos você só pensava na sua namorada, mais nada. Quem sabe assim você diversifica um pouco as suas preocupações. Que tal?”  (página 55)
Assim, um novo Daniel vai se desenhando na narrativa. O leitor acompanha o amadurecimento do jovem que, fora os conflitos pessoais, também está insatisfeito com coisas que acontecem na escola. Paralelo às correspondências paternas, há também na história uma inconformidade de Daniel em relação ao colégio e sobre as falsas acusações de roubo que o discriminado Lucas é apontado. Tudo isso faz Daniel perceber o quanto ele não pensa como aqueles jovens riquinhos, o quanto ele está descontextualizado daquela instituição de cunho religioso e extremamente preconceituosa.

marcelo-carneiro
Marcelo Carneiro da Cunha, autor do livro

Ao receber a terceira carta do pai, ele lhe explica que viajou muito pelo mundo e é funcionário de um projeto chamado Antes que o Mundo Acabe, que faz da fotografia uma maneira de preservar a história e cultura dos locais, antes que essas desapareçam, devido a modernidade galopante e a globalização. O pai esclarece:
“Antes que o mundo como ele era, de gente diferente, de culturas diferentes, histórias próprias, antes que esse mundo acabe, um grupo de fotógrafos, de vários países, de várias culturas, vai fotografar esse mundo, pra que a gente possa se lembrar como ele era, um dia, quando ele tiver acabado… Comecei a pensar, Daniel, sobre tudo, coisas grandes e pequenas, e pensei que existia uma pessoa pra quem eu gostaria de enviar algumas imagens desse mundo antes que ele acabe. Alguém que sempre fez parte do meu mundo, sem nunca ter estado nele. A malária faz mais do que nos deixar tremendo horas sem fim. Ela traz uma lucidez, nem saberia explicar.”  (página 64)
Tal correspondência comove o menino, que pesquisa mais a fundo sobre o Cambjoja, Nepal, Ruanda… Mas para um bom conflito adolescente, não basta apenas uma insatisfação escolar, o retorno de um pai… há também o amor. Além do tormento interno, Daniel leva um fora da namorada/ficante, que vai viajar pelo Brasil com sua banda. Pronto, o guri se acha o cara mais abandonado do mundo! É nesse momento que ele resolve escrever sua primeira carta ao pai. A correspondência apenas diz: “Pai, porque você me abandonou?”
O pai responde, dizendo que nunca o abandonou especificamente, mas que largou toda uma vida. Explica que quando sua mãe engravidara, ele foi chamado para trabalhar no Líbano, proposta que não recusou. Diz também que a mãe de Daniel não quis acompanhá-lo, atitude que foi aceita e respeitada por ele. Com os fatos mais esclarecidos, com a vida passada a limpo, o menino se corresponde com o pai assiduamente e, em todas suas cartas, também manda fotografias, imagens que seu olhar consegue capturar.
Antes que o Mundo Acabe é uma história de amadurecimento, é uma história sobre a beleza das pessoas e do mundo, mesmo com todas as suas diferenças. Quando se termina a leitura desta obra é inevitável pensarmos o quanto é urgente a necessidade de que nos tornemos seres melhores, que amemos as pessoas, que aproveitemos a vida da melhor forma possível… que façamos das distâncias uma forma de reaproximação com o melhor de nós mesmos e com o melhor das pessoas as quais gostamos.

Referência:

CUNHA, Marcelo Carneiro da. Antes que o Mundo Acabe. 17. edição. Editora Projeto. Porto Alegre: 2012.
Fonte:  http://homoliteratus.com/antes-que-o-mundo-acabe/

sábado, 22 de novembro de 2014

Francisco, o radical



O papa confirma sua opção pelos pobres e sua estatura de estadista ao reunir em Roma os movimentos populares 
 
por Claudio Bernabucci 
Papa
      Depois de encontrar o papa, Stedile observa: "Ele está mais à esquerda do que muitos entre nós"

