quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Quarta via

Antecipando o futuro
Paulo Santana
Dois mistérios da mente humana sempre me intrigaram até a perplexidade: os assassinatos cruéis, com tortura, e as mães que ganham seus bebês, enrolam-nos num pano ou papel e os deixam nas portas das casas ou os jogam nas latas de lixo.
Finalmente a crônica que vou publicar hoje, do cirurgião de tórax José J. Camargo, acabou por me solucionar um dos dois enigmas. Ei-la:
“O conhecimento científico tem avançado tão rapidamente nesta transição de século, que a maioria das pessoas, sem tempo para mais nada que não seja a luta pela sobrevivência, não se apercebe que o mundo alinhavado para o milênio que principia é, ao mesmo tempo, provocativo, deslumbrante e aterrador.
Os avanços da biologia molecular, a partir do descobrimento da estrutura do DNA, têm permitido expandir nossos conhecimentos sobre a natureza biológica, os mecanismos de transmissão dos caracteres que definem o ser humano e a esperança, já quase certeza, de um tratamento científico racional para muitas enfermidades.
Há, em contrapartida, crescente inquietude sobre as conseqüências que estes conhecimentos terão para a humanidade, e que problemas éticos teremos que enfrentar.
Desde então há uma certa desconfiança para com a ciência e os cientistas, porque se culpa a ciência pelas novidades que se avizinham e aos cientistas por tê-las feito possíveis.
Dos novos avanços, provavelmente não há nada mais sedutor do que a perspectiva de entendermos nosso comportamento, como somos, e por que fazemos o que fazemos, quando o normal seria que o fizéssemos de outro jeito.
A identificação de uma área específica do cérebro para cada tipo de função permitiu que se conhecesse, por exemplo, uma zona onde está localizado o dicionário da nossa língua materna. Se aprendermos outro idioma, ele ocupará uma área adjacente.
Mas, se por uma circunstância especial (pais bilíngües no caso), a criança for alfabetizada em dois idiomas ao mesmo tempo, os dois ocuparão a mesma e única área da língua materna.
Com os modernos recursos que permitem criar realidades virtuais, foi possível estudar o comportamento das pessoas em situações determinadas, tais como de risco extremo e ameaça de morte. Não é curioso que um poliglota sob situação de risco peça socorro só na língua materna? Como a atitude dos seres humanos está determinada pela sua carga genética (além das vivências infantis, como repetem os psiquiatras), é muito interessante observar o comportamento dos indivíduos em que se pretendeu domar um determinado hábito ou vício. Há poucas décadas, os canhotos eram discriminados e sofriam castigos ferozes para que usassem a mão direita.
Com isso, se produziram milhares de ambidestros, nunca destros verdadeiros. Quando estudadas, se demonstrou que essas criaturas, na privacidade, eram canhotos autênticos, e muito felizes por poderem sê-lo.
Numa publicação recente, da conceituada revista Nature, há um impressionante relato que avança na direção de entendermos comportamentos bizarros. Havia indícios de que um pro gene chamado fos-b tivesse relação com o comportamento.
Quando esse elemento genético foi removido de um grupo de ratas, não se identificou nenhuma mudança inicial de atitude, mas, quando elas pariram e todos os ratinhos morreram porque as ratas simplesmente ignoraram as crias, ficou claro que este é o gene do instinto materno.
Não há nenhuma dúvida de que o próximo século prenuncia alterações radicais na maneira de julgar e principalmente de tratar os distúrbios de comportamento.
Provavelmente em um futuro não tão remoto, ao ser acusada de criminosa uma mãe que abandonou seu filho numa lixeira, se defenderá dizendo:
“Desculpem, mas o meu fos-b não funciona!”. Como não somos mais do que nossa biologia, nenhuma dúvida de que muitos criminosos no presente serão somente pacientes no futuro.
O caminho é longo e as possibilidades infindáveis. Não se tema, no entanto, que, sabendo mais do que somos, se possa reduzir o encanto de viver, aquele que depende do improviso. Provavelmente quando tudo parecer cientificamente destrinchado, ainda seguiremos sem conseguir explicar a garganta apertada pela dor da morte, a boca seca pela espera do filho na madrugada infindável, ou o coração disparado pela proximidade da mulher amada!”

Fonte: http://entrelacos.blogger.com.br/
#######
Os Jogos da hipocrisia
JUCA KFOURI
Não é de hoje que o Movimento Olímpico perdeu seu idealismo. Mas Pequim passa de todos os limites
"POR QUE você não foi para Pequim?", perguntam.
"Porque não quis", respondo. Mais: estou entrando em férias e só volto aqui no dia 21. (Nota do blog: o "aqui" se refere apenas ao jornal...).
Claro que verei a Olimpíada e até comentarei no blog, mas ando cheio de tanta hipocrisia, a começar pela caça aos que são pegos no antidoping por hábitos que só fazem mal e pioram o rendimento.
Não aceito ver essa cartilogem imunda da família olímpica no papel de fiscal dos hábitos da juventude e, ainda por cima, expondo jovens à execração pública, como acabam de fazer com um jogador do handebol brasileiro.
Como não suporto o ufanismo da maior parte das narrações, com as exceções de praxe para os felizardos que podem assinar um canal de televisão fechada, razão pela qual darei uma fugidinha do país para acompanhar Pequim de uma cidadezinha colonial mexicana apaixonante chamada Guanajuato.
Porque passa do limite ver um Carlos Nuzman fazer quase o elogio da poluição ou se jactar pela maior delegação brasileira da história, quando só 12% de nossa rede escolar tem quadras de esporte. Aliás, quanto mais medalhas o Brasil ganhar, mais ficará demonstrado o desvio de sua não-política esportiva, porque privilegia o alto rendimento em vez da inclusão social ou a saúde pública por meio da prática de esportes.
Dá engulhos ver a cartolagem em hotéis de até sete estrelas enchendo a boca para dizer que esporte e política não se misturam, quando nada foi mais político do que escolher Pequim para receber os Jogos, cidade que, além de poluída, é uma capital que se notabiliza por cercear direitos básicos da cidadania.
Tudo por dinheiro, tão simples assim.
Porque a China talvez seja o melhor exemplo, com todas as suas contradições, de como ainda não se achou um sistema razoável, tão óbvias são as mazelas do comunismo e do capitalismo reais.
É claro que verei tudo, é claro que me emocionarei com as vitórias brasileiras, como com a festa de abertura.
É evidente que torcerei para que aconteçam triunfos como nunca, porque tenho a surpreendente capacidade (surpreende a mim mesmo, diga-se) de voltar a ser criança a cada competição em seu apito inicial.
E não é de hoje.
Faço assim com os jogos de futebol lá se vão bem uns 26 anos, depois que se revelou a existência da chamada "Máfia da Loteria Esportiva".
Porque paixão é paixão e não se explica, não se racionaliza, se sente.
E se curte.
Sim, eu sei que serei capaz de me comover às lágrimas até com a superação de um atleta que não seja conterrâneo, como já me aconteceu inúmeras vezes.
Mas é preciso que se diga que mais que em Atlanta, quando os Jogos Olímpicos modernos comemoraram cem anos e a Coca-Cola alijou Atenas de recebê-los num crime contra a história, esta edição chinesa é um soco em quem associa o esporte à saúde e à liberdade.
Lamento sentir assim, mas quem viveu a inesquecível festa de Barcelona-1992, cujos equipamentos até hoje são utilizados por quem os pagou, os catalães, além da hospitalidade que recebeu o mundo tão bem, não pode engolir Pequim-2008.
Fonte: Folha de São Paulo

Nenhum comentário: