quinta-feira, 9 de outubro de 2008

continuação...


Quando eu parava no banco,
os seguranças começavam
a segurar o revólver,
que aquela Brasília
era quase um assalto


Flávio Tiné -
Por que você veio para São Paulo?

Tom Zé - Porque só aqui eu podia fazer carreira. Me disseram: “Não vá para São Paulo, que você tem asma e São Paulo é frio”. Quando cheguei aqui tava um calor, era 11 de agosto de 1965, um calor! Me levaram à praça Roosevelt, que não tinha nada, era só calçamento e saía aquele negócio assim que entortava a visão, sabe como é? Parecia o Nordeste a praça Roosevelt! E então nós ficamos ali esperando Augusto Boal, que vinha pra começar aquela coisa maravilhosa que foi dois meses e meio de treino para fazer Arena Canta Bahia, outro curso universitário que eu fiz! Cada montagem de peça de teatro – a minha foi uma com Augusto Boal e outra com o Rubens Corrêa – é um curso universitário de dois meses e meio! Mas tem uma coisa que eu queria dizer pra vocês sobre o meu começo e a minha dívida com a escola pública.

Regina Porto - Então diga!
Tom Zé - Foi assim: eu tinha dez anos, a Fonte da Nação é de onde vinha toda a água potável de Irará. A água que se tirava nas casas era cavar uma cisterna enorme, 60 metros, não era como aqui, que meia dúzia de palmos tira água. E era água salobra, que só servia pra banho e pra lavar prato, não servia pra cozinhar nem pra beber. Então, a água boa vinha da Fonte da Nação. Um dia, eu fui a essa Fonte da Nação e... minha filha! Que coisa inacreditável! Irará é um planalto, chama Terra que Primeiro Vê a Luz do Sol, é um nome indígena, significa planalto. Mas tem uma rampa que vai ali pelo beco do Antônio Alfaiate, vai pelo campo de futebol e desce pra Fonte da Nação. Quando você chega a certa altura, tem um plano de visão, amplo, como Cecil B. de Mille, aquelas coisas fantásticas. A da Fonte da Nação é assim: aqui tá um gradeado junto do morro com a água saindo, os aguadeiros todos tirando água, enchendo os barris, todo mundo cantando, falando, conversando; aqui, uma espécie de campo de futebol, um gramado imenso com as lavadeiras espalhando tecidos de todas as cores, chitões, coisas vermelhas, amarelas, brancas, tudo brilhando por causa do anil que se usava lá e por causa da possibilidade de ver claramente do sol nordestino, e tudo isso quase que me arrancou do chão! Quando eu estava assim quase pra arrancar do chão, eu ouvi o som... porque o filme tinha som, o Cecil B. de Mille tinha, como é que chama, track? Tinha banda sonora. O que era ali? Era “Meeeeeeu”... – aquela voz fanhosa, (canta) “A mulher do cego morreu” – terceiras vozes paralelas, aquelas senhoras velhas cantando agudíssimo. Aquele som subia de lá de baixo como se fosse uma caixa de eco, aquilo me pegou, me transtornou. Então eu gosto de dizer – aí sobre o meu começo – que fui depois pra uma universidade pós-modernista, estudei como se fosse um príncipe numa escola maravilhosa, professores estrangeiros, os melhores professores do mundo! E aquele reitor louco, chamado Edgard Santos, botava os melhores professores do mundo num país miserável. Quer dizer, meu estudo custou a fome e a morte de muita gente e é por isso que eu digo que devo! Eu devo e devo muito à escola pública.
Regina Porto - Aliás, você estudou com o Widmer, Koelreutter, com a nata da vanguarda...
Tom Zé - A nata da vanguarda européia de música estava lá me ensinando enquanto o Brasil morria de fome. Muito bem, começo – passei por tudo isso, mas gosto de dizer assim: o que é que eu componho? Toda vez que sento pra compor, eu quero fazer aquela música que ouvi lá na Fonte da Nação. Então eu tento fazer, erro. Graças a Deus que eu erro, porque aí vou tentar novamente. No dia em que acertar, eu paro. Você está entendendo? Eu quero fazer a música da Fonte da Nação, é só o que persigo. Eu construo instrumentos, desafino instrumentos pra tocar, faço concepções, invento... olha, o que invento, o que fico lá em casa inventando!