Poucos dias depois do tempestuoso epílogo do Sínodo sobre a família, se alguém considerasse incerta a rota com que o papa Francisco dirige o navio da Igreja, teria rapidamente de mudar de opinião. Com firmeza absoluta, própria de um monarca, Bergoglio defenestrou um dos principais opositores, o cardeal estadunidense Raymond Burke, do cargo de prefeito do Tribunal Supremo, o máximo órgão jurisdicional da Santa Sé. Depois de ter criticado Francisco pelas posições expressas contra os excessos do capitalismo e de se posicionar como tradicionalista em todas as questões controvertidas do recente Sínodo, Burke teve a ousadia, dias atrás, de declarar que a Igreja era “um barco sem leme”. Foi assim que o timoneiro jesuíta, para demonstrar o contrário, considerou conveniente para o cardeal o repousante novo encargo de Patrono da Ordem de Malta, ilha do Mediterrâneo onde nasceu a rosa dos ventos, a fim de permitir-lhe tempo suficiente para uma reflexão mais ponderada sobre assuntos de navegação.
Nos mesmos dias, beneficiando-se de uma rodada de nomeações, o papa Francisco aproveitou para dar continuidade à sua revolução organizacional na Cúria Romana, cortando cabeças hostis e promovendo prelados fiéis, como no caso do novo responsável pelas relações com os Estados, ou seja, o ministro do Exterior da Igreja, o bispo Paul Richard Gallagher, inglês de 60 anos, nascido em Liverpool no mesmo subúrbio dos Beatles, Allerton, e com ampla experiência internacional nos cinco continentes.
É impressionante, na figura do papa Francisco, a mistura de dois estilos e culturas que raramente se encontram no mesmo indivíduo, muito menos em um religioso: a espiritualidade e a delicadeza de quem vive profundamente a compaixão pelos seres humanos, os mais humildes em particular, e, de outro lado, o temperamento atrevido e a mão firme para perseguir coerentemente seu projeto religioso, recorrendo aos meios políticos mais audaciosos. A quintessência dos espíritos franciscano e jesuíta, harmoniosamente mesclados.
Recentemente, ajudou na compreensão e definição do personagem um dos melhores aliados de Francisco na Cúria Romana, o enérgico cardeal alemão Walter Kasper, considerado um dos teólogos mais ouvidos. Em recente conferência na Universidade Católica da América, em Washington, ele declarou que “não se aplicam as desgastadas definições de progressista e conservador” ao papa argentino. Francisco “não representa uma posição liberal, mas uma posição radical, no sentido original da palavra, de quem vai à raiz”.
Essa nítida definição do cardeal alemão ajuda também a entender melhor outra iniciativa original que Bergoglio teve no fim de outubro. A notícia não é nova para o público europeu ou americano, alcançado por uma mídia disposta a dar grande atenção ao encontro que o papa teve com os movimentos populares do mundo inteiro. Não aconteceu o mesmo no Brasil, onde a chamada grande mídia permaneceu bastante distraída, descuidando, em particular, da participação na reunião em Roma de um importante brasileiro, o líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, João Pedro Stedile. Pela primeira vez na história do papado, o Vaticano hospedou e acompanhou esse tipo de encontro, chamado Terra, Casa e Trabalho, que reuniu cem organizações populares do planeta, das associações camponesas aos cocaleiros, dos catadores de lixo aos movimentos cooperativos.
O discurso que o papa Francisco proferiu para os participantes do encontro demonstrou efetivamente todo o radicalismo de suas posições sociais. Surpreenderam muito não só os conceitos expressos, mas também a terminologia. O papa argentino voltou a falar da “cultura do descarte”, que “acontece quando, no centro de um sistema econômico, está o deus dinheiro e não o homem, a pessoa humana”. Na sua concepção, a verdadeira soberania no mundo é exercida hoje por “um sistema econômico centrado no deus dinheiro, que tem também necessidade de saquear a natureza para manter o ritmo frenético de consumo que lhe é próprio”. Esse sistema adota a guerra como instrumento regulatório dos conflitos. Uma guerra não do tipo clássico, mas fragmentada e global ao mesmo tempo: “... estamos vivendo a terceira guerra mundial, mas por etapas. Há sistemas econômicos que, para sobreviver, devem fazer a guerra. Então fabricam-se e vendem-se armas, e assim, obviamente, salvam-se os balanços das economias que sacrificam o homem aos pés do ídolo dinheiro”.
Diante desse sistema, o papa valoriza com veemência a cultura da solidariedade expressa pelos movimentos populares, que ele incita “a lutar pela dignidade da família rural, pela água, pela vida e para que todos possam se beneficiar dos frutos da terra (...) Não o digo só eu, mas está escrito no Compêndio da doutrina social da Igreja”.
Depois de falar “do escândalo da pobreza, promovendo estratégias de contenção que só tranquilizam e transformam os pobres em seres domesticados e inofensivos”, Francisco toca a questão da alimentação: “Quando a especulação financeira condiciona o preço dos alimentos, tratando-os como uma mercadoria qualquer, milhões de pessoas sofrem e morrem de fome. Por outro lado, descartam-se toneladas de alimentos. Isso constitui um verdadeiro escândalo. A fome é criminosa, a alimentação é um direito inalienável”.
A todos os excluídos o papa entrega a construção do futuro da humanidade numa lógica de integração, um futuro feito de “terra, casa e trabalho” para todos. Um futuro construído graças a um “protagonismo” que “transcende os procedimentos lógicos da democracia formal”.
Como afirmou Stedile numa entrevista a um jornal italiano, “do encontro com Francisco, que se mostrou mais à esquerda do que muitos de nós, nascem duas iniciativas: formar um espaço de diálogo permanente com o Vaticano e, independentemente da Igreja, mas aproveitando a reunião de Roma, construir no futuro um espaço internacional dos movimentos do mundo, para combater o capital financeiro, os bancos e as grandes multinacionais. Os inimigos do povo são esses. Como diria o papa, este é o Diabo”. 

