sexta-feira, 30 de maio de 2014

Em todos nós dormita a “Deusa” de Emma Bovary: a Insatisfação ( Flaubert)




 1. Estou Satisfeito, obrigado


VERMEER, A Leiteira

Durante as refeições, se insistem com ele para repetir, ele responde: “obrigado, estou satisfeito”. É sueco, fala português muito bem mas com aquelas pequenas diferenças que assinalam uma nacionalidade estrangeira.
Na mesma situação, um português dirá: não, obrigada estou bem, já chega, estou cheio, é bom, mas não quero abusar. Raramente “estou satisfeito”. Perante isto, a tentação de um remate filosófico é grande: o português nunca se sente satisafeito, já que, nas palavras de Alexandre O’Neill, “este país não se vive, mas sofre-se”. E assim a satisfação não é estado de que o português se possa vangloriar, nem no caso de uma situação prosaica, como uma simples refeição.
Mas livre-nos Deus de cairmos nesta tentação! Levar-nos-ia, pela certa, a filosofias baratas e o barato, já se sabe: sai caro!
É do conhecimento geral que, seja qual for a nacionalidade, a aprendizagem mais precoce que fazemos na vida- na qual somo todos sobredotados- é a Insatisfação. Neste sentido, adoptei recentemente a frase deste amigo sueco, de forma a poder, pelo menos em certas situações da vida, sentir-me PLENAMENTE SATISFEITA.
- Não queres mais desta tarte?
- Não, obrigada, estou satisfeita.
E acreditem ou não, esta frase dá-me satisfação! Uns minutos de abençoada concentração nos prazeres da digestão. Porque não abundam as situações em que nos podemos orgulhar de sentir uma Verdadeira Satisfação.

2. A satisfação não me satisfaz


VERMEER, Mulher à janela

O dia foi belo, mas à noite sentimos uma pontadinha: ele não telefonou; a festa de anos foi magnífica, mas não percebo por que razão a minha filha estava tão amuada; a minha vida corre bem, mas de manhã dou comigo a sonhar deixar tudo e correr o mundo de barco; adoro a minha mulher mas quantas vezes não sonho com aventuras donjuanescas; gosto da minha profissão mas dou comigo a pensar que devia fazer outra coisa; ontem o meu marido ofereceu-me flores, ui, isso tem água no bico, estou a achar estranho tanta demonstração; gosto da minha casa na praia, mas estou farta dos fins-de-semana sempre iguais, o que eu queria mesmo é não ter nada, despojar-me de tudo! Tenho um rapaz, mas como a minha vida seria muito mais bela se tivesse tido outro filho, uma rapariga, a rapariga dos meus sonhos!
Porquê isto? Arrisquemos algumas respostas:
1. Porque tal como não se fazem bons romances com bons sentimentos ( André Gide) também não se faz uma vida com satisfação. A insatisfação é o motor da vida.
2. Porque se estamos insatisfeitos- por não termos dinheiro, saúde, trabalho, calma interior, etc- desejamos obter estes bens. Se os temos, temos medo de os perder.
3. Porque a sociedade actual, prostrada no altar do Deus Efémero, fomenta uma Cultura da Insatisfação: novos destinos, novos looks, novos sabores, novas Experiências e por acaso, “não deseja mudar de operadora, olhe que temos preços mais baixos e melhores condições, não quer mudar de cremes, olhe que os nossos são imbatíveis no combate à velhice, não quer mudar de colchão e dormir finalmente como um anjo)? Assim, mesmo depois de termos optado por X, logo sentimos uma pontadinha de arrependimento, pois afinal, quem sabe, devia ter optado por Y. A moda está do lado do VARIAR e não do MANTER
4. Porque em todos nós dorme uma criança que sonha.
A criança, apesar de passar a vida a querer ser grande, não aprecia lá muito ver-nos crescer a sério. Quer ser grande enquanto isso é uma espécie de miragem no deserto da sua pequenez e insignificância. Mas mal deixa de se pôr em bicos de pés, o mundo visto de cima revela-lhe, afinal, ruas sinuosas, estreitas e escuras. Por isso, quando se apercebe que nos tornámos adultos, ata-nos um fio à cintura e puxa-o ao sabor dos seus caprichos: quantas vezes a dormirmos o sono dos justos, sentimos um esticão e a vozinha dela a reclamar: vamos para a rua, anda, Respondemos, ensonados, que estamos cansados e rua já tiveste hoje que chegue. Mas ela, teimosa como é, mantêm-se perfilada e não desarma: Vá lá, vamos p’rá rua brincar e dá mais um esticão no fio. Nós viramo-nos para o outro lado, na esperança que ela nos deixe dormir e abandone a sua teimosia. Esperança vã pois não só não arreda pé, como nos dá um esticão a valer e p’ra doer. Aí, erguemo-nos de um pulo já com um raspanete valente pronto a sair e, nesse momento, o que vemos? Uns olhos que inundam o quarto de luz, uma pose aventureira, plena de soberba, uma soberba toda feita de despreocupação e de alegria, a alegria que nos falta, o desafio que nos falta, a despreocupação que nos falta, o brilho que nos falta, a aventura que nos falta e vestimo-nos à pressa e vamos p’rá rua tentar agarrar os balões de sonhos por realizar, que não queremos mais ver desaparecer pelo ar.

