quarta-feira, 8 de outubro de 2008

continuação...

O empresário realmente é um animal,
o Gandhi dizia que o ser humano
é o único que mata sem razão de ser.
Muito bem, eles são piores do que o ser humano.

Regina Porto - Quer dizer, seria uma mistura da Fonte da Nação com cerebralismo?
Tom Zé - É, é por aí. Agora, por exemplo, eu tenho uma música que fiz para reinauguração do Teatro Vila Velha, que Neusa sempre me falou que era boa. Tinham-me pedido para fazer um samba-enredo, eu fiz assim: (canta) “Somente os dementes, os loucos, os teatros, os corações, os malandros, os palhaços podem vencer os dragões aliados aos caminhões e aos supermercados”. Essa letra de fantasia parece coisa de samba-enredo, mas eu nunca tinha reparado que isso era musical. Aí, esta semana, eu queria fazer um samba-enredo batido mesmo: ta-cundum, cum-ta-cadum. E cantar isso baixinho atrás em bossa nova, dobrando o compasso do samba-enredo – onde ele faz quatro, eu faço dois e tal. Aí, de repente, eu notei que isso era bem bonito musicalmente e falei: “Neusa, você tinha razão, é uma música bonita”. É porque quando Neusa canta é que vejo se a música é bonita ou não. Porque ela canta com voz normal, de pessoas humanas, e eu não tenho isso, né, sou um troglodita. (risos) Aí eu disse a Neusa: “Essa letra agora precisa de quarenta horas de trabalho”. Não é que eu vá sentar quarenta horas e fazer uma letra. Eu vou trabalhar quatro horas hoje, quatro amanhã, pacientemente, achando as coisas, para poder ficar interessante. Para quando você ouvir soar assim: (cantarola) “Se na juventude já vem tudo javali” – você compreendeu a língua? –, “se na juventude já vem tudo javali. O afoito desse coito é coisa que já lá vi. Baco, buraco, cu, uva que já colhi”. Eu quero que saia uma brincadeira assim: “Baco, buraco, cuva, uva que já colhi”. Eu quero esses ambientes meio pornográficos, meio sensuais estejam envolvidos, numa forma bonita, que a língua fique tropeçando nela mesma. Então é isso que eu chamo de trabalhar quarenta horas, quer dizer, nunca vou ser um grande poeta, mas chego numa brincadeira, né?

José Arbex Jr. - Voltando às gravadoras, agora na questão de política cultural. Numa conversa outro dia com o Gilberto Vasconcellos, ele colocou uma questão muito interessante: uma das formas de dominar culturalmente um povo é aniquilar a sua principal forma de manifestação cultural; como o brasileiro tem um ouvido muito poderoso e um ritmo muito forte, uma das formas de dominar culturalmente o país é aniquilar o ouvido brasileiro através de uma certa padronização musical, e aí entraria a política do axé, do tchan e o escambau. Você não acha que existe uma política cultural deliberada das gravadoras no sentido de uniformizar os padrões estéticos de consumo de música no Brasil, como atitude estratégica?
Tom Zé - Eu acho que eles não são capazes de estratégia nenhuma. Acho que são só mercadores no templo, como Jesus dizia. Eles querem vender seja lá que porcaria for, seja lá que estratégia for, não importa se aquilo vai prejudicar ou fazer bem. Quando João Gilberto começou a vender maravilhosamente bem, eles só queriam vender João Gilberto que era uma coisa linda. Se alguma coisa maravilhosa aí começar a vender bem, eles vão vender com a maior paixão, com o maior amor. Estratégia não tem, desculpe, querido, eu queria falar isso como um conceito que tenho do empresário. O empresário realmente é um animal, o Gandhi dizia que o ser humano é o único que mata sem razão de ser. Muito bem, eles são piores do que o ser humano. Matar sem razão de ser, humilhar sem razão, é fichinha diante desses caras. Veja bem o que eles são: eles estão podres de cachaça, estão podres, eles não pensam em ninguém que trabalha para eles, ninguém vale nada. Hoje, ser um executivo bom é ser um executivo frio, é ser um nazista: esse aqui mete perigo, corta-se; essa criança nasceu má, mata-se; esse menino está parecendo que vai virar homossexual, mata; esse menino parece que vai virar comunista, mata. Essas pessoas são assim, é muito diferente da espécie humana. Não têm estratégia, eles sempre falam aqueles termos, briefing, não sei o que, eles aprendem, mas não significa nada, nem, do ponto de vista cartesiano e nem maquiavélico, não quer dizer nada. É só isso.