Fonte:http://www.cartacapital.com.br/revista/826/francisco-o-radical-8297.html 

Mudar para sempre ou para o de sempre?

maodinheiro
Mestre Janio de, Freitas,com o misto de esperança e ceticismo de quem  viu a história transcorrer por décadas, escreve hoje na Folha algo que precisava ser dito sobre este caso da Operação Lava-Jato.
Que a “limpeza”das relações entre política e empresas – e, especialmente, as grandes empreiteiras de obras públicas –  está bem longe de ser assegurada por ela.
Janio, um dos mais incansáveis e combativos jornalistas a denunciá-la – quem não se lembra de sua inspiração de publicar com antecedência, em semi-código, o resultado de licitações “armadas” –  sabe do que está falando.
Sem mudar a política do dinheiro, de que tanto se gosta, não se terminará com o dinheiro escuso na política.

Mudar para continuar

Janio de Freitas
Um escândalo é um escândalo, não é uma solução. O otimismo, que não é só de Dilma Rousseff, mas foi por ela sintetizado na convicção de que o escândalo da Petrobras “pode mudar o país para sempre” ao “acabar com a impunidade”, já foi submetido a muitos testes. E não passou por nenhum.
No caso extremo dessas esperadas mudanças a história oferece a fileira de golpes de Estado, consumados ou não. A cada recuperação do regime legal estuprado pelos militares, “nunca mais haveria golpe”. Até vir o seguinte.
Entre nós, na melhor hipótese, mudam-se os métodos. Já na primeira eleição com princípios democráticos, pós-ditadura militar, exibiu-se o golpe eleitoral preventivo. Solucionou o temido risco de violência civil, em dimensão nacional, contra a conspiração e o golpe militar no caso da possível eleição de Lula. Agora mesmo passeia pelas ruas de São Paulo uma gangue de marcolas ideológicos pedindo um golpe sob a forma de impeachment.
Passa-se o mesmo com a impunidade. Além de não acabar só porque a prisão de empreiteiros seria exemplar, assume no próprio escândalo da Petrobras uma nova face, para facilitar-lhe a permanência. A delação premiada é uma forma de impunidade. O patife delata alguns comparsas, devolvem o que ninguém sabe se é o todo do que furtaram, e vão viver em casa como aposentados ricos (o que devolveram não inclui o que ganharam com uso do dinheiro furtado, nem há quem saiba qual foi esse ganho total). Em palavras de Rodrigo Janot, que mantém um desempenho muito acima de seus dois últimos antecessores como procurador-geral da República, e falou à Folha:
“Eu só não aceito perdão judicial [no acordo de delação]. Se for um crime que tenha já [direito a] semiaberto, sempre que for possível eu vou botar no aberto. Vá cumprir pena em casa, sem problema nenhum”.
Importante na delação premiada não é a conduta criminosa, antissocial, é a recuperação do valor furtado –o dinheiro ou o bem valioso posto como valor acima de todos. Só o preconceito moral distinguirá o cidadão honesto do criminoso premiado pela delação. E pelo investimento do furto, porque, entre os dois, o tolo não é ele.
Ainda assim, um outro otimismo ruiu aos primeiros depoimentos de empreiteiros presos. Negaram-se a responder aos inquiridores, contrariando a convicção dos controladores da Operação Lava Jato, exposta por Rodrigo Janot, de que as prisões levariam os empreiteiros “a falar mesmo”. Se não respondem, não aceitam a delação premiada. Se não a aceitam, o comprometimento dependerá de que o delator-acusador prove o que disse ou investigações policiais consigam fazê-lo. Dificuldade que, no caso dos grandes corruptores da administração pública, não costuma perturbar a impunidade, aqui ou lá fora.
Fonte: http://tijolaco.com.br/blog/?p=23122 

