quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Poesia sempre

A tecelã
(Mauro Mota)

Toca a sereia na fábrica,
e o apito como um chicote
bate na manhã nascente
e bate na tua cama
no sono da madrugada.

Ternuras da áspera lona
pelo corpo adolescente.
É o trabalho que te chama.
Às pressas tomas o banho,
tomas teu café com pão,
tomas teu lugar no bote
no cais do Capibaribe.

Deixas chorando na esteira
teu filho de mãe solteira.
Levas ao lado a marmita,
Contendo a mesma ração
Do meio de todo o dia,
a carne-seca e o feijão.

De tudo quanto ele pede
Dás só bom-dia ao patrão,
e recomeças a luta
na engrenagem da fiação.

Ai, tecelã sem memória,
de onde veio esse algodão?
Lembras o avô semeador,
com as sementes na mão,
e os cultivadores pais?
Perdidos na plantação

Ficaram teus ancestrais.
Plantaram muito. O algodão
nasceu também na cabeça,
cresceu no peito e na cara.

Dispersiva tecelã,
esse algodão quem colheu?
Tuas pequenas irmãs.
Deixando a infância colhida
e o suor infantil e o tempo
na roda da bolandeira
para fazer-te fiandeira.

Ai, tecelã perdulária,
esse algodão quem colheu?
Muito embora nada tenhas,
estás tecendo o que é teu.

Teces tecendo a ti mesma
na imensa maquinaria,
como se entrasses inteira
na boca do tear e desses
a cor do rosto e dos olhos
e teu sangue à estamparia.

Os fios dos teus cabelos
entrelaças nesses fios
e outros fios dolorosos
dos nervos de fibra longa.

Ó tecelã perdulária,
enroscas-te em tanta gente
com os ademanes ofídicos
da serpente multifária.

A multidão dos tecidos
exige-te esse tributo.
Para ti, nem sobra ao menos
Um pano preto de luto.

Vestes as moças da tua
idade e dos teus anseios,
mas livres da maldição
do teu salário mensal,
com o desconto compulsório,
com os infalíveis cortes
de uma teórica assistência,
que não chega na doença,
nem chega na tua morte.

Com essa policromia
de fazendas, todo dia,
iluminas os passeios,
brilhas nos corpos alheios.

E essas moças desconhecem
o teu sofrimento têxtil,
teu desespero fabril.

Teces os vestidos, teces
agasalhos e camisas,
os lenços especialmente
para adeus, choro e coriza.

Teces toalhas de mesa
e a tua mesa vazia.

Toca a sereia da fábrica,
e o apito como um chicote
bate neste fim de tarde,
bate no rosto da lua.
Vais de novo para o bote.
Navegam fome e cansaço
nas águas negras do rio.

Há muita gente na rua
parada no meio fio.
Nem liga importância à tua
Blusa rota de operária.
Vestes o Recife, e voltas
para casa, quase nua.

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Mauro Mota nasceu no Recife a 16 de agosto de 1911. Criado em Nazaré da Mata, iniciou-se na escola primária da professora Alice Vieira. Feitos os estudos secundários na capital, no Ginásio do Recife e no Colégio Salesiano, bacharelou-se em Direito em 1937. Não se sentiu atraído pela profissão, dedicando-se ao jornalismo, no qual se iniciara em 1934 e ao magistério desde 1942, sobretudo como professor do IEP (1950-1972), nomeado catedrático por concurso de provas e títulos.
Profundamente integrado ao jornalismo mais no Diário de Pernambuco, a partir de 1941, Mauro Mota só se decidiu a estrear em livro em 1952, embora seu nome, a essa época, já houvesse conquistado projeção nacional como poeta, aparecendo continuamente nos suplementos literários do Rio de Janeiro e nos do Recife. Esse livro foi Elegias. Como ele, conquistou o "Prêmio Olavo Bilac", da Academia Brasileira de Letras. Saudado pela crítica como grande poeta, Mauro Mota iniciou, então, sua notável carreira literária, onde a poesia se apresenta como o fator principal de sua projeção no mundo das letras. Mas na obra do autor, também a prosa ganha relevo especial na projeção do seu nome, abrangendo a crônica, o folclore, os estudos de sociologia regional e a geografia.
Além de professor em diversos estabelecimentos de ensino em Pernambuco, foi Diretor do Diário de Pernambuco; Diretor Executivo do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais (1956-1970) e Diretor do Departamento de Cultura da Secretaria de Educação e Cultura de Pernambuco (1971-1972). Membro da Academia Brasileira de Letras e da Academia Pernambucana de Letras, foi Diretor do Arquivo Público Estadual de Pernambuco. Pertenceu ao Conselho Federal de Cultura.
Alguns livros de Mauro Mota: Poesia - A Tecelã; Os Epitáfios; Canto ao Meio; Itinerário; Antologia Poética. Prosa - O Cajueiro Nordestino; O Pátio Vermelho; Modas e Modos; Os bichos na fala da gente; Bê-a-bá de Pernambuco.
Sua bibliografia é ampla e diversificada, tendo sido incluído em muitas antologias nacionais. Muitos de seus Seus poemas foram traduzidos em inglês, francês, italiano e castelhano.
Faleceu no Recife, em 22 de novembro de 1984.

Fonte: www.cec.pe.gov.br/imagens/mauromota.jpg

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