quinta-feira, 9 de outubro de 2008

continuação...


Ou se vende de uma vez a eles,
ao serviço do Primeiro Mundo,
ou começa a pensar... ora,
pensar é uma coisa desaforada.

Regina Porto - Esse seu novo disco é uma denúncia disso tudo, não é?
Tom Zé - Ah, obrigado! Meu disco novo chama-se Com Defeito de Fabricação. Eu fiquei tão orgulhoso quando tive a idéia... – deixa eu contar ela longamente, porque aqui os parágrafos são maiores. (risos) Eu tava trabalhando como peão numa fazenda ecológica que o PMDB, naquele tempo, em 1984, tinha em Embu. E eu subia no caminhão, porque eu precisava daquilo, que aqui na cidade os meus nervos não agüentavam, sou homem nascido na terra, ia lá e melhorava meu estado de nervos e os psiquiatras tinham menos trabalho comigo. Um dia fui com o pessoal de lá para um lago, pra catar umas algas, apropriadas pra produzir gás e fazer fogo, era tudo natural lá. E aí tinha à minha esquerda um pequeno morro, já arruado, como as casa pobres. À minha direita, uma colina ainda pré-cabralina. Pensei: “Para o ano, esse morrinho vai estar loteado e habitado...”. Por que é que nós, os pobres, crescemos tanto? A que serve esse crescimento populacional? Crescemos porque o Primeiro Mundo precisa de uma mão-de-obra tão farta que ele possa pagar qualquer preço, já que não temos organizações, sindicatos, nada, ele pode pagar qualquer vintém e você vai lá dar sua morte para ele ter conforto. Que povo é esse? Esse povo não é gente, é andróide, uma subvida, uma sub-raça, Eu sei quem eles são porque sou um deles. Apenas comi um pouco mais do que eles. Muito bem, então somos andróides. Agora, têm uns defeitos de fabricação horrorosos, o defeito básico é pensar! Eu não sei como o Primeiro Mundo ainda permite que essas criaturas pensem. Porque é um perigo! De vez em quando aparecem uns como eu... meu pai ganhou na loteria e então me alimentou. Quando ele tinha trinta anos casou com a primeira mulher, a filha de um coronel, o coronel Cazuza Miranda, a dona Mirandinha Miranda, uma grande moça. Teve Guile, que me salvou a vida, e teve outro irmão. Depois casou com dona Helena, filha do coronel Pompílio Santana, minha mãe. Aí eu pude comer, estudar... mas eu sou um daqueles! A família de meu pai toda morreu tuberculosa de miséria. A gente conhece a família de minha mãe, mas a de meu pai não conhece ninguém, morreu tudo tuberculoso. Então, nós somos essa raça miserável, de vez em quando um de nós estuda um pouquinho e começa a ficar perigoso! Porque ou se vende de uma vez a eles, ao serviço do Primeiro Mundo, ou começa a pensar... ora, pensar é uma coisa desaforada. Como é que o Primeiro Mundo ainda permite que esses andróides pensem? Pensar pode crescer o cérebro. Qualquer órgão que se diz que é incentivado, que se trabalha com ele, o órgão cresce, né? Então, o cérebro pode crescer e de repente pode nascer Jesus Cristo e Fidel Castro pra todo lado. Eu não sei como o Primeiro Mundo ainda agüenta esse desaforo e ninguém faz nada! Deviam fazer lobotomia e acabar com isso. Os robôs-operários, fabricados pelo Japão e pela Alemanha, que são muito eficientes, trabalham no fogo, não têm acidente de trabalho, mas eles ainda são muito caros. Dizem que o óleo pra botar nas juntas daquele negócio é tão caro que vale uma favela inteira! Então, nós somos baratos e por isso a gente existe. Então, o disco é sobre isso, é todo de defeito. Defeito um, pensar; defeito dois, curiosidade; defeito três, sonhar... porque outra coisa eu vou dizer, eu não faço arte, eu faço jornalismo falado e cantado.
José Arbex Jr. - Você falando tudo isso, não soa meio irônico que foi um americano que te tirou do ostracismo?
Tom Zé - Por que é que os americanos me recebem e faço sucesso com um disco falando mal deles? Culpa!
Regina Porto - Só completando, como é, pra você, se consagrar depois dos sessenta anos? E, de qualquer forma, esse ano no Abril Pró Rock você foi a grande sensação.
Tom Zé - Eu não sei se as pessoas sabem aqui, mas faço um tipo de música em que eu sonho com a pessoa se interessar por processos mentais. Tudo bem, tá lá um maluco qualquer querendo isso, aí como é que ele faz? Ele trabalha, trabalha, ele não é inspirado, não é grande compositor, mas ele trabalha, trabalha... faz as armadilhazinhas. Aí dizem que isso é impossível: “Ah, não, o povo não pode gostar disso”. Aí eu vou cantar no Abril Pró Rock em Pernambuco, é claro que certas conveniências lá na hora ajudaram, aí o povo todo ama, leva vinte minutos sem querer que outros artistas entrem no palco, vira um drama da noite, uma coisa que dizem que nunca aconteceu em cinco anos de festival. Tudo bem, quem sabe então se, com os diabos, essa programação de rádio e de televisão que a gente vê é inventada e dita como popular ou é o povo que quer assim? É o ovo ou a galinha? Pois, se eu toquei no Abril Pro Rock e todo mundo gostou. Lá, por acaso, tava cheio de intelectuais? A Caros Amigos, a revista República ou a USP estavam lá pra me aplaudir? Desculpe, sua pergunta era como é que faz sucesso nos Estados Unidos falando mal deles? É culpa.