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Como ser tucano sem ser hipócrita: um texto para a história


 Autor: Fernando Brito
anesia
O empresário Ricardo Semler, que ficou nacionalmente conhecido com seu best-seller “Virando a própria mesa – uma história de sucesso empresarial Made in Brazil”, escreve hoje, na Folha, o melhor texto que já li sobre o escândalo da Operação Lava-Jato.
Semler esclarece logo que não é petista, mas tucano, filiado ao partido por nada mais que gente como Montoro, Covas, Serra e FHC. E que votou contra Dilma.
Tem suas convicções neoliberais, certamente, mas não é um cínico.
E diz com todas as letras que a corrupção nunca foi tão pequena no Brasil.
O que não é, claro, razão para tolerá-la ou para “deixar para lá” a roubalheira, mesmo que em escala melhor.
Semler dá uma bordoada em quem acha que tudo está acontecendo “contra” Dilma e é claro ao afirmar que é ela quem está criando as condições para que a lama venha à tona: “É ingênuo quem acha que poderia ter acontecido com qualquer outro presidente. Com roubalheiras vastamente maiores, nunca a Polícia Federal teria tido autonomia para prender corruptos cujos tentáculos levam ao próprio governo”
É algo para que se faça o que jamais recomendo aqui, por deixar que cada um chegue às suas conclusões. Mas que, neste caso, o faço: reproduzir e mandar para todos.
Leia, e você vai ler de um tirada só, sem parar, porque a honradez intelectual e moral  não tem partido.

Nunca se roubou tão pouco

Ricardo Semler
Não sendo petista, e sim tucano, sinto-me à vontade para constatar que essa onda de prisões de executivos é um passo histórico para este país
Nossa empresa deixou de vender equipamentos para a Petrobras nos anos 70. Era impossível vender diretamente sem propina. Tentamos de novo nos anos 80, 90 e até recentemente. Em 40 anos de persistentes tentativas, nada feito.
Não há no mundo dos negócios quem não saiba disso. Nem qualquer um dos 86 mil honrados funcionários que nada ganham com a bandalheira da cúpula.
Os porcentuais caíram, foi só isso que mudou. Até em Paris sabia-se dos “cochons des dix pour cent”, os porquinhos que cobravam 10% por fora sobre a totalidade de importação de barris de petróleo em décadas passadas.
Agora tem gente fazendo passeata pela volta dos militares ao poder e uma elite escandalizada com os desvios na Petrobras. Santa hipocrisia. Onde estavam os envergonhados do país nas décadas em que houve evasão de R$ 1 trilhão –cem vezes mais do que o caso Petrobras– pelos empresários?
Virou moda fugir disso tudo para Miami, mas é justamente a turma de Miami que compra lá com dinheiro sonegado daqui. Que fingimento é esse?
Vejo as pessoas vociferarem contra os nordestinos que garantiram a vitória da presidente Dilma Rousseff. Garantir renda para quem sempre foi preterido no desenvolvimento deveria ser motivo de princípio e de orgulho para um bom brasileiro. Tanto faz o partido.
Não sendo petista, e sim tucano, com ficha orgulhosamente assinada por Franco Montoro, Mário Covas, José Serra e FHC, sinto-me à vontade para constatar que essa onda de prisões de executivos é um passo histórico para este país.
É ingênuo quem acha que poderia ter acontecido com qualquer presidente. Com bandalheiras vastamente maiores, nunca a Polícia Federal teria tido autonomia para prender corruptos cujos tentáculos levam ao próprio governo.
Votei pelo fim de um longo ciclo do PT, porque Dilma e o partido dela enfiaram os pés pelas mãos em termos de postura, aceite do sistema corrupto e políticas econômicas.
Mas Dilma agora lidera a todos nós, e preside o país num momento de muito orgulho e esperança. Deixemos de ser hipócritas e reconheçamos que estamos a andar à frente, e velozmente, neste quesito.
A coisa não para na Petrobras. Há dezenas de outras estatais com esqueletos parecidos no armário. É raro ganhar uma concessão ou construir uma estrada sem os tentáculos sórdidos das empresas bandidas.
O que muitos não sabem é que é igualmente difícil vender para muitas montadoras e incontáveis multinacionais sem antes dar propina para o diretor de compras.
É lógico que a defesa desses executivos presos vão entrar novamente com habeas corpus, vários deles serão soltos, mas o susto e o passo à frente está dado. Daqui não se volta atrás como país.
A turma global que monitora a corrupção estima que 0,8% do PIB brasileiro é roubado. Esse número já foi de 3,1%, e estimam ter sido na casa de 5% há poucas décadas. O roubo está caindo, mas como a represa da Cantareira, em São Paulo, está a desnudar o volume barrento.
Boa parte sempre foi gasta com os partidos que se alugam por dinheiro vivo, e votos que são comprados no Congresso há décadas. E são os grandes partidos que os brasileiros reconduzem desde sempre.
Cada um de nós tem um dedão na lama. Afinal, quem de nós não aceitou um pagamento sem recibo para médico, deu uma cervejinha para um guarda ou passou escritura de casa por um valor menor?
Deixemos de cinismo. O antídoto contra esse veneno sistêmico é homeopático. Deixemos instalar o processo de cura, que é do país, e não de um partido.
O lodo desse veneno pode ser diluído, sim, com muita determinação e serenidade, e sem arroubos de vergonha ou repugnância cínicas. Não sejamos o volume morto, não permitamos que o barro triunfe novamente. Ninguém precisa ser alertado, cada de nós sabe o que precisa fazer em vez de resmungar.
Fonte: http://tijolaco.com.br/blog/?p=23197

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

A massacrante felicidade dos outros

 
 
“Ao amadurecer, descobrimos que a grama do vizinho não é mais verde coisíssima nenhuma. Estamos todos no mesmo barco. Há no ar um certo queixume sem razões muito claras.
Converso com mulheres que estão entre os 40 e 50 anos, todas com profissão, marido, filhos, saúde, e ainda assim elas trazem dentro delas um não-sei-o-quê perturbador, algo que as incomoda, mesmo estando tudo bem. De onde vem isso?
Anos atrás, a cantora Marina Lima compôs com o seu irmão, o poeta Antonio Cícero, uma música que dizia: ‘Eu espero/ acontecimentos/ só que quando anoitece/ é festa no outro apartamento’ .
Passei minha adolescência com esta sensação: a de que algo muito animado estava acontecendo em algum lugar para o qual eu não tinha convite. É uma das características da juventude: considerar-se deslocado e impedido de ser feliz como os outros são, ou aparentam ser. Só que chega uma hora em que é preciso deixar de ficar tão ligada na grama do vizinho.
As festas em outros apartamentos são fruto da nossa imaginação, que é infectada por falsos holofotes, falsos sorrisos e falsas notícias. Os notáveis alardeiam muito suas vitórias, mas falam pouco das suas angústias, revelam pouco suas aflições, não dão bandeira das suas fraquezas, então fica parecendo que todos estão comemorando grandes paixões e fortunas, quando na verdade a festa lá fora não está tão animada assim.
Ao amadurecer, descobrimos que estamos todos no mesmo barco, com motivos pra dançar pela sala e também motivos pra se refugiar no escuro, alternadamente. Só que os motivos pra se refugiar no escuro raramente são divulgados pra consumo externo.
‘Todos são belos, sexys, lúcidos, íntegros, ricos, sedutores, social e filosoficamente corretos. Parece que ninguém, nenhum deles, nunca levou porrada. Parece que todos têm sido campeões em tudo’.
Fernando Pessoa também já se sentiu abafado pela perfeição alheia, e olha que na época em que ele escreveu estes versos não havia esta overdose de revistas que há hoje, vendendo um mundo de faz-de-conta. Nesta era de exaltação de celebridades – reais e inventadas – fica difícil mesmo achar que a vida da gente tem graça.
Mas tem.
Paz interior, amigos leais, nossas músicas, livros, fantasias, desilusões e recomeços, tudo isso vale ser incluído na nossa biografia. Ou será que é tão divertido passar dois dias na Ilha de Caras fotografando junto a todos os produtos dos patrocinadores? Compensa passar a vida comendo alface para ter o corpo que a profissão de modelo exige? Será tão gratificante ter um paparazzo na sua cola cada vez que você sai de casa? Será bom só sair de casa com alguém todo tempo na sua cola a título de segurança? Estarão mesmo todas essas pessoas realizando um milhão de coisas interessantes enquanto só você está em casa, lendo, desenhando, ouvindo música, vendo seu time jogar, escrevendo, tomando seu uisquinho?
Tenha certeza que as melhores festas acontecem sempre dentro do nosso próprio apartamento.”
Fonte: https://biakushnir.wordpress.com/

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Mais amor e menos ódio, para começar a mudar o País

 
Sem a união da grande maioria da população brasileira, provavelmente nenhuma reforma de qualidade acontecerá. A relação respeitosa entre “direita” e “esquerda” será crucial para combater os vícios do nosso sistema, como o lobby, as atitudes maquiavélicas e os interesses próprios de políticos e conglomerados econômicos. 