Ricardo Kotscho - E os vizinhos, o que eles falam?
Tom Zé - Não, ninguém ouve nada, é fechado.
Marina Amaral - E, nesse período de ostracismo de que você falou, você continuava compondo no mesmo ritmo ou a própria música chegou a te desgostar?
Tom Zé - Teve duas coisas. Primeiro, tem hora que Deus protege você. Dizem que, quando você tira a criança do colo da mãe, ela morre nem que você dê o melhor alimento do mundo. Então, me tiraram do colo da mãe, que era o público. Muito bem, eu podia morrer, mas aí achei uma mãe externa. Essa mulher que está aqui (Neusa) vivia comigo e concordou de eu vender uma casa para construir uns instrumentos experimentais com enceradeira, com não sei o quê... Os diretores de gravadoras choravam quando ouviam falar naquilo. Aquilo hoje me dá o que comer!
Regina Porto - Você vive disso?
Tom Zé - Vivo disso. Vivo de música e dessa música justamente. Neusa concordou em vender uma casa do tempo em que eu era, digamos assim, remediado. Porque rico eu não era. Tinha uma casa de caipira na praia que tinha um terreno lindo, eu dizia que estava vendendo a casa, mas o cara estava comprando um terreno para construir uma casa. Essa casa era em São Sebastião, um terreno que subia assim... uma coisa privilegiada! Eu comprei por 22 contos e vendi por 400 contos. Em menos de um ano, porque construíram a estrada depois que eu comprei a casa, quer dizer, roubei o pobre do homem que me vendeu.
Ricardo Kotscho - Que praia era?
Tom Zé - São Francisco, em São Sebastião. Então, eu construía os instrumentos, sonhava com aquilo, quer dizer, enquanto eu devia morrer, uma nova mãe me dava o alimento da esperança e é por isso que eu fiquei doente, com úlcera, fiquei com Escherichia coli, o médico disse que não tinha jeito... uma vez disse que eu tava pra morrer. Neusa, na última hora, falou assim: “Vamos na macrobiótica?” Falei: “Vamos, quem tá morto tanto faz como tanto fez...”. Eu disse isso a ela porque eu tinha medo de dizer a ela que eu ia morrer, né? Aí eu fui na macrobiótica e a macrobiótica me salvou a vida. Agora, cuidado com macrobiótica! A mulher de David Byrne, Bonnie, me disse assim: “Tom Zé, você faz macrobiótica quando está doente; se ficar bom, você pára a macrobiótica”. Eu sei que o doutor Schmidt e o pessoal da macrobiótica vão me execrar, mas essa é que eu penso que é a verdade. Você está são, vai fazer macrobiótica, fica doente. Então, quem está são não vá fazer macrobiótica e quem está doente vá. (risos) Engraçado, eu fico tão feliz quando vocês riem que perco – desculpe, não vou dizer a ninguém que não ria –, mas perco um pouco a linha. Então, Neusa era uma pessoa que entrava numa Brasília velha, puta Brasília velha! E eu tinha uma vergonha, porque sou pequeno-burguês, confesso. Tinha uma vergonha daquilo, chegava num hotel com aquele carro, achava que os caras iam me tratar mal, e começou a ter problema. Quando eu parava no banco, os seguranças começavam a segurar o revólver, que aquela Brasília era quase um assalto. (gargalhadas) E eu via os seguranças olhando pra mim, né? Um dia, fui no Banco Nacional, agência da Angélica, esquina com a praça Buenos Aires, e eu tinha botado os óculos aqui (aponta a cintura). Quando o segurança viu aquele negócio, pensou que era uma arma, eu falei: “Ai, meu Deus! Se eu for tirar agora, é um desastre!” (risos) E não sabia se tirava, aí eu falei pra ele: “É o óculos! Quer que eu tire o óculos?” (risos) Tudo por causa da minha Brasília velha. Neusa não ligava, ela entrava e dizia: “Olha que flor bonita, pena que você não pode ver porque você está guiando...”