Marina Amaral - Mas, quando você fez aquele show no Abril Pró Rock, tinha um monte de gente semi-analfabeta que gostava daquilo. Então, o povo gosta do que mandam ele gostar, do que vendem para ele gostar? Aí a gente fica na questão ovo e galinha, as gravadoras apostam para vender, mas por que elas acreditam que determinada coisa vai vender e não outra? Não se está tolhendo o gosto dessa maneira, não é uma burrice também?
Tom Zé - Tá bom, então escolhamos um diretor de gravadora: Pedrico de Pereira Pinta, grande diretor da multinacional Joneleca Baleco Feca. Ele, por acaso, gosta de Beethoven? Ele, por acaso, gosta de Cole Porter? Ele, por acaso, gosta de Scelsi, que está fazendo novamente música microtônica, que a Igreja proibiu não sei quantos séculos atrás? Ele, por acaso, gosta de ver Beethoven naquela aflição que ele tinha de tudo já estar feito – o procedimento de Beethoven era esse, ele precisava fazer alguma coisa diferente, Mozart já havia feito acabado tudo o que tinha para fazer, Haydn também. Ele, por acaso, gosta disso? Ele gosta do que ele está querendo vender ao povo. Ele não está sendo contraditório, não. Ele olha e diz assim: “Ah, isso aqui é bom para o povo”. Ele pensa que é bom porque ele gosta. Eu não contei para vocês o fim da história da minha coisa do Tchan. O Tchan faz uma música que só é fraca porque é muito igual, muito igual. E isso realmente ninguém pode agüentar. Mas eles fazem uma música, até, que é do samba de roda do interior da Bahia. Eu cresci vendo aquele tipo de coisa deles. Nesse ponto, eles são até resgatadores de uma coisa. Agora, eu não gosto daquele negócio de chega a bundinha pra cá, chega a bundinha pra lá. Eu fico com vergonha, não é que eu não goste de bundinha. (risos) Aí, a moça me ligou, para me pedir o release deles, do Tchan – eu faço releases, vocês sabem. E – veja o fracasso dessa venda deles agora – ela me disse: “Olhe, nós queremos transferir o Tchan da classe econômica para a classe executiva”. Vê que simbolismo, que coisa bonita, o português lá está trabalhando: tem gente empregada lá que sabe falar a língua. Muito bem, aí vêm aquelas palavras: estou te dando o briefing, estou te dando o não sei o que lá. Eu não entendo metade das palavras, mas, como trabalho com uma gravadora que só fala inglês, aí vou assim mais ou menos catando, porque eles só falam inglês. Outro dia, o sujeito me pediu para falar inglês na televisão e eu disse assim: “Mas falar inglês na televisão, só se fala inglês no Brasil, porque eu vou falar inglês na televisão?” Muito bem, então briefing pra cá, briefing pra lá e tal. Eu falei: “E como é que eu fico?” Ela me falou: “Vou te mandar agora de tarde”. Mandou. Eu tô vendo lá os músicos e suas músicas, mas fiquei envergonhado da primeira: “A bundinha vai, a bundinha vem, chega aqui, chega pra lá, chega pra cá”. Eu aí fechei o disco, falei: “Neusa, eu não agüento”. E nós precisamos de dinheiro. A moça não disse que ia me pagar caro, mas disse que a gravadora está investindo grande dinheiro para transferir o Tchan da classe tal pra classe qual. E eles queriam que eu fizesse o release para avalizar, e não foram malsucedidos nessa procura de nomes importantes, não. A Folha de S. Paulo publicou duas meias páginas falando mal, mas falando. A Folha de S. Paulo só fala de coisas consideráveis e Arthur Nestrovsky, esse crítico tão respeitável, coitado, eu não sei por que coisa lá, fez uma crítica falando mal. Mas, veja, eles conseguiram ocupar o espaço da Folha de S. Paulo para falar deles.José Arbex Jr. - É, o Caetano elogiou. Tom Zé - Não, mas Caetano tem outro tipo de problema lá. Eu não quero criticar Caetano por isso, mas a gente pode viver sem essas músicas, sem essas rádios FM. Eu não ouço, mas acho que elas devem viver, são emprego. Mas o que há é o seguinte: já existe um público que não quer esse outro tipo de música. E esse público precisa ter suas rádios, precisa ter seus guetos. José Arbex Jr. - Mas você é um intelectual. Tom Zé - Não, eu não sou. José Arbex Jr. - Um sujeito que vem numa entrevista, cita toda a história da música desde a Idade Média, dá uma aula de estrutura melódica não é intelectual?Tom Zé - Desculpe, parece que estou querendo ser humilde, não é? O que eu quero defender é que tem outro tipo de inteligência que eu persigo, que é uma inteligência que não é cartesiana, nem mede níveis de QI. Eu venho aqui como um antiintelectual, como uma coisa qualquer, que não tem nome ainda (risos gerais), mas fico observando coisas. Agora eu quero lhe mostrar como entrei na civilização, porque não sou dessa civilização. Eu engano que estou nela, é por isso que digo que não sou intelectual. Quando você tem até sete