As eleições de 2014 certamente serão uma página de destaque nos livros de história do Brasil num futuro breve.

Fatos para análises e abordagens acadêmicas não faltam: as manifestações de junho, a morte do Eduardo Campos, os erros grotescos das pesquisas, o papel questionável da mídia, entre outros temas, poderão confirmar que o ano do vexame brasileiro na Copa também foi um ano crucial para a evolução da nossa democracia.

Esse amadurecimento pode ser creditado aos milhões de brasileiras e brasileiros que se comprometeram com o pleito.

Ruas cheias de militantes, mídias sociais batendo records de mensagens são alguns exemplos do nível de envolvimento ocorrido. Nesse sentido, a espontaneidade da jornada de junho talvez explique o motivo de tanto engajamento, uma vez que diferentes ideologias foram às ruas com pelo menos uma ideia comum: o reconhecimento que o Brasil pode muito mais.

Todavia, a heterogeneidade desse movimento acabou sendo inimiga dos anseios comuns apresentados (e.g. melhoras de serviços públicos, reformas básicas e menos corrupção), pois a falta de diálogo entre ideologias auxiliou para dispersar e cessar as manifestações.

Um exemplo disso são as poucas conquistas de curto prazo obtidas, dentre tantas reivindicações apresentadas.

O desafio agora é construir uma massa crítica que seja capaz de conviver com as diferenças a ponto de conseguir se unir em torno de um objetivo comum, quando necessário for.

Dizem que o primeiro passo para consertar algo é o reconhecimento. Pois bem, praticamente todo Brasil quer mudança (e observem como o marketing de todas as campanhas abusou disso nesse pleito), então qual seria o próximo passo? O mais prudente pode ser avaliar o sistema e atacar, da maneira mais eficiente possível, as falhas existentes.

E aqui se observa um grande obstáculo: quem tem as melhores ferramentas para “consertar o Brasil”, a priori, são justamente instituições viciadas como os três poderes, a mídia e as grandes empresas (mercado capital).

Por mais que existam pessoas que tenham a vontade de virar o jogo dentro de cada segmento desse, seria muita ingenuidade acreditar que essa configuração de poder, que dita as regras há tanto tempo, vai querer mudar só com uma pressão pontual. Indubitavelmente, a cobrança deverá ser feita de maneira contínua e eficaz, até que as reformas necessárias sejam implantadas. E isso passa, necessariamente, pelo envolvimento de toda sociedade.

Citam-se, aqui, alguns desafios a serem superados:

Sabe-se que no Brasil o maior gasto relativo com impostos é das classes de mais baixa renda – cerca de dez vezes mais comparada com a parte mais rica, segundo o IPEA. Portanto, é muito difícil vislumbrar um Congresso, que aumentou significativamente sua quantidade de milionários, agir contra interesses próprios como uma reforma tributária progressiva.

Na mesma linha de raciocínio, é praticamente impossível imaginar a mídia abraçando qualquer ideia de regulação que auxilie na quebra do oligopólio atual. Não só por interesses financeiros, mas também pela influência política que esse ramo tem (quarto poder).

Muito pelo contrário, pode-se esperar da imprensa uma massiva campanha contra a sua regulamentação (que ela já chama de censura), ignorando experiências em países democráticos do mundo inteiro, desde os liberais EUA até a esquerda moderada como a Argentina, passando pela recente atitude da Inglaterra.

Outro calo no sapato certamente é o financiamento empresarial de campanha, uma vez que as grandes empresas do País não vão querer arriscar perder os seus benefícios políticos (facilitar licitações, por exemplo) que as ajudam a ter um retorno excelente de “investimento”.

Só existe um segmento da sociedade que conseguirá equilibrar forças com esses poderes a ponto de virar o jogo: a população. E, obviamente, quanto mais pessoas melhor! Tanto no campo quantitativo (pessoas nas ruas e nas mídias sociais) quanto no qualitativo (diferentes pensamentos e ideias), é muito importante a participação equilibrada de todos.

A má notícia sobre a situação de momento é que o começo de uma importante luta foi bem desanimador. Com todo o ódio que foi destilado entre eleitores durante o pleito e mesmo depois do resultado de domingo (26/10), não é possível nem sonhar com algum tipo de união pragmática.

Todos no mesmo barco

Uma mudança de comportamento deve ser vislumbrada. Para tanto, se o objetivo é mesmo realizar as reformas básicas necessárias para o desenvolvimento econômico e social do Brasil, é muito importante que todos brasileiros tenham a consciência de que, quanto mais divididos, mais enfraquecidos e, consequentemente, poucos avanços ocorrerão.

