quinta-feira, 9 de outubro de 2008

continuação...


José Arbex Jr. - Então, por que ele te tornou analfabeto?
Tom Zé - É o seguinte: eu tinha quinze anos, tinha sido um aluno normal da escola primária em Irará, mas na Bahia (Salvador) eu comecei a ir mal no ginásio. Lá pelo 3° ano, depois de várias peripécias, de procedimentos problemáticos com a família, de fugir de casa, de roubar dinheiro do meu tio, de dizerem que eu era um delinqüente em potencial, lá pelo 3° ano de ginásio, eu compliquei tanto que fiquei na segunda chamada. Não sei se existe isso ainda, é como se você fizesse recuperação de todas as matérias, estudando durante todo o período de férias, como castigo. E minha mãe me dizia: “Seu vagabundo, agora você tem que estudar.” E me botava de 1 às 5 horas da tarde num quarto trancado com os livros. Mas eu tinha dois gibis. E veja que eu era proibido de ler gibis, mesmo no lazer, porque sou de uma família de comunistas e meus tios me diziam: “Você não pode nem ler gibi nem tomar Coca-Cola”. (risos) Porque eles queriam levar os Estados Unidos à falência. (mais risos) E o tal gibi tinha ainda um segundo argumento contra ele que era: “Se você lê, com quadrinho desenhado, não usa a imaginação”. Por isso eu podia ler livros, mas gibi, não. Então eu estava no quarto de 1 às 5 horas e, quando os meus gibis acabaram, começou o tédio. Os livros da escola eu não suportava, havia um livro em cima do nicho lá de casa. Era Os Sertões, de Euclides da Cunha. Eu olhava aquela encadernação escura e dizia: “Puta que pariu, isso deve ser o diabo”. Porque eu ouvia os adultos falarem daquele livro, dizendo que era uma maravilha, que o Euclides da Cunha falava sobre o nordestino dizendo que o sertanejo é antes de tudo um forte, que está sempre em atividade, observando o mundo em volta de si... uma hora lá eu peguei o tal livro. Abri. Primeira parte, “A Terra”: “Os terrenos terciários que formam o território brasileiro...” Um livro muito difícil, eu, com quinze anos, fui saltando, saltando páginas, aí parei na segunda parte: “O Homem”. Ai, Jesus, que susto! Comecei a ler e me assustei ao reparar que ele falava da criatura que eu atendia no balcão da loja de meu pai. O homem da roça. E esses homens, na verdade, eram nossos avós que vieram da península Ibérica nos séculos 16 e 17. A historia do Brasil chama a todos de portugueses, mas tinha muito sangue árabe e judeu ali também. Na Idade Média, a invasão dos árabes em Portugal e Espanha durou do século 7 ao século 15, enquanto naquele momento toda a Europa era civilizada pelos bárbaros cristãos, godos, visigodos, bretões – bárbaros, como diz o nome, a península era educada pelo povo mais sábio do mundo naquele momento, e foi isso que eu encontrei na loja de meu pai.
Marina Amaral - Você é filho único?
Tom Zé - Não, eram dois antes de mim, do primeiro casamento, e cinco do segundo casamento. Mas não era casamento que a pessoa trocava, a mulher morria pra você trocar o casamento naquele tempo. Mas, me desculpe, eu preciso terminar realmente, estou terminando. Na leitura do Euclides, descobri que aquela criatura que eu encontrava na loja, o sertanejo, é obsessivamente um cientista de coração, interessado e especulador. Bem, ali estava eu, assustado com um livro que se referia diretamente a uma coisa que eu conhecia, intuía, mas não tinha capacidade de descrever em palavras, eu duvidava: meu Deus, será possível? E, quando você não tem a palavra para intermediar sentimento e o corpo, você fica com os nervos nus, expostos a uma espécie de febre... Bem, nós chamamos isso de emoção. Mas, naquele tempo, eu não conhecia essa palavra pra me socorrer, só tinha o frio na espinha. Descobrindo aquele homem e ficando ali, criança, sem nenhuma palavra pra me socorrer, somente com a emoção de ver no livro, num lugar inesperado, aquilo que eu sentia. Então eu aconselho que vocês leiam Os Sertões, mas não comecem pela “A Terra” nem por “O Homem”, como eu fiz. Comecem por “A Luta”. “A Luta” é gibi puro. É ridículo os militares saindo aqui de São Paulo para combater o Conselheiro com suas roupas de frio, saltando no Nordeste e sendo derrotados em 24 horas pelo calor da região. Depois, quando mais prevenidos, são derrotados em 48 horas pelos espinhos das caatingas, e assim por diante. E esse cara chamado Euclides da Cunha descobriu que aquele que ele ia lá conhecer como selvagem era um homem surpreendente, que ele passou a amar e, então, fez o elogio de nós todos, quer dizer, o elogio ao sertanejo.
