segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Falar e fazer


Marcelo de Paiva Abreu*
Os repiques de pânico registrados seguidamente pelos mercados mundiais refletem a lentidão em absorver más notícias a respeito do desempenho da economia real nos próximos três ou quatro semestres. Resgatar intermediários financeiros pode minorar, mas não fazer desaparecer magicamente o impacto da crise sobre a economia real. A consciência de que haverá uma recessão mundial, que poderá ser profunda e longa, dependendo da eficácia das políticas de ajuste, está afinal sendo absorvida pelos mercados.
O mote da vez é insistir na necessidade de ação coordenada em escala global. Mais fácil falar do que fazer. As dificuldades são substanciais. Algumas são óbvias, como o calendário político norte-americano, que fixa 20 de janeiro de 2009 para a posse do novo presidente. George W. Bush está sendo e continuará a ser o lame duck mais oneroso da história, concorrendo com Herbert Hoover, presidente republicano no período de 1929 a 1933. Outras dificuldades têm que ver com a fragmentação estrutural do federalismo europeu, agravada pela heterogeneidade dos processos decisórios quanto a políticas macroeconômicas entre a Europa do euro e o resto da Europa. Bruxelas emudeceu na crise. O destino fez com que o presidente do Conselho da União Européia fosse Nicolas Sarkozy. Como admitiu com relutância um diplomata alemão, "em tempos de crise, hiperativo vira enérgico, pressão inconveniente torna-se combatividade e imprevisível vira pragmático". O protagonismo de Sarkozy, alimentado pela perícia financeira britânica brandida pelo calejado Gordon Brown - inimigo da Europa do euro -, viabilizou um pacote de resgate financeiro que seria depois copiado pelos EUA. Ironicamente, os europeus foram mais eficazes em propor mecanismos que pudessem preservar os interesses dos contribuintes do que as autoridades norte-americanas.
Mas esse sucesso europeu é difícil de ser replicado. Especialmente em relação a políticas de reativação do nível de atividade. Por definição, a coordenação de políticas fiscais na Europa é problemática. Além disso, dificilmente os EUA se meterão de novo numa posição em que sejam manifestamente rebocados pela Europa. O presidente Sarkozy, em meio à hiperatividade, mencionou a necessidade de uma reunião ao estilo da que se realizou em Bretton Woods em 1944 e que lançou as bases da arquitetura do sistema monetário internacional do pós-guerra, inclusive do FMI. Seu "sucesso" - que envolveu a vitória do plano White sobre o plano Keynes - se deveu primordialmente à posição hegemônica inconteste dos EUA. Em contraste, a conferência de Londres de 1933, que buscava convergência de regimes cambiais após a Grande Depressão, marcada pelo equilíbrio entre os grandes protagonistas, fracassou redondamente em face da postura nacionalista adotada pelo governo Roosevelt.
O G8, não surpreendentemente, quer uma reunião da qual participariam os principais emergentes. A pauta incluiria, além da crise financeira, as encalhadas negociações comerciais multilaterais da Rodada Doha. Não parece ser excesso de pessimismo duvidar da eficácia desses esforços, pelo menos nas próximas semanas. É claro que as entravadas negociações na Organização Mundial do Comércio (OMC) poderiam beneficiar-se de ação coordenada. Embora o impacto seja pouco significativo em termos de proporção do PIB mundial, existiriam benefícios em evidenciar que a cooperação internacional pode funcionar. Na pior das hipóteses, há vantagens em impedir que o protecionismo avance na tentativa de resposta à crise.
De novo, os precedentes não são animadores. Nem os de longo prazo, em relação à política comercial dos EUA na crise de 1929, nem os da história recente das negociações da OMC, em Genebra. A resposta dos EUA à Grande Depressão na política comercial foi do tipo beggar thy neighbour (empobrecer o vizinho), aumentando significativamente a proteção com a tarifa Smoot-Hawley, de 1930. O problema é que todos os países adotaram políticas para "empobrecer os vizinhos", com resultante lamentável para a economia mundial. Só em 1934, depois de muitos meses de controvérsia com correntes protecionistas no governo Roosevelt, acabou por prevalecer a posição dos multilateralistas no Reciprocal Trade Agreements Act, de 1934. Por meio de uma série de acordos bilaterais, que incluiriam cláusulas de nação mais favorecida, os EUA negociariam reduções tarifárias recíprocas com alguns de seus principais parceiros.
A história mais recente das negociações comerciais em Genebra também não alimenta grandes esperanças, a menos que haja radical mudança de atitude de vários protagonistas na negociação. As dificuldades entre EUA, Índia e China, tendo como foco os subsídios agrícolas norte-americanos e as salvaguardas especiais para economias em desenvolvimento com agricultura ineficiente, parecem quase ridículas no contexto da atual crise. O curioso é que com a queda dos preços agrícolas mundiais é provável que a tacanha proposta dos EUA em relação a subsídios, em julho passado, tenha se transformado em proposta generosa.
É bem provável que as próximas semanas sejam de altíssima volatilidade dos mercados, em meio às eleições nos EUA. Mesmo depois de 4 de novembro, é difícil que a volatilidade desapareça, pois não é claro que o nível de cooperação para minorar as conseqüências da crise possa ser estabelecido entre o novo presidente e sua equipe e a atual administração. Será um duríssimo teste da vocação do novo presidente dos EUA para estadista global.

*Marcelo de Paiva Abreu, Ph.D. em economia pela Universidade de Cambridge, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-RJ
Fonte: http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20081020/

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