Para tanto, no mínimo, se deve ter empatia para entender a história e as necessidades do próximo, paciência para poder compreender o raciocínio desigual, respeito com ideais alheias, que podem ser caminhos diferentes para o mesmo fim, e humildade para aprender as mais diferentes formas de pensamentos.

É inconcebível, assim, ataques entre nordestinos e sulistas, petistas e tucanos, progressistas e conservadores, e por aí vai… Não só pelo ponto de vista ético ou filosófico, mas também pela lógica! Afinal, estão todos no mesmo barco que pode afundar sem o comprometimento e a ajuda mútua. O liberal assumido deve aprender a dialogar com a “esquerda caviar”, o marxista tradicional deve compreender a posição do “coxinha” e essa tolerância no debate será crucial para o entendimento de que, no fim, muitos objetivos são comuns.

Vale reafirmar, por fim, que o bem do nosso País passa pelo esforço de cada cidadão em aprender a cobrar, de forma coletiva, o que lhe é de direito e foi negado por tanto tempo em detrimento do interesse de poucos.

Nesse sentido, a união dos milhões de brasileiros e brasileiras será a base de uma democracia forte, na qual a vontade da subutilizada maioria efetivamente suplantará o desejo da poderosa minoria.
Fonte: http://brasildebate.com.br/mais-amor-e-menos-odio-para-comecar-a-mudar-o-pais/

terça-feira, 18 de novembro de 2014

A surpresa da história



Na queda do muro de Berlim, há 25 anos, muita coisa estava determinada e muita coisa foi acidental, mas tudo foi possível porque ninguém estava à espera. Há que recuperar a surpresa da história. 

