quinta-feira, 9 de outubro de 2008


A arte é sempre assim:
o embrião da coisa artística e
stá sempre no limbo,
entre o ridículo e o brilhante.
E eu só trabalho aí.

Ricardo Kotscho - Tem um verso seu, antológico, da música São São Paulo, que fala em aglomerada solidão, que é a melhor definição sobre São Paulo que eu já ouvi. E tem quase trinta anos. Hoje, que definição você daria? Ainda é a aglomerada solidão?
Tom Zé - É, nós gostamos. Eu tive que gravar novamente essa música. Eu achava que ela necessitaria de um arranjo, mas, ajudado por Zé Miguel Wisnick, não mudamos nada. Eu queria mudar, não pude mudar uma palavra.
Ricardo Kotscho - Então não muda nada em trinta anos?
Tom Zé - Nada. Só muda a população, né? Bom, enfim, a gente cantou e eu falei mais a música do que cantei, e fiquei admirado como ela tinha força ainda: “São oito milhões de habitantes, aglomerada solidão. Por mil chaminés e carros gazeados a prestação.” Que naquele tempo não se falava em poluição, e eu fui procurar uma metáfora lá com o nazismo: “gazeados a prestação.” E quem me inspirou foi o Hiroshima, Mon Amour, de Alain Resnais, tanto que a música no princípio ia se chamar São Paulo, Mon Amour, para se referir ao filme, que isso aqui estava virando uma bomba atômica, como acabou virando, né, agora nós estamos aí...
Cláudio Júlio Tognolli - Quando os Rolling Stones vieram aqui a primeira vez, o Keith Richards ficou numa fazenda em Matão e falou que aprendeu a afinar a guitarra dele num mi aberto que é uma técnica de viola caipira. A gente sabe que 90 por cento das músicas dos Rolling Stones são feitas com essa afinação diferente. Então eu te pergunto: tem alguma coisa nova sendo produzida no Brasil, hoje, que poderia contribuir para exportar tecnologia?
Tom Zé - Ótimo! Deus lhe abençoe. Olhe, o Brasil é o único país no mundo que tem lastro para endossar sua moeda chamada música. A Europa do norte, Júlio Medaglia é marido de uma alemã, Sabine, e costuma dizer que aqueles países estão exangues, miseráveis, não têm mais nada. E realmente, um dia eu estava na Suíça, num restaurante num castelo, e tinha um casamento numa daquelas salas imensas. E tinha músicos populares, eu falei: “Vamos ver esses músicos, que legal”. Cheguei lá, sabe qual é a música deles? Yoru - leiii-tiii... É música popular deles, fora isso era a música mexicana dos anos 60. Não se pode acreditar. Vai lá na Bahia que tem 38 maneiras de improvisar num martelo galopado, num isso, num aquilo, num aquilo outro. Vai em Pernambuco ouvir todos aqueles gêneros. Vai no Maranhão. E aí eu vou contar uma coisa: a governadora do Maranhão chamou dois irmãos metralhas nos Estados Unidos, botou dentro de um avião, com um estúdio hoje que cabe quase dentro de um livro. É um estudinho assim. Levou para São Luís, reuniu todas as bandas folclóricas, todos os grupos folclóricos de todo o Maranhão, pra esses moleques gravarem e levarem para a América do Norte e oferecer a compositores que queiram fazer músicas com essa influência ou com esse material, e depois mandarem uma porcentagem pras crianças daqui. Olha que coisa inocente dessa governadora – que Deus a abençoe e leve pro céu com os anjos. (risos) Imagine você, sou músico, posso testemunhar isso, imagine você que, quando eu ouço um bumba-meu-boi, uma chegança, lá em Irará, faço dez músicas só com aquela energia. É a alma que está naquilo, são séculos que estão naquilo. Agora, qual é o americano que vai ouvir isso e vai dizer honestamente: “Está bom, estou fazendo isso influenciado”. Imagine você que a alma do povo do Maranhão foi reunida – a alma, quinhentos anos de sofrimento e arte. Sofrimento não é arte, mas tudo bem, o nordestino fez arte com o sofrimento, e a governadora pegou quinhentos anos de sofrimento e arte, aquelas escalas estranhas, aqueles instrumentos desafinados, aquela microtonalidade, que o papa proibiu, que a música ocidental foi proibida de praticar desde o segundo Concílio de Trento, em mil quinhentos e tanto que nós não temos microtonalidade e o Nordeste faz isso, o Norte e o Sul. Há todos aqueles detalhes, todas aquelas formas estranhas, todos aqueles procedimentos que vêm de outra metafísica e, logo, é outra estética. Tudo isso para os americanos ouvirem e dizerem: “Eu quero, eu não quero”. Mas será possível, meu Deus, que a alma do Maranhão foi vendida!