anos, sua mãe lhe ensina o beabá. Be-a, bá; be-é, bé; be-i, bi; aí você entra na escola. Então eu entrei, aí a professora imediatamente completou o ensino do ABC. E um dia ela mandou ler um texto. Bicho! Mandou ler o texto, em língua portuguesa, todo em sinaizinhos – esse é o alfabeto que os gregos inventaram lá pelo século 5, o alfabeto fonético, essa maravilha, que traduz todas as línguas. Eu me iniciei nisso nessa hora. Então, eu sentei – e todo mundo tinha que ler em silêncio, e essa era a grande novidade: eu já tinha visto textos, mas esse era comunicação oral, para ser lido alto, não era como aquela leitura silenciosa. Então aqueles sinaizinhos estavam lá, e eu lia: “Pedro precisava voltar para casa, porque tinha um problema” – sei lá o que era – “e ele pediu licença à professora, a professora permitiu. Ele levantou-se, caminhou, pediu desculpas aos alunos, saiu pela porta”. Aí, eu dizia: que coisa difícil, será que todo mundo está entendendo? Aí, “Pedro falou com a professora” – e eu me perguntando: será que esse sinalzinho está comunicando que Pedro disse uma palavra à professora? Que a palavra atravessou o ar, foi no ouvido da professora! “Aí, a professora permitiu, Pedro levantou e caminhou”. Digo: porra! Caminhar também pode ser escrito? Tudo isso era um absurdo para mim. “Aí o Pedro se despediu dos alunos e saiu andando na chuva” – então, a natureza também pode ser descrita! A chuva e o homem andando, tudo ao mesmo tempo, e está escrito aqui em pouquíssimas palavras. Ah, bicho! Eu pensei: será que todo mundo aqui entendeu assim? Será que isso é verdade? Eu fui pra casa e fiquei sentado a tarde toda pensando: será que o mundo é assim? Será que isso existe? Não é estranho que eu tenha tido tanto espanto, porque isso é uma nova vida pra mim. Porque, na verdade, todo mundo sabe que, quando a invenção de Gutenberg entrou no mundo, modificou o mundo. E isso ia modificar a minha vida, era natural que eu tivesse tido espanto, eu não sei de onde vinha a sensibilidade para eu ter tanta percepção. Eu não tinha nada intelectual, só tinha o sentimento puro, sem palavra para me socorrer, para intermediar entre mim e o sentimento. Aí eu dizia assim: mas, então, quer dizer que eu posso escrever para outra pessoa, quer dizer que a outra pessoa escreve para outra? O mundo todo, nesse momento, está falando um com o outro, assim? Mas então chegou uma coisa nova, que eu não sabia que tinha, chegou um novo padrão. Chegou uma nova ordem. Depois, a gente sabe, muita gente decifrou isso. Aquele que está fora de moda, o McLuhan, decifrou isso de uma maneira tão clara. Eu acho que é importante trazer isso, para poder argumentar que eu não vivo como intelectual. Eu passei a ter, também, os recursos da capacidade de ler e de receber informação pela leitura. Mas, antes, eu fui treinado em outra coisa. E a coisa que eu treinei antes está mais em mim do que a que aprendi depois. Os meus elos aos oito anos são mais fortes do que dos oito anos pra cá. Quem sabe eu estaria fazendo outra coisa? Vamos fazer uma brincadeira? Eu, depois dos oito anos, estudei música, estudei dodecafonia, estudei politonalidade, serialismo, o pós-moderno da escola de Viena, estudei tudo isso como bolsista, como cê-dê-efe filho da mãe. E eu não fiz nada disso. Não faço, não me interesso. Eu acho que isso já foi feito, já acabou. De todo modo, acho que é um argumento interessante sobre isso de eu não ser intelectual. Não é que eu ache que é vergonha. Eu gostaria muito de ser. Por exemplo, Zé Miguel Wisnick é meu amigo, Zé Miguel é um intelectual no bom sentido. Porque Zé Miguel é uma pessoa humilde, que fala para todos. Mas ele me trata com carinho porque sabe que eu não sou do nível dele intelectualmente, mas sou outra coisa que ele respeita. E eu acho que ele, ele e talvez vocês – pela cara que eu estou vendo vocês fazerem aqui, agora – são raras pessoas que estão fazendo essas coisas, essas humanidades. E também, talvez de otimismo? É agora, talvez os filhos da gente possam ver o mundo, respeitar, não deixar passar a fase antes do cinismo, não é? Então, isso é otimismo. Marina Amaral - Você volta para tua terra?Tom Zé - Sim. Eu estou lá todo dia, telefono pra lá todo dia. Eu olho na Folha todo dia se chove lá, porque na Folha tem o mapa da chuva, no Estado também tem, mas o da Folha eu comecei entendendo melhor, eu vejo no da Folha. Então, eu olho o dia que chove em Irará, o dia que não chove, e quando tem chuva muito grossa armada, porque aí fica preto o lugar, com as nuvens escuras, eu digo: “Choveu mesmo? Porque a Folha disse que ia chover”. (risos) Eu tenho todos os amigos de infância. Eu sei quem foi, quem voltou, quem morreu, quem não morreu.