José Arbex Jr. - Você acha que é culpa mesmo? Será que os americanos entendem a sua letra?
Tom Zé - Olha, tem horas em que eu sou estratégico. Descobri isso em 1991, num congresso de música erudita a que eu fui chamado com muita honra - que lá eu sou coisa que só o cão duvida. Então, eu cheguei lá nesse festival e ganhei até prêmio, no meio de músicos bons, que eu respeito, que eu morro até de vergonha, né? Pois lá apareceu um chinês que começou a esculhambar com as pessoas, que era “um segregado”, não sei o quê, não sei o que lá, aí todo mundo parecia assim assombrado com aquele negócio de alguém acusar de segregado um filho da puta que não fazia música que prestava nenhuma! Um chinês nazista lá, não que os chineses não façam coisa boa, não tem a ver com isso, nem com o que Mao ensinou lá, nem a mulher dele. Eu parei uma hora assim, nesse tempo eu não falava bem inglês – e não falo até hoje –, e aí eu falei pro meu intérprete: “Pergunte aí que janela que deixaram aberta pra culpa entrar nessa sala, que isso parece reunião do Partido Comunista Brasileiro”. (risos)
Cláudio Júlio Tognolli - Você e o David Byrne foram gravar com os cubanos, acho que ele foi expiar culpa dele.
Tom Zé - Talvez, ou então ele é brincalhão, né? Bom, mas aí falei: “Ah, os americanos têm culpa? Então espera aí”. Depois eu vi que eles fazem organizações não-governamentais que incentivam eles próprios a não comprar das grandes empresas multinacionais que poluem o Terceiro Mundo, as que tratam mal o Terceiro Mundo, as que tratam mal o operário do Terceiro Mundo, que são muito duras com o Terceiro Mundo. Eles também punem, têm lá organizações que dizem: “Não compre produto de tal empresa”. Outra coisa engraçada: quando um empresário americano ou europeu é convidado a vir ao Brasil, precisa passar por uma quarentena. Existe coisa mais natural do que um empresário necessitar de trabalhador, existe coisa mais natural do que isso? Não existe! Um não existe sem o outro! E, quando ele sai de lá, é instruído: “No Brasil é diferente! No Brasil, você pega a faca e sai traçando!” No Brasil, capitalismo selvagem é mentira, é selvagem ao quadrado! Os executivos da Volkswagen, da Mercedes, da Seagrams, de tudo quanto é lugar, não agem nos seus lugares como agem aqui. Aqui, eles são instruídos a agir com muito mais dureza, aqui eles não são humanos, só vêm pra’qui os que podiam entrar na SS. São escolhidos a dedo. Me desculpe, é que vou me entusiasmando e vocês ainda ficam me olhando como se eu fosse respeitável e vou me metendo a gente. (risos) Então, eles têm culpa, viu? E eu fiz o disco sabendo que eles iam gostar porque iam se sentir expiando suas culpas. Eu fiz estrategicamente por isso e falei várias vezes com Neusa. Neusa disse: “Não é perigoso?” Eu disse: “Não, eles vão gostar, eles precisam que alguém chame a atenção, ou então tem alguma humanidade ainda no povo, o povo, afinal de contas, não é o empresário, né?”
José Arbex Jr. - Quando você canta nos Estados Unidos, vê na sua frente um povo estrangeiro que não está entendendo o que você está cantando... qual é a sua relação com eles?
Tom Zé - Eu te conto o meu primeiro show no exterior que mudou o meu conceito sobre isso. Como eu faço um tipo de música – talvez nesse disco (Defeito de Fabricação) você possa ver, pela própria estrutura do arranjo, que eu saí daqui não foi por causa do texto, nem por causa da poesia, saí por causa de malandragem que faço com a própria música. A música é um establishment mais sério do que o Tradição, Família e Propriedade. A música é uma coisa mais intocável que eu chego e brinco com ela. Aí, quando cheguei em Zurique para fazer o meu primeiro show, em 1992 – porque a Suíça comemorou as navegações com a língua portuguesa, em vez de todos os outros países da Europa, que comemoraram com a língua espanhola –, comecei a cantar e estava todo mundo lá, vários artistas brasileiros, o Paulo Moura, gente do axé, gente do diabo lá, porque já estava começando essa mistura. Então, de repente, no meio do show vi as pessoas rindo, falei: “Oxente, que é que esses caras estão rindo, que alegria é essa? Eu pensei que ia fazer shows aqui...”. Riam porque eu cantava Um Ah e um Oh. Alguém conhece Um Ah e um Oh aqui? A música é só assim: “Oh, oh, oh, oh, oh, oh, oh/ Ah, oh, ah, oh, ah, oh, ah, oh” – quer dizer, é uma pilhéria de criança louca! E deu certo. Agora, quando eu canto nos Estados Unidos, eles não entendem palavra, por exemplo, quando eu canto Quem é que tá botando dinamite/ na cabeça do século?, eu canto em português, mas aí eu traduzo pra eles poderem ter idéia de que diabo aquela música quer dizer, e falo: “Olha, o Alfred Nobel ficou rico por causa da dinamite e a dinamite serve pra matar metade do mundo, mas ele agora dá o Prêmio Nobel da Paz. Então precisa morrer muita gente pra poder ter dinheiro pra dar o Prêmio Nobel da Paz”. Isso é incrível, né?

Flávio Tiné - Você ainda não falou sobre seu início de carreira em São Paulo, quando chegou aqui com todo aquele grupo de baianos...
Tom Zé - Eu estava numa fase muito fraca...

continua...

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