Regina Porto - Você não gosta muito de falar em ressentimentos quanto à sua “segunda morte” nos anos 70, você sente este momento como uma espécie de acerto de contas? Consagrado nos Estados Unidos, você trouxe toda essa onda de modismo de música brasileira lá, o resgate dos Mutantes e da Tropicália; tudo isso quem começou foi você, nos Estados Unidos...
Tom Zé - Pode ser uma tese. Considere isso.
Regina Porto - Não, é um fato! Começou com você e depois, por sua causa, foram pesquisar o tropicalismo e caíram nos Mutantes e reeditaram isso em discos etc. etc. Minha pergunta é: tem revanche ou não?
Tom Zé - Eu aceito, mas lhe peço: aceite como tese. Se é revanche? Olha! Um lado pusilânime meu pode ver assim. (risos) Mas ele é derrotado tão rapidamente por meu prazer de ver! Bom, eu não sou candidato a nada pra dizer isso, né, não vou ser nada. Não sei, quando me oferecerem 200 milhões para fazer uma propaganda de cachaça, se vou aceitar ou não. Eu ainda estou em observação. (risos) Estou de quarentena, então posso dizer qualquer bobagem. Eu tenho solidariedade e amor, por exemplo, em Irará penso nas pessoas. Isso é tão ridículo: solidariedade tá fora de moda. E por isso eu digo, quando fui estudar, comi graças a uma bolsa de estudos. Quando a revolução de 1964 estourou, eu ia sair da escola. Aí, Ernest Widmer, o suíço, me chamou, pra surpresa minha, e disse: “Você vai sair da escola?” Falei: “Vou”. Fiquei admirado de ele saber, eu não era nada lá. E vim saber, através dele, que tinha passado em primeiro lugar no vestibular. E ele me disse: “E se eu lhe desse uma bolsa?” Porque os alemães lá catam não é gênios, é possibilidade de trabalhadores. Lá, é um negócio humilde da desgrama, com todo esse dinheiro que eles gastam. Eu disse: “É claro que eu fico”. Ele aí disse: “Vou lhe dar 20 cruzeiros”. Então, a pensão era 15, o restaurante universitário era nada e eu vivia de 5 cruzeiros. O regulamento universitário dizia assim: dentro de dez anos você vai pagar o que comeu aqui. Quando eu vou ver, dez anos depois, eu aqui na miséria, não tinha dinheiro pra nada, no ostracismo, aí recebi uma conta e fiquei emocionado. Eu digo: “Nossa Senhora! É com isso que eu vou pagar aquela escola maravilhosa, aqueles professores encantadores, aquele negócio que salvou o meu lado de pessoa que quer aprender, que era um nordestino querendo compreender o Nordeste, depois da primeira compreensão proporcionada pelo Euclides da Cunha”? Eu ali disse: “Olha, não tenho dinheiro para pagar agora, mas vou pagar um pedaço agora e outro pedaço depois”. Num instante paguei, feliz da vida. E quero terminar de fazer umas coisas que ainda não consegui: os instrumentos experimentais, certas idéias, tomara que dê tempo, então fico trabalhando a vida toda, mas, se parar, eu quero ensinar, quero pagar ensinando. Por exemplo, se eu me oferecesse à governadora de lá pra ir mostrar aos meninos que aquilo é valoroso e que eles podiam desenvolver uma arte com aquilo – é claro que iam aparecer axés, contra-axés, mas iam aparecer também bons artistas. E artista do axé também não quer dizer mau artista sempre, mesmo porque é emprego. Eu respeito tudo, porque senão eu nem vivia nesse diabo desse governo. Então é isso, não tem retaliação, não tem revanche. Sabe o que é que tem? Eu estou feliz, ora meu Deus! Que diabo, eu estava com tanta raiva de tanta coisa, e agora parece que fui feliz a vida toda. Então está bom: eu sou feliz a vida toda! Olha aí: “O Pai da Invenção”. Vocês bem sabem o que isso significa na América (aponta matérias de jornais americanos que o exaltam). As “Mães da Invenção” é uma coisa inventada pelo Frank Zappa (Mothers of Invention era a orquestra de Zappa) e aqui o nego me bota o título de “Pai da Invenção”. O New York Times gasta páginas para meu show nos Estados Unidos e o diabo. Então, o que é que eu queria dizer com isso? Porque isso, por si só, não vale nada. Eu queria dizer que talvez eu fosse capaz de chegar ao Maranhão e chamar todos os grupos, a gente registrava tudo em filme e em gravação, e aí começava: vamos fazer grupos de estudo. Na Bahia tem um negócio chamado Projeto Axé, uma organização não-governamental que não tem nada a ver com axé, ao contrário, que me consultou esta semana para saber se era possível os meninos com que eles trabalham ter oportunidade de fazer um tipo de música outro, com liberdade. Não é ir logo pra cima do caminhão de trio elétrico. E eu que conheço na Bahia uma coisa chamada. Uma coisa de percussão que não tem nada a ver com aqueles grupos, uma coisa maravilhosa. Quer dizer, lidar com tudo o que é em princípio embrionário. A arte é sempre assim: o embrião da coisa artística está sempre no limbo, entre o ridículo e o brilhante. E eu só trabalho aí. Eu só trabalho correndo risco. Não é heroísmo nem nada. E esses meninos fazem isso: Issucatasson. Então eu falei com essas pessoas de lá do Projeto Axé que procurassem esse tipo de coisa. Vamos dizer que eu tivesse oportunidade de ensinar lá no Maranhão. Não preciso de muita coisa: preciso de um quarto para trabalhar, sossego, estar bem com Neusa, enfim, eu gostaria de ensinar. É isso.
Ricardo Kotscho - Saindo um pouco da música, você viaja muito por aí, conversa com muita gente, nunca vi o Brasil tão desanimado, sem esperança, um pessimismo como está hoje aí. Onde você vê esperança?
Tom Zé - Eu tenho esperança em certos artistas – ai, quais são?, meu Deus, aí eu vou esculhambar os outros –, nessas organizações não-governamentais, essas pessoas que carregam a humanidade no coração, que são a anistia em pessoa. Tem muita gente assim.
Sérgio de Souza - Tem toda a juventude, também.
Tom Zé - Sim. Sobre a juventude eu tenho um verso: “Vai, vai, Vai, vai, Vai, vai, Brasil, destrói a fé do jovem, filho teu. Pra depois poder chamar-lhe adulto. Faz-lhe este insulto, tem uma fase antes do cinismo que a gente pelo menos tem que crer. Antes de se vender, de se render, se corromper. A gente entra no crime ou entra em algum PT”. Tem a juventude, né, que é deturpada para poder virar adulto. O pai diz: “Você é moleque, está atrás aí de PT, não sei o que, de revista Caros Amigos, de Tom Zé, de idealistas aí, de sonhadores idiotas. Tom Zé já podia ter ficado rico há muito tempo”. Não fiquei rico porque não soube.
continua...

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