José Arbex Jr. - Como você é visto lá? Como o pessoal te recebe?
Tom Zé - Primeiro, assim, com bastante alegria, como se um colega deles alcançasse uma fama e fizesse coisas bonitas e as pessoas gostassem. Ficam contentes, me tratam com o maior carinho, eu me sinto bem. Os amigos mesmo.
José Arbex Jr. - Você não virou um doutor, então?
Tom Zé - Não, para eles, eu sou um cantor de cantiga, não é?
José Arbex Jr. - E, da tua família, quem está vivo ainda?
Tom Zé - Minha mãe já não compreende mais. Quando ela compreendia, gostava. Agora, está com noventa anos. Quando a conheci, ela tinha 32 anos. (risos) Ah, aquele cheiro de pó-de-arroz, era o que usava naquele tempo, aquele colo, aquela mulher bonita. E eu gostava tanto da atenção dela que tive que ter asma para ela ficar olhando pra mim, e falando em mim. Asma era um sofrimento terrível, mas era uma felicidade, eu deitava lá, sofrendo, e minha mãe dizia: “Ele saiu de casa, foi tomar chuvisco não sei aonde, voltou tossindo...” (risos) Era eu o assunto daquela boca linda, né? (risos)
José Arbex Jr. - E a relação inversa: você com São Paulo. Você se sente um nordestino em São Paulo, se acha integrado? Ou sente que existe de fato uma segregação, um racismo?
Tom Zé - Bom, existe uma coisa curiosa, não é racismo propriamente: eu tenho cara de interiorano, de tabaréu, que aqui chamam caipira, né? Por exemplo: eu vesti essa camisa – essa camisa é de seda pura, eu vim assim porque ia trabalhar com vocês, né, para fazer boa figura. (risos) E, um dia, eu estava com essa camisa na porta do prédio lá de casa e saltou de um carro uma senhora que não era do prédio e falou assim pra mim: “Pegue esses pacotes”. Eu fui lá e peguei. (gargalhadas) Eu não me importo. Eu estudo tai-chi na escola na rua Madre Cabrini, que tem aquele colégio lindo ali na frente, e tem um senhor que vende guarda-chuvas, sombrinhas e ontem eu estava abaixado, comprando um guarda-chuva e um boné daqueles que eu gosto – daqueles que Guga usa pelo contrário, eu gosto de usar pelo contrário também –, e aí abaixou uma senhora e disse assim pra mim: “Ah, você vende Zona Azul?” Eu ri, não sabia o que responder e ela me disse: “Pois me dê duas zona azul”. (risos) Isso prova o quê? Que as pessoas não desgostam de mim. Eu tenho cara de nordestino mesmo, não é? Não me importo com isso. Mas é claro que hoje eu sou muito conhecido, às vezes eu vou na feira – todo mundo hoje, na feira, fala comigo, depois dessa última subida que eu dei na audiência e tal –, aí eu digo: “Neusa, agora eu estou bastante conhecido, um cara hoje disse que sou cabeça: esse aí é cabeça”. (risos)
José Arbex Jr. - Fiz essa pergunta porque queria saber se a música que você fez para São Paulo é a homenagem de um estrangeiro ao país estranho ou de alguém que se sente integrado.