Há 25 anos, a queda do muro de Berlim foi a surpresa do século. Ninguém a esperava, ninguém a previu. Ora, ao contrário do que se diz, ninguém aprecia surpresas. Por isso, há 25 anos que nos esforçamos por esquecer o assombro e a irrealidade do muro a cair, e do que veio a seguir: Ceaucescu fuzilado, Leninegrado outra vez São Petersburgo. E como conseguimos isso? Explicando e explicando — até não haver nada para explicar, nada para nos surpreender. E no entanto, a queda do muro a 9 de Novembro de 1989 devia-nos continuar a surpreender. Porque se apagarmos a surpresa, nunca compreenderemos o que aconteceu.  
A primeira maneira de “explicar” é ir ao fundo, escavar os “factores estruturais”. Deste ângulo, a chave parece ser o petróleo soviético. A União Soviética tinha um comércio externo de país do Terceiro Mundo: exportava energia e matérias-primas, e importava capitais e tecnologia. No caso do petróleo, dependia da sua extracção ser barata na URSS e de os preços serem altos nos mercados mundiais. Ora, em meados da década de 1980, os preços mundiais caíram, ao mesmo tempo que o petróleo soviético se tornou mais caro. A URSS perdeu simultaneamente receitas e produção, e deixou de poder sustentar os Estados vassalos. Tudo estaria determinado, a começar pela queda do muro em Berlim.
A outra forma de explicar consiste no contrário: é vir à superfície, dar importância ao acidental. Por exemplo, falar de Gunther Schabowski, o membro do Politburo da RDA que, na conferência de imprensa da noite de 9 de Novembro, foi suficientemente confuso sobre o novo regime de viagens ao estrangeiro para criar o rumor de que as passagens para o Ocidente iam ser abertas imediatamente. Ou de Harald Jager, o agente da Stasi de guarda ao muro, a quem os seus superiores deixaram sem instruções, e que, perante uma multidão a crescer, acabou mesmo por deixar passar toda a gente. Tudo teria acontecido de súbito, caoticamente.
Estas duas explicações são verdadeiras. Mas nem uma, nem outra nos não dão conta da surpresa. Porque é que ninguém previu a queda do muro?
Porque de facto ninguém estava a planear desmantelar o comunismo. Foi essa a primeira causa da surpresa. Na década de 1980, a liderança soviética percebeu que perdera a guerra tecnológica e a guerra do bem estar com o Ocidente. A União Soviética era o país das filas para o pão e as suas armas estavam obsoletas, como se constatara em Junho de 1982 na grande batalha aérea do vale de Bekaa, quando os aviões israelitas, de origem americana, abateram em duas horas 80 aviões sírios, de origem soviética, sem sofrer uma baixa. O desastre nuclear em Chernobyl (1986) tornou-se o emblema da decadência. As outras ditaduras comunistas estavam financeiramente arruinadas, com dívidas enormes ao Ocidente. Era preciso fazer alguma coisa. Mas Mikhail Gorbatchev, o mais jovem líder da União Soviética em décadas, era um idealista do comunismo. Não quis simplesmente renunciar à economia planificada e abrir os mercados, como já tinham feito os líderes da China. Julgou que podia gerar um novo dinamismo comunista aumentando a participação dos cidadãos.
Ora, a experiência da China e da União Soviética na década de 1980 mostrou que o comunismo, no sentido do domínio de um partido comunista (e nunca houve outro tipo de comunismo), é compatível com o capitalismo, mas é incompatível com a liberdade. Os doutrinadores do comunismo diziam o contrário: o comunismo era a negação do capitalismo, mas levaria a uma liberdade muito maior. Estavam errados. Nunca houve comunismo sem terror policial. Gorbatchev acreditou que, se lhes desse liberdade e participação, as populações entusiasmar-se-iam com a reconstrução do comunismo. Não se entusiasmaram. A experiência serviu apenas para oligarquia comunista se desorientar e dividir.
Mas a China conciliou o domínio do partido comunista com o capitalismo através do massacre de Tiananmen (Junho de 1989), porque pôde traduzir esse domínio em termos nacionalistas. O comunismo europeu, porém, ao contrário do chinês, do vietnamita ou até do cubano, não tinha apelo nacionalista. A União Soviética era um império colonial, com uma ideologia internacionalista: não apelava aos colonizados, nem aos colonizadores. No leste da Europa, as revoltas populares da Hungria em 1956 ou da Checoslováquia em 1968 tinham provado que só o Exército Vermelho mantinha os comunistas no poder. Quando as massas perceberam que o Exército Vermelho não ia intervir, ocuparam as praças, exigiram eleições livres, e em Berlim Leste, na noite de 9 de Novembro, atravessaram o muro para o Ocidente. O comunismo nunca fora mais do que uma prisão de povos. Quando os guardas deixaram de guardar as celas, toda a gente fugiu.
Porque é que então a queda do muro e o colapso comunista não foram previstos, logo que Mikhail Gorbatchev enriqueceu o conhecimento ocidental do vocabulário russo com as palavras perestroika e a glasnost? Aqui entra o segundo factor da surpresa. Até ao Outono de 1989, mais: até à noite de 9 de Novembro de 1989, os ocidentais desconfiaram de Gorbatchev (Bush pai, na sua campanha eleitoral de 1988, lembrou repetidas vezes: “a Guerra Fria não acabou”). Nem o tratado sobre armas nucleares de 1987, nem a retirada do Afeganistão (Fevereiro de 1989) os convenceram. No entanto, em 1976, um jovem antropólogo francês, Emmanuel Todd, escrevera o livro mais premonitório do século XX, A Queda Final (logo traduzido para português), a sugerir que a URSS se estava a tornar num país do Terceiro Mundo, e não iria durar muito. Ninguém reparou. Ninguém estava preparado para reparar. Pelo contrário, a crise que se esperava era a do Ocidente.
Os choques do petróleo de 1973 e 1979, no meio da Grande Inflação, tinham posto a correr a ideia do fim do capitalismo. O Watergate em 1974 e o colapso do Vietname do Sul em 1975 haviam convencido toda a gente da fraqueza do poder Americano. Todos os dias os geoestrategas julgavam ver a expansão da mancha vermelha no mapa do mundo. A União Soviética à beira do fim? Impossível. A ascensão política de Thatcher e de Reagan assentou, muito mais do que na liberalização económica, na ideia de resistência à expansão soviética. E como tal, é óbvio que não dava jeito que o “perigo soviético” desaparecesse. Por tudo isso, os governos ocidentais pouco mais fizeram do que assistir aos acontecimentos (o presidente Bush pai tinha ainda outra preocupação: evitar encorajar revoltas populares que depois o Ocidente não poderia ajudar, como em 1956).
Porque é que é importante lembrar a surpresa? Porque se Gorbatchev tivesse intenções de desmantelar o comunismo, nunca teria chegado ao poder. Porque se os ocidentais estivessem convencidos de que tudo ia acabar, talvez tivessem sido tentados a “ajudar”, e teriam provavelmente provocado uma reacção. Muita coisa estava determinada, muita coisa foi acidental, mas tudo foi possível, em grande medida, porque ninguém estava à espera. Os homens fazem a história, mas às vezes é só quando não sabem o que estão a fazer que a história acaba por ser feita.
Fonte:  http://observador.pt/opiniao/surpresa-da-historia/