José Arbex Jr. - Mas você ainda não explicou o analfabeto...
Tom Zé - Ah, sim, é justamente por isso. (risos) Um povo que lê, um povo alfabetizado, que sabe escrever não tem medo de perder sua cultura. Escreve livros, bota nas bibliotecas e vai ver novelas. Não se preocupa com nada, está tudo ali escrito. O sertanejo é diferente, e é esse tipo de analfabeto que eu sou e que Os Sertões me mostrou que era o que eu devia continuar a ser. O sertanejo tem que falar cultura, dançar cultura, cantar cultura, fazer pentimento dos conhecimentos esotéricos na paisagem das caatingas, num constante esforço para não perder a cultura dos seus avós, que ele ama mas não tem como registrar. Essa cultura é muito diferente da nossa, é um processo de estruturação e lógica que não conhece Descartes e Aristóteles e que não está fundado na palavra escrita. É esse tipo de analfabeto que eu continuo sendo. A brincadeira é essa. Está mal explicada, porque não sou capaz de dar entrevistas. Quem dá entrevista é uma pessoa que tem pensamento original, cultura. De forma que, se vocês forem fazer comigo uma entrevista, eu já estou fracassado. Mas, como eu sou sertanejo, e filho de família metade comunista, metade reacionária, né?, (risos) talvez eu possa fazer armadilhas para que vocês me façam perguntas que eu saiba responder, ou melhor, que tenha pensado sobre. Eu não posso responder sobre qualquer coisa, isso não! (risos)
Cláudio Júlio Tognolli - Tom Zé, quando vi você no MTV Video Music Awards ao lado do Caetano, há pouco, lembrei de uma cena contada pelo Luís Calanca, do Baratos Afins, que soltou o teu disco em 1984. Foi uns meses atrás, lá na Galeria do Rock: “Você não sabe quem acabou de sair daqui, o Tom Zé!” E me disse que você escreveu um artigo contando como o David Byrne foi pro Rio e tava num sebo de discos, pegou teu disco, ouviu, achou obra de gênio e depois ligou de Nova York pro Caetano...
Tom Zé - Não, ligou pro Arto Lindsay, que disse a ele: “Ah, é do tropicalismo e tal e tal”. Aí o Matinas Suzuki fez uma entrevista com o David Byrne no apartamento dele, e viu escrito em cima da mesa: “No Brasil, procurar Tom Zé”. E escreveu isso no jornal como se não fosse nada. Neusa, que conhece essas coisas – é a pessoa intelectual lá de casa, minha mulher, eu sou o analfabeto que ela protege (risos) –, Neusa deu um grito feito uma índia, que nunca tinha dado, né? Esse negócio de David Byrne foi surpresa. Eu estava pra largar a música naquela ocasião, não dava mais dinheiro, tinha passado decepções. Aí o Byrne aparece. Fiquei desorientado: “O que é que eu faço agora?” Eu tinha combinado de ir para Irará, trabalhar no posto de gasolina de meu sobrinho Dega, e aí me aconselharam: “Deixe esse negócio de Irará por enquanto, fique por aqui”. Então eu fiquei em São Paulo, eu e Neusa, nós telefonamos para algumas pessoas e, quando Caetano foi consultado, disse: “Tom Zé, acho que é Tuzé de Abreu, porque ele é muito amigo do Tuzé de Abreu”. Eu caí do cavalo e falei pra Neusa: “Parece que tudo foi um sonho mesmo, deve ter sido engano”.
Cláudio Júlio Tognolli - Mas você escreveu um artigo falando que o Caetano te prejudicou? Que deu o nome errado, que não era o teu?