Tom Zé - Não é nem uma coisa, nem outra. É uma observação que eu fiz durante um tempo em que estava aqui. Eu cheguei em São Paulo em 1965, depois em 1968, para ficar. Naquele tempo, a moda era falar mal de São Paulo. Lembra? No tempo da ditadura, nos primeiros cinco minutos, quando você conhecia uma pessoa, ela imediatamente falava mal de ditador, de milico e tal, porque ela queria se identificar como pessoa de nível. E todo o ambiente artístico, nos primeiros cinco minutos, falava mal de São Paulo. Era uma maneira de se identificar, era um status. Falar mal de São Paulo era uma qualidade do povo artista. E eu reparei que as pessoas, apesar disso, aqui ficavam, aqui ganhavam. E aí tive a idéia de fazer essa oposição: “São Paulo é a solidão aglomerada”, tudo o que eles diziam, eu só fiz reescrever. “São onze milhões de habitantes/ De todo canto e nação/ Que se agridem cortesmente/ Correndo a todo vapor/ Se amando com todo o ódio/ Se odeiam com todo amor.” E botava solução, que é o que eu via eles fazeram: “Porém com todo defeito/ Te carrego no meu peito/ São São Paulo, quanta dor/ São São Paulo meu amor”. Era sempre a presença dessas oposições, e assim é toda a letra. Tem um verso curioso que diz assim: “Salvai-os por caridade/ Prostitutas invadiram/ Todo o centro da cidade/ Armadas de rouge e batom/ Em Brasília é veraneio/ No Rio de Janeiro é banho de mar/ O País tá todo tá de férias/ Aqui é só trabalhar”. Era uma pilhéria. Foi tomado como hino de amor, porque, vocês sabem, tem uma coisa que o gatilho da comunicação às vezes dispara e aí não há jeito de fazer entender o que é que está atrás do gatilho.
Regina Porto - Você acha que pertence a essa linhagem dos baianos barrocos?
Tom Zé - Barroco, sim, mas baiano, não. Porque eu não sou da Bahia, eu sou do interior, é diferente. Eu nunca virei baiano de Salvador.
Regina Porto - É mesmo? Você separa, Bahia para você é Salvador?
Tom Zé - É muito diferente. A comida é diferente, o pensamento é diferente. A Bahia, todo mundo sabe fazer a fotossíntese, a Bahia é a maravilha e tudo. Mas, no Irará, também a gente se queima de sol, fica bronzeado e se vira. E eu sou mais o tipo de – eu não sei fazer a fotossíntese de lá –, mas sou mais o tipo de gente assim do Recife. Tanto que eu fiquei agora mais recifense, fiquei muito amigo do Otto, de Nação Zumbi, do Cascabulho, do Fred 04, das meninas daquela banda maravilhosa que gravaram Xiquexique – Comadre Florzinha. E na Bahia eu tenho uma biógrafa, desculpe, só para contar isso, uma pessoa muito consciente, uma jornalista jovem, está trabalhando muito carinhosamente, chamada Tatiana Lima. Você vê, eu sou barroco, falo muito... Neusa - Menos do Kid Vinil, que você não falou até agora...
Tom Zé - Ah, sim, o Kid Vinil e a Marilda Vieira. Eles me botaram nessa gravadora, eu agora não sou mais menino de rua, tenho uma casa, tenho colegas, me levaram para lá. Já pensou, né, vinte anos no sinal de trânsito, eles me deram banho, (gargalhadas) me deram roupas bonitas – me deram roupas mesmo. Não porque eu precise de roupas, né; mas porque tem toda aquela estratégia da roupa. Bom, eu acho que não tenho mais nada para falar... eu queria falar só do automóvel. (risadas) Eu estou entusiasmado porque foi assim: o negócio do automóvel surgiu em 1980 e aí se fundou o Proálcool e o Brasil fez o primeiro carro a álcool. Aí, em 1983, 84 e 85 teve o grande boom, todo mundo queria, resolveu-se aquele problema do carro que não pegava no frio e tal. Eu gosto muito disso, porque foi uma coisa só feita no Brasil. Foi um novo Pelé brasileiro, digamos assim. Um outro Pelé brasileiro além da bossa nova, além do tropicalismo. Quer dizer, quando o país estrutura, inaugura arquétipos de indústria ou de arte, isso é malha de relações do primeiro grau. Isso é arte do nascedouro.
Entrevistadores:Regina Porto, Marina Amaral, Cláudio Júlio Tognolli, Ricardo Kotscho, Flávio Tiné, José Arbex Jr., Marco Frenette, Adalberto Rabelo Filho, Sérgio de Souza.

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