quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Dentro do quadro azul

por Patrícia Reis, em 11.02.15

O soldado mantém-se quieto, calado. Consegue cheirar o seu suor, o seu sexo, a sua boca seca, o azedo do medo. Tem 19 anos. Apenas 19 anos. O carro andou aos solavancos e o homem ao volante, gritou qualquer coisa em árabe. Havia um padrão preto e branco de um kaffiyeh.
Lembrou-se das imagens de Yasser Arafat, cartazes que viu em criança, com a legenda “sempre contigo”, há muito tempo, antes de Ramallah, da velhice, da doença, do hospital em Paris, da morte. Nessa altura ele, o soldado de 19 anos no carro a fugir à vida, tinha beijado e penetrado a sua primeira mulher.
O cheiro a sexo era distinto de tudo o resto. Tinha sido num fim de tarde, em casa dos pais dela, no centro de Telavive, um bairro de gente com dinheiro. Ele dissera:
Não sabia que a tua família tinha dinheiro.
Dizes bem, a minha família. Eles e eu: uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.
Fora um momento erótico, ela a roçar-se nele com os jeans apertados, o soutien preto a despontar da camisa. A erecção doía-lhe. Doía-lhe tanto. As gotas de suor no vale dos seios dela, entre as pernas, na barriga, junto ao mundo que é a forma do umbigo.
Ela disse que não era preciso ter pressa e chupara-o até ao orgasmo e no desalento de tudo aquilo, ali no sofá, com a cnn a dar o boletim meteorológico do mundo, sentou-se em cima dele, no sexo ainda erecto, branco de esperma, e começou a mexer-se em cima dele até que o desejo regressou e ela riu, quase num tom jocoso, celebrando:
Ah, 17 anos.
Ela tinha 20. Uma velha. Uma veterana. Acabara de sair dos dois anos de exército obrigatório, tinha estado em Goa, fumado e metido todo o tipo de pastilhas. Agora, em Israel, ia trabalhar com o pai, dono de uma empresa de ferramentas com contratos milionários com o Japão. De dois em dois anos regressaria ao exército, para reciclagem. Até aos 45 anos o exército seria uma rotina. A ideia de que o país é quem o defende era uma lengalenga desde criança, uma voz constante. Somos um pais jovem, temos inimigos, somos os eleitos do sofrimento de Deus.
Pode ser que tenha sorte e um dia mate um filha da puta de um árabe.
Ele, no sofá, depois do sexo, sem prestar atenção à conversa, sem saber o que dizer, lembrou-se da boca dela e do cheiro do perfume no seu pescoço. Não queria saber de árabes. Não queria saber de autocarros a explodir, sirenes a passar. Desde sempre que fora treinado para aquilo. Viver em Israel. É-se treinado para viver ali, naquele sítio inventado.
Uma bomba caí hoje, amanhã já está tudo normal, não há sinais. Como é que se sabe se a explosão foi grande? Se foi mortal? Espera-se pelas ambulâncias. Quantas mais forem, mais mortos, quantos mais mortos, menos devemos querer saber. Palavras da mãe.
A mãe, olhos azuis, loira, unhas de gel, um passaporte cheios de carimbos dos países do mundo. A mãe que lê para combater as bombas, os árabes, o holocausto e até as 25 horas de jejum do Yom Kipur, o dia perdão, da purificação do espírito. Mãe é um bicho universal, dissera ela, a rapariga ao seu lado. Ele discordou mas calou-se. Antes de ser mãe, é-se judia, antes de ser mãe, é-se israelita, da Alemanha, da Polónia, da Rússia. Como o filho de Isaque, filho de Abraão, Jacob que luta com um anjo do senhor e torna-se o primeiro guerreiro israelita, mudando de nome, tornando-se Israel.
Agora nos carro, depois dos túneis junto a Gaza, Giled lembra-se dela, da voz dela. O medo que sente está para lá da dor no ombro, na mão partida, vermelha e inchada, os dedos que não fecham. O medo faz-lhe lembrar coisas idiotas. Ela, a mãe, o professor a dizer que adiar os estudos para ir para o exercito era uma pausa, uma brincadeira.
No meu tempo é que era à séria.
Nada podia ser mais sério do que isto. Giled já nem tenta abrir os olhos. Fica com eles cerrados a tentar ver outras coisas. Alguém o irá buscar. Alguém o irá salvar. Nunca ficará por ali. Nunca ninguém é deixado para trás. O pai desesperado por trocarem soldados palestinianos, terroristas pretensamente do Hamas, por corpos de soldados israelitas. A mãe a concluir:
Só te desespera a troca dos mortos pelos vivos porque não é o teu filho que tens de enterrar.
Giled percebe agora que toda a vida que planeou pode desaparecer à velocidade de um segundo não contabilizado. Todos os seus planos trocados, embrulhados, desfeitos pela vida. A vida trocou-me as voltas, pensa. O ombro dói cada vez mais e a mão está a latejar. Alguém o arrasta para fora do carro, brutal. Sente o seu corpo magro contra a chapa do carro, a areia da rua, as pedras de uns degraus que sobe trôpego. Nada será como planeou. Nada. Em Israel assumir que a idade é uma bênção parece uma coisa estranha. Giled deixa-se escorregar por uma parede que o arranha. Não tem camisola, a farda, a chapa de identificação, tudo o que é, ou era, o seu nome e origem. O pai dizia, tantas vezes, tantos almoços: um soldado é a sua unidade. Até agora não lhe ocorreu pensar nos companheiros, sente o estômago, sente frio, sente dor, mas não sente preocupação com os outros. Não tem que ver com ser boa pessoa, é sobrevivência. Instinto. Tem a cara inchado do murro que levou, um gesto inesperado.
O homem da kaffiyeh entra no quarto e diz-lhe
Passaram umas horas. Eles dizem que vêm vingar-te. Que nenhum soldado é abandonado. Tu sentes-te abandonado?
Giled não responde. O homem agacha-se lentamente, fica à altura dos olhos dele. Tem um sorriso ligeiro. Olha para a mão inchada, com a ponta do dedo pressiona o ombro. Levanta-se.
Não é desta que vais morrer, soldado. Ainda não é agora. Quando chegar a tua hora, aviso. Não te preocupes. Eu cumpro sempre com a minha palavra.
Giled pensa que não sabe pensar em árabe. Que a diferença essencial entre eles é uma só: eles não têm medo de morrer.
Eu tenho. Eu tenho medo de morrer.
A sua voz, a meia voz, desperta-o por fim para a verdade de tudo aquilo. Ao fundo, na parede, está uma tela grande em tons de azul, rasgados por brancos rosados. Giled começa a chorar. O seu futuro é aquele quadro desconhecido. Não vai ver mais nada.
(Gilad Shalit, 19 anos, foi raptado na Faixa de Gaza em Junho de 2006 pelo Hamas. Voltou a casa em Outubro de 2011, depois da libertação de presos palestinianos.)
Fonte: http://delitodeopiniao.blogs.sapo.pt/

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