Tom Zé - Não, eu escrevi coisas... Mas isso eu já falei! Sabe o que é? Se eu ficar falando em Caetano todo dia, fico dando uma importância tão grande a isso que prejudica minha própria capacidade de trabalhar. Então tenho que deixá-los em paz, vamos encerrar essa história, que eu proponho contar de uma maneira geral e honesta. Foi assim: eu fui enterrado vivo duas vezes. A primeira em 1940, porque minha família saía do campesinato e ia pra universidade e minha mãe, por uma rebeldia qualquer – talvez seja a única coisa artística que tenha havido na família antes de mim –, disse que não estudaria mais em colégio de freira. Meu avô, coitado, lá no interior, que não sabia o que fazer, teve que trazê-la pra Irará, porque, se não queria colégio de freira, ia botar ela onde? Numa pensão, uma moça? Então, minha mãe veio e ficou naquele buraco sem fundo, buraco negro onde ela foi ficando no barricão, uma moça com trinta anos já! Mas casou com meu pai, seu Everton, homem simples de Irará, mas um homem muito grande de coração. E então começaram a nascer em Irará aqueles bichinhos horrorosos, mal-educados. Eu e meus irmãos, ah, merecíamos morrer! E criança compreende tudo! Que a gente merecia morrer a gente sabia, a gente lia nas palavras de minha mãe, no não-verbal, no próprio ambiente a gente lia. E eu, digamos assim, escolhi 1940 para ter sido enterrado. Eu tô vivo hoje graças à psiquiatria e à minha irmã Guile, que me salvou, senão eu estava no manicômio. Isso é sem o menor charme, né? Pois muito bem. Então, depois, eu fui enterrado a segunda vez na divisão de espólio do tropicalismo. Em 1970... nossa, eu tinha tanta coisa pra falar aqui e tô falando disso! Em 1970 eu fui enterrado a segunda vez, porque em 1968 o tropicalismo existiu, em 1969 acabou, todo mundo viajou e em 1970 fui enterrado, não é porque alguém me enterrou, nem porque a imprensa não gostasse de mim, não é por nada do que possa parecer dentro dos papéis que certas pessoas são chamadas a exercer no Brasil, não é isso. Eu fui enterrado porque é uma coisa normal, se seu trabalho ainda está incompleto, se ele ainda não pode ser considerado uma estaca para fincar no chão, se ele não pode, como um pênis, furar a terra e... e é a terra como mãe, o pênis como céu e pai. É como Cronos comendo seus filhos, é normal! Em Irará, também se diz assim: “Você tá me chamando de veado? Por que, bicho? Eu não sou homem mesmo, não. Meu pai ainda não morreu, como é que eu posso ser homem?” Quer dizer, isso é mitologia grega, não sei de que maneira foi parar em Irará. Mas foi. Michel Simon, aquele professor belga que foi muito importante no teatro francês e no teatro mundial, foi na Bahia já bem velhinho, e eu era estudante de música e ele me pediu pra ilustrar as conferências dele com umas certas canções que me dava escritas. Eu fazia um arranjo. Nisso me deu uma canção chamada A Pastorinha (e canta), Destes montes venho saindo/ destes montes venho saindo/ à procura do meu gado/ que perdi lá no roçado/ lá em terra de afogado... Daí ele dizia: “Sabe de onde vem essa pastorinha? É da tragédia grega, do personagem da tragédia grega”. E como é que esse diabo veio parar na Bahia, no bumba-meu-boi? Então, tudo bem, só pra brincar de como o mundo anda pelo avesso. Então eu fui enterrado em 1970, como numa história mitológica, e não por alguma pessoa ou alguma instituição, não tenho queixa de ninguém nem de nada. Fui enterrado profundamente, sim, e depois David Byrne me tirou desse buraco. Esse buraco era muito profundo, era preciso tão cuidadosamente me ignorar, era preciso que uma estrutura de cimento e concreto muito forte estivesse sobre mim, que não fosse possível eu sair dali. Bom, eu só posso pensar isso hoje: “Por que diabo, será que eu era importante?” Só posso concluir... Puta que pariu, isso aí tem que ser um negócio do tipo: “Esse cara não pode existir!” Muito bem, agora, na hora que eu, por acaso, começo a ser tão bem-sucedido é o caso de dizer: “Pô, realmente, eu sou um cara perigoso!” Só posso dizer assim.
Cláudio Júlio Tognolli - Mas tentaram ou não dar o nome...
Tom Zé - Deixa eu falar de outras coisas... ó, deixe! Olhe, É o Tchan foi um fracasso, não vendeu nada, os discos estão todos lá empilhados. Uma péssima notícia. (gargalhadas nossas)

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