O papa confirma sua opção pelos pobres e sua estatura de estadista ao reunir em Roma os movimentos populares
por Claudio Bernabucci
Poucos dias depois do tempestuoso epílogo do
Sínodo sobre a família, se alguém considerasse incerta a rota com que o
papa Francisco dirige o navio da Igreja, teria rapidamente de mudar de
opinião. Com firmeza absoluta, própria de um monarca, Bergoglio
defenestrou um dos principais opositores, o cardeal estadunidense
Raymond Burke, do cargo de prefeito do Tribunal Supremo, o máximo órgão
jurisdicional da Santa Sé. Depois de ter criticado Francisco pelas
posições expressas contra os excessos do capitalismo e de se posicionar
como tradicionalista em todas as questões controvertidas do recente
Sínodo, Burke teve a ousadia, dias atrás, de declarar que a Igreja era
“um barco sem leme”. Foi assim que o timoneiro jesuíta, para demonstrar o
contrário, considerou conveniente para o cardeal o repousante novo
encargo de Patrono da Ordem de Malta, ilha do Mediterrâneo onde nasceu a
rosa dos ventos, a fim de permitir-lhe tempo suficiente para uma
reflexão mais ponderada sobre assuntos de navegação.
Nos mesmos dias, beneficiando-se de uma
rodada de nomeações, o papa Francisco aproveitou para dar continuidade à
sua revolução organizacional na Cúria Romana, cortando cabeças hostis e
promovendo prelados fiéis, como no caso do novo responsável pelas
relações com os Estados, ou seja, o ministro do Exterior da Igreja, o
bispo Paul Richard Gallagher, inglês de 60 anos, nascido em Liverpool no
mesmo subúrbio dos Beatles, Allerton, e com ampla experiência
internacional nos cinco continentes.
É impressionante, na figura do papa Francisco, a mistura
de dois estilos e culturas que raramente se encontram no mesmo
indivíduo, muito menos em um religioso: a espiritualidade e a delicadeza
de quem vive profundamente a compaixão pelos seres humanos, os mais
humildes em particular, e, de outro lado, o temperamento atrevido e a
mão firme para perseguir coerentemente seu projeto religioso, recorrendo
aos meios políticos mais audaciosos. A quintessência dos espíritos
franciscano e jesuíta, harmoniosamente mesclados.
Recentemente, ajudou
na compreensão e definição do personagem um dos melhores aliados de
Francisco na Cúria Romana, o enérgico cardeal alemão Walter Kasper,
considerado um dos teólogos mais ouvidos. Em recente conferência na
Universidade Católica da América, em Washington, ele declarou que “não
se aplicam as desgastadas definições de progressista e conservador” ao
papa argentino. Francisco “não representa uma posição liberal, mas uma posição radical, no sentido original da palavra, de quem vai à raiz”.
Essa nítida definição do cardeal alemão
ajuda também a entender melhor outra iniciativa original que Bergoglio
teve no fim de outubro. A notícia não é nova para o público europeu ou
americano, alcançado por uma mídia disposta a dar grande atenção ao
encontro que o papa teve com os movimentos populares do mundo inteiro.
Não aconteceu o mesmo no Brasil, onde a chamada grande mídia permaneceu
bastante distraída, descuidando, em particular, da participação na
reunião em Roma de um importante brasileiro, o
líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, João Pedro Stedile. Pela
primeira vez na história do papado, o Vaticano hospedou e acompanhou
esse tipo de encontro, chamado Terra, Casa e Trabalho, que reuniu cem
organizações populares do planeta, das associações camponesas aos
cocaleiros, dos catadores de lixo aos movimentos cooperativos.
O discurso que o papa Francisco proferiu
para os participantes do encontro demonstrou efetivamente todo o
radicalismo de suas posições sociais. Surpreenderam muito não só os
conceitos expressos, mas também a terminologia. O papa argentino voltou a
falar da “cultura do descarte”, que “acontece quando, no centro de um
sistema econômico, está o deus dinheiro e não o homem, a pessoa humana”.
Na sua concepção, a verdadeira soberania no mundo é exercida hoje por
“um sistema econômico centrado no deus dinheiro, que tem também
necessidade de saquear a natureza para manter o ritmo frenético de
consumo que lhe é próprio”. Esse sistema adota a guerra como instrumento
regulatório dos conflitos. Uma guerra não do tipo clássico, mas
fragmentada e global ao mesmo tempo: “... estamos vivendo a terceira
guerra mundial, mas por etapas. Há sistemas econômicos que, para
sobreviver, devem fazer a guerra. Então fabricam-se e vendem-se armas, e
assim, obviamente, salvam-se os balanços das economias que sacrificam o
homem aos pés do ídolo dinheiro”.
Diante desse sistema, o papa
valoriza com veemência a cultura da solidariedade expressa pelos
movimentos populares, que ele incita “a lutar pela dignidade da família
rural, pela água, pela vida e para que todos possam se beneficiar dos
frutos da terra (...) Não o digo só eu, mas está escrito no Compêndio da
doutrina social da Igreja”.
Depois de falar “do escândalo da pobreza,
promovendo estratégias de contenção que só tranquilizam e transformam
os pobres em seres domesticados e inofensivos”, Francisco toca a questão
da alimentação: “Quando a especulação financeira condiciona o preço dos
alimentos, tratando-os como uma mercadoria qualquer, milhões de pessoas
sofrem e morrem de fome. Por outro lado, descartam-se toneladas de
alimentos. Isso constitui um verdadeiro escândalo. A fome é criminosa, a
alimentação é um direito inalienável”.
A todos os excluídos o papa entrega a
construção do futuro da humanidade numa lógica de integração, um futuro
feito de “terra, casa e trabalho” para todos. Um futuro construído
graças a um “protagonismo” que “transcende os procedimentos lógicos da
democracia formal”.
Como afirmou Stedile numa entrevista a um
jornal italiano, “do encontro com Francisco, que se mostrou mais à
esquerda do que muitos de nós, nascem duas iniciativas: formar um espaço
de diálogo permanente com o Vaticano e, independentemente da Igreja,
mas aproveitando a reunião de Roma, construir no futuro um espaço
internacional dos movimentos do mundo, para combater o capital
financeiro, os bancos e as grandes multinacionais. Os inimigos do povo
são esses. Como diria o papa, este é o Diabo”.
Fonte:http://www.cartacapital.com.br/revista/826/francisco-o-radical-8297.html
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