
Cecília Benevides de Carvalho Meireles (Rio de Janeiro, 07 de novembro de 1901 — Rio de Janeiro, 09 de novembro de 1964)
Antes de se tornar uma das mais potentes vozes da poesia brasileira, Cecília
Meireles escrevia seu nome com dois “eles”. Assim mesmo: Cecília
Meirelles. Na bem-humorada crônica, “A história de uma letra”, publicada
no jornal A Manhã,
em 1945, a poeta conta por que aboliu um dos “eles” de seu sobrenome. A
causa não foi a mais nova lei ortográfica, bradava ela, mas a
superstição ou, melhor, “o valor cabalístico das letras”. A nossa grande
poeta acreditava no valor místico do universo. Era supersticiosa, de
uma inteligência ímpar e de uma voz poética cristalina. Causava ciúme e
admiração por onde passava. Porém, mesmo seus admiradores costumam saber
pouco ou quase nada sobre sua vida, principalmente sobre sua infância e
juventude.

Cecília,
sem dúvida, passou a maior parte de sua vida diante de uma máquina de
escrever. De 1920 a 1964, quando sua última crônica foi publicada na Folha de S.Paulo,
a escritora, autora de grandes clássicos da poesia brasileira, escreveu
cerca de 2.500 crônicas. O dinamismo intelectual dessa mulher
impressiona, tanto quanto sua trágica vida. Aos 18 anos, publicava seu
primeiro livro de poemas, Espectros (1919),
o qual jamais foi encontrado. Desapareceu. Dele, o que conhecemos são
apenas alguns fragmentos. Também pouco se conhece de sua correspondência
e de suas anotações pessoais, pois muito do que existe permanece
inacessível. Como todos os escritores de sua geração, a poeta foi uma
grande missivista. Há notícias de correspondência com Gabriela Mistral,
Fernando Pessoa, dentre muitos outros. Mas apenas notícias.
Cecília
Meireles nasceu no bairro do Estácio, zona marginal ao Centro do Rio de
Janeiro. Segundo os apontamentos do pesquisador Darcy Damasceno, ela
nasceu em um sobrado, em cima de um açougue, na rua São Luís, hoje
Sampaio Ferraz, e morou até os 34 anos na rua São Cláudio, número 11.
Teve sua infância marcada por perdas profundas. Seu pai e sua mãe
morreram quando ela ainda era criança. Morte prematura também tiveram
seus irmãos Carlos, Vítor e Carmen, que são saudados na crônica “Carta a
meus irmãos”. Cecília foi criada por sua avó Maria Jacinta Benevides,
açoriana, personagem recorrente em sua obra. A cada perda restava-lha,
firme, D. Maria Jacinta.
No
início da década de 1920, Cecília casa-se com o ilustrador português
Fernando Correia Dias, artista que contribuiu imensamente para o
desenvolvimento das artes gráficas no Brasil, autor de caricaturas e
desenhos altamente requintados e modernos. Do casamento nasceram as três
filhas, três Marias: Maria Elvira, Maria Mathilde e Maria Fernanda.
Após a morte de sua avó, em 1933, Cecília e sua família permanecem no
mesmo endereço: entre as ruas São Luís e São Cláudio, onde a poeta
passou boa parte da vida. Mudou-se temporariamente, depois do casamento,
mas logo retornaria à casa da infância e adolescência. Nesse ambiente
de recordações afetivas, encontramos a jovem poeta, professora,
jornalista e mãe Cecília Meireles, que após a morte de sua avó faz sua
primeira viagem a Portugal, em 1934.
A
morte de D. Maria Jacinta sinaliza o início de um dos períodos mais
trágicos da vida da poeta, que culminaria com o suicídio de seu marido,
em 1935. Esse gesto trágico fez com que Cecília rompesse definitivamente
com o ambiente de casas e coisas antigas, de quintais e “jardins de
cheiros”. Dedica os últimos anos da década de 1930 à dor, à educação e à
poesia, renascendo como cronista apenas nos anos 40. Em 1939, na
revista portuguesa Ocidente,encontramos seus últimos textos longos em prosa. Trata-se de “Olhinhos de gato”, uma série de artigos sobre sua infância.

A
maior tragédia, no entanto, foi o suicídio de Correia Dias, fato que
transformaria a visão de mundo da poeta. Correia Dias suicidou-se em
casa, no dia 19 de novembro de 1935, enquanto as filhas se preparavam
para os festejos do Dia da Bandeira. “Há muitas mortes por detrás dessa
morte. E não foi apenas um suicídio: foi também um assassinato. Posso eu
viver muito tempo; pode minha existência tomar os mais inesperados
rumos – mas essa noção da inutilidade humana; esta indiferença pela
esperança, este desapego da lógica farão de mim cada vez mais uma
criatura sem raízes na terra, prescindindo de tudo e à mercê dos casos
que a queiram transportar”, escreveu a poeta a Diogo de Macedo, amigo português. (Carta publicada pela revista Terceira Margem, Porto, Portugal, 1998).
A
biografia de Cecília Meireles pode ser dividida, assim, em dois
momentos decisivos: a morte da avó e a de Correia Dias. A partir desses
eventos cruciais, a poeta refunde sua trajetória e apresenta uma outra
Cecília, aquela que conhecemos, dedicada à poesia e à educação. Sua obra
reflete as variantes de sua relação com o mundo. A Cecília poeta se
impõe apenas em 1937, com a publicação de Viagem. A própria poeta, em sua Obra completa, publicada em 1958 pela Aguillar, elegeu Viagem como
livro “inaugural”. Com ele, Cecília ganhou o primeiro grande
reconhecimento, o prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de
Letras, em 1939.
Nas década de 1920, no entanto, ela já havia publicado seus livros de inspiração simbolista, tais como Nunca mais (1923), Poema dos poemas (1923) e Baladas para El-Rei (1925). Depois de Viagem, seguiram-se as obras Vaga música (1942), Mar absoluto e outros poemas(1945), Retrato natural (1949), Doze noturnos da Holanda (1952), Romanceiro da Inconfidência (1953), Poemas escritos na Índia, (sem data, mas certamente da década de 1950), Metal rosicler (1960), Solombra (1963), dentre outros. Sem dúvida, o Romanceiro da Inconfidência é o seu grande livro, o épico ceciliano.