. Pra ela, tanto faz Mercedes-Benz, coitada, ela está aqui, fica com vergonha, mas é uma coisa bonita isso, né?, você ter esse tipo de mãe. Enfim, eu, em vez de morrer tive uma sobrevida. E a macrobiótica me salvou numa hora que estava muito difícil, porque apareceu a Escherichia coli e eu não digeria nada, comia um ovo e o ovo passava três dias no estômago sem descer, comecei a emagrecer. Um dia, fui fazer o programa de Lima Duarte, no teatro Célia Helena, e acabava às 2 horas da tarde o programa, quando eu pisei assim no sol, que o sol bateu em mim, parecia uma viagem intergaláctica, porque o sol, quando você tá fraco, uma gripe até, o sol lhe tira do lugar, quanto mais eu, que estava já quase sem energia nenhuma. Muito bem... deixa ver se eu tomo um caminho menos brincalhão. Ah, sim, outra coisa! Vocês estão todos aqui, carinhosos comigo, e eu quero pôr em dúvida uma coisa: eu sou uma pessoa direita? Eu não sei.
Regina Porto - Direita ou de direita?
Tom Zé - Não, direita. Eu sou uma pessoa correta? Não sei. Porque até agora, com o que eu ganhei, consegui comprar um apartamento que tem um quarto para a Neusa ser minha empresária, um outro quarto onde trabalho com música e um quarto onde a gente dorme. Isso é um luxo transcendental para o meu regime de vida! Agora, se eu, por acaso, ganhar mais, o que é que eu vou fazer? Eu tô muito interessado nisso quanto a mim! Porque, por exemplo, outro dia um menino escreveu na Folhateen o seguinte: “Vocês estão fazendo campanha aí contra o disco pirata. Pô, mas quem é que – o menino disse lá – vai no jornal fazer campanha contra disco pirata? São esses nababos compositores que têm casas com vinte cômodos, que não estão nem ligando pra botar um pouco de proteína para o povo em sua música, que estão só interessados em vender...”. O que é mais que ele dizia? Me ajuda a contar isso, Neusa.
Neusa - Que isso é meio contraditório, que quem fazia campanha contra disco pirata era só esse tipo de compositor que vende milhões de discos, os que teriam tudo a perder com a pirataria. Então, ele achava que era uma atitude hipócrita, o menino, e ele tem razão mesmo.
Sérgio de Souza - Você mexeu com política, Tom Zé?
Tom Zé - Eu nunca fui do Partido Comunista, apesar de ser sempre um simpatizante do partidão. Hoje tenho muitos amigos no outro partido – porque geralmente quem é do partidão briga com o outro partido, o PC do B, né? Em Irará, uma vez eu freqüentei o partido, mas era uma turma gozadíssima. No partido era eu, um moleque, né? Era o delegado da cidade, Raul Cruz, o xerife; era o dono do jogo do bicho, João Pechincha; outro era Aureliano Teixeira, um gozador terrível, fabricante de licor de jurubeba, e o empregado dele. E um dia o pessoal do partido disse assim: “Nós precisamos convidar novos amigos, novas pessoas – que diabo, só tem aqui nós cinco e tal”. Aí saímos com uma fúria de ter que chamar novas pessoas – e eu tenho horror a isso, tenho medo de abordar pessoas, de convencer pessoas na rua. Mas eu pensava ser minha obrigação. Aí vi um menino assim que menos tinha tendência, que menos tinha namorada, que andava ali sem ter o que fazer, Pedrinho, filho de seu Alcides. Falei: “Pedrinho, você não quer entrar no partido? É um negócio legal e tal”. E, pra surpresa minha, ele foi, e aí começou a ir a reuniões, e eu meio malandro, só de vez em quando ia lá. Quando estourou a revolução de 1964, Pedrinho continuou no partido e eu dizia: “Meu Deus, o mal que eu fiz a esse rapaz! (risadas) Estão matando todo mundo do partido, como é que eu boto essa pobre criatura?” E eu ficava tão preocupado, aí eu tava na minha pensão, de dona Iolanda e chega Pedrinho com uns folhetos: “Olha, nós vamos ter uma passeata”. E eu digo “Valha-me Deus, Nossa Senhora!” (risos) E doía meu coração. Quando é um dia me disseram assim: “