5. Porque em nós dormita a “Deusa” de Emma Bovary: a Insatisfação.

Gustave Flaubert, Madame Bovary, Ed Civilização, tradução de Daniel Augusto Gonçalves, 2012
e B 
A história de Emma Bovary escrita por Flaubert entre 1851 e 1856, como clássico que é, é sobejamente conhecida, pois um clássico é aquele que se “conhece” mesmo sem o lermos. Associada a Emma Bovary está o tema do adultério, um tema muito tratado nos romances do século XIX. E com o adultério surgem as temáticas da insatisfação sexual, do papel da mulher na sociedade, dos tabus sociais e religiosos, etc.Neste sentido, o romance correria o risco de estar bastante datado.
Ora, Emma Bovary é muito mais do que isto, infinitamente mais e por isto esta obra é um dos romances mais estudados pela crítica e que mais tem influenciado escritores- europeus, americanos, sul-americanos, etc- assim como cineastas, ilustradores, autores de banda desenhada, etc. Quem teimar fazer de Emma uma vítima de leituras cor-de-rosa, uma frustrada na província onde vive com o seu marido uma vida monótona, deixa de lado a força maior deste romance: uma análise assombrosa de uma alma assolada de vazio. Emma Bovary é, sobretudo, uma análise profunda do VAZIO EXISTENCIAL.
O Vazio de Emma, como Vazio que é, não tem nome: mas o que a tornava tão infeliz? Onde estava a catástrofe extraordinária que a transtornava? E levantou a cabeça, olhando em sua volta, como para procurar a causa que a fazia sofrer. Emma Bovary sofre, como lhe diz a criada um dia, do mesmo mal que uma sua conhecida: uma espécie de nevoeiro que ela tinha na cabeça, e os médicos para isso não podiam nada, nem tão pouco o senhor prior.
Um nevoeiro que se tornará cada vez mais denso, pois não encontrando, por entre as abertas, uma Luz que o explique, só pode transformar-se numa consciência acusadora que lhe diz: olha à tua volta, tens um marido que te adora, uma linda filha, uma situação estável, o que te falta, afinal?
Pois é isto mesmo: Emma Bovary tem um marido que a adora. E é aqui que Flaubert tem uma ideia de génio. Como dar toda a dimensão à Insatisfação de Emma? Colocando-lhe à frente um homem que é exactamente o seu oposto: profundamente satisfeito. Charles Bovary, médico de província, loucamente apaixonado pela mulher e julgando o seu amor retribuído, é um ser extremamente bondoso, criado no campo, sem pretensões, sem ambições, plenamente satisfeito com a vida. É deste tête-à tête de duas pessoas tão diferentes que Flaubert tira todos os efeitos dramáticos do tema que se propõe tratar. Emma, apesar de filha também de um camponês, estudou no convento e aspirava a algo diferente.
Ela estava cheia de desejos, de raiva, de ódio. Aquele vestido de pregas direitas ocultava um coração transtornado, e aqueles lábios tão púdicos não diziam a tormenta que lhe ia na alma (…) O que a desesperava era que Charles não parecia fazer a menor ideia do seu suplício. A convicção em que ele vivia de torná-la feliz parecia-lhe um insulto imbecil, e a sua segurança a esse respeito uma ingratidão(…) Portanto, fez recair apenas sobre ele o ódio múltiplo que resultava dos aborrecimetos (…) A mediocridade doméstica impelia-a para fantasias luxuosas, as ternuras matrimoniais para desejos adúlteros. Teria preferido que Charles lhe batesse, para poder detestá-lo com mais razão e vingar-se dele.
Charles não lhe bate, pois adora-a e assim, só lhe resta…. ela bater em si própria, mais e mais, até ao flagelo final: o suicídio. Emma tem uma filha, mas acha-a horrorosa, feia e não gosta nada dela ( pode perceber-se, apenas por estes exemplos, o choque provocado por este romance nos meados do século XIX, razão que o levou a ser acusado de ofensa à moral pública).
E como nada a preenche, ela mergulha em comportamentos que hoje classificamos de BIPOLARES: ora repudia a filha, ora se arrepende e enche-a de ternuras, ora sente vontade de viajar ou de voltar para o seu convento. Desejava ao mesmo tempo morrer e morar em Paris.
Insatisfeita, infeliz, como os marinheiros em perigo, ela passeava pela solidão da sua vida uns olhos desesperados, procurando ao longe qualquer vela branca nas brumas do horizonte. As velas brancas encontra-as nos homens, no adultério, que lhe dará alegrias tão exaltantes como quedas monumentais num ainda maior vazio e desespero. E após de dois casos amorosos, acossada por dívidas que não consegue pagar e que o marido desconhece, Emma mata-se.
O que nenhum leitor deste romance espera é o final surpreendente, onde tudo parece virar-se de pernas para o ar, para nos deixar a chorar de pena de Charles e quase a cairmos na tentação ( de que nos livramos a tempo, claro) de amaldiçoarmos Emma Bovary.
O que acontece então? Charles, o satisfeitinho, o provinciano, o rude, o limitado, transforma-se, perante os nossos olhos abertos de espanto e de incredulidade, numa personagem Sublime, que nos arranca um caudal de lágrimas de compaixão.
A sua vida tinha tido apenas um eixo à volta do qual tinha gravitado: Emma. O seu estilo,  beleza, delicadeza e, sobretudo, tudo o que nela lhe era Estanho e Incompreensível, exerciam nele uma sedução ímpar. Não espanta, assim, que a morte da mulher o mate, também. Viverá muito pouco tempo, o tempo de o descobrirmos de uma forma cativante e irresistivelmente enternecedora: Para agradar-lhe, como se ela vivesse ainda, adotou as suas predileções, as suas ideias; comprou botas envernizadas, passou a usar gravatas brancas. Punha cosméticos no bigode e, tal como ela, assinava letras à ordem. Emma corrompia-o do além túmulo.
Até à morte de Emma, nunca suspeitou dos seus amantes.No profundo desmoronar da sua vida após a sua morte- vende tudo para pagar as dívidas da mulher, que nunca questiona- descobre a verdade. Um dia, numa escrivaninha até aí fechada, descobre as cartas que ela escrevera a um dos amantes, Rodolphe, com quem tinha decidido fugir, a certa altura. Charles lê-as e relê-as, deixa de sair, fecha-se em casa e começou a constar que ele se fechava para beber.
Um dia, Charles vai ao mercado vender o seu cavalo- depois de ter vendido tudo o que tinha- e encontra Rodolphe. Empaliderem ao verem-se. O antigo amante da mulher convida-o para uma bebida. Rodolphe, belo homem, falava, falava e Charles perdia-se em devaneios diante daquele rosto que ela amara. Parecia-lhe tornar a ver qualquer coisa dela. Era um deslumbramento. Teria querido ser aquele homem. E, sem mais, diz-lhe Charles:
- Não lhe quero mal.
Rodolphe ficara mudo.
E Charles, com a cabeça entre as mãos, com uma voz apagada e com o tom resignado das dores incomensuráveis:
-Não, já não lhe quero mal!
E acrescentou mesmo uma grande frase, a única que jamais dissera:
- A culpa foi da fatalidade!
No dia seguinte foi encontrado morto num banco e segurava na mão uma comprida madeixa de cabelos pretos.
Flaubert disse: Madame Bovary sou eu. Esta frase ficou lendária. O que queria ele dizer com isto? Não sabemos. Sabemos que ele mostrou como nenhum autor conhecido antes dele ( e depois, talvez), que a insatisfação é uma areia movediça que nos puxa para o fundo do pântano da vida. Mas mostrou também que só deste pântano podemos ver emergir criaturas sublimes como Charles Bovary.
E ainda sobre este magnífico romance, visite o Guia de Bordo.
Fonte:  http://www.lereperigoso.pt/blog/em-todos-nos-dorme-deusa-de-emma-bovary-insatisfacao-flaubert.html

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