Quem
ficou para trás na nova história de Cecília Meireles não foi apenas a
jovem do Estácio, mas também a jornalista engajada que, entre 1930 e
1933, assinou sua página diária sobre educação – na qual chegou a acusar
o então ministro de educação, Francisco Campos, de medalhão e o então
presidente, Getúlio Vargas, de Sr. Ditador. Foram mais de mil artigos
escritos num período turbulento da nossa história política: o início da
década de 1930, quando Getúlio assumiu a liderança no país. Nesse
período, Cecília lutava contra a inclusão do ensino religioso e defendia
as liberdades, como por exemplo a criação de escolas mistas em que
ambos os sexos pudessem dividir o mesmo espaço. É bom lembrar que isso
ocorreu entre 1930 e 1933, quando a mulher sequer exercia o direito de
voto, uma vez que as urnas passaram a contar com o voto feminino apenas
em 1934.
A
luta de Cecília foi breve. Depois desse período, em carta ao educador
Fernando de Azevedo, a poeta desabafou: tinha horror à política, mas num
momento em que as forças autoritárias cresciam no mundo era impossível
ficar distante. Mas ficou. Atropelada pelas tragédias da vida pessoal,
Cecília se afasta da imprensa, dedicando-se à educação. A década de 1930
passou e no início da década de 1940, mais precisamente no ano de 1940,
Cecília casa-se com Heitor Grillo.
Suas posições diante do governo Vargas também mudaram. Agora ela é editora da revistaTravel in Brazil,
publicação do autoritário Estado Novo (1937-1945), isto é, do DIP
(Departamento de Imprensa e Propaganda). A revista, publicada somente em
inglês, era chamada por Mário de Andrade, colaborador freqüente, de “a
Dip-revista”. Durante esse tempo, os dois poetas trocaram uma curta
correspondência, publicada no livro Cecília e Mário(1996).
Neste
período de farto intercâmbio entre o Brasil e os Estados Unidos,
conhecido como a política de boa vizinhança, a poeta faz sua primeira
viagem à América. Lá, profere algumas palestras, na Universidade do
Texas, sobre o negro no Brasil e escreve uma série de artigos sobre os
negros americanos, principalmente sobre sua visita ao Harlem e a um
templo evangélico dirigido pelo reverendo Father Divine. Em uma série de
três crônicas, todas publicadas em A Manhã, em 1943, Cecília narra suas desventuras pelo bairro nova-iorquino.
A
década seguinte é marcada por mais viagens. É quando ela conhece a
Índia. Seus passos pelas cidades de Calcutá, Bombaim, entre outras,
podem ser seguidos pelas crônicas que publicava no Diário de Notícias.
Cecília foi homenageada na Índia e recebeu do povo indiano o
reconhecimento por sua divulgação da cultura e da arte daquele país.
Em
1964 a poeta morre, no Rio de Janeiro, de câncer. Durante a década de
1960 dedicou crônicas às curas, à medicina e às enfermeiras, como
podemos ler em “Profilaxia” (1962) e “Ai, os hospitais!” (1964). As
lendas em torno da imagem de Cecília Meireles jamais deixaram de crescer
no meio literário. Há até aqueles que asseguram que, minutos antes de
morrer, ela teria recebido a visita de dois religiosos indianos que,
como a poeta, nunca mais foram vistos. A sua biografia, como podemos
perceber, ainda está para ser escrita. As pistas são muitas, as lendas
inúmeras, mas os verdadeiros fatos estão todos impressos em seus livros
de poemas, em suas crônicas, em seus artigos acadêmicos – enfim, nas
suas palavras.
Fonte:
Cecília Meireles: 110 anos, Revista Cult, por Valéria Lamego
Leia mais em:
Cecília em Portugal, por Leila B. V. Gouveia
Cecília Meireles: imagens femininas, por Maria Lúcia Dal Farra
Cecília Meireles: poeta e educadora
A cultura liberta, o catolicismo escraviza: Cecília Meireles e o ensino religioso nos anos 1930, por José Damiro Moraes
A filosofia na poesia infantil de Cecília Meireles, de Gilmar Luís Siva Júnior
Livro Aberto: 50 anos sem Cecília Meireles, a pastora das nuvens
Poema de Mário Quintana em homenagem a Cecília Meireles
A última entrevista de Cecília Meireles, por Carlos Willian Leite
Uma viagem pelas crônicas, por Celso Castro
Videos:
O
Governo do então Estado da Guanabara denominou de Sala Cecília Meireles
o grande salão de concertos e conferências do Largo da Lapa, na cidade
do Rio de Janeiro. Em São Paulo, tornou-se nome de rua no Jardim Japão.
Em 1974, seu nome foi dado a uma Escola Municipal de Educação Infantil,
no Jardim Nove de Julho, bairro de São Mateus, em São Paulo. Em 1981,
uma cédula de cem cruzados novos, com a efígie de Cecília Meireles, é
lançada pelo Banco Central do Brasil, no Rio de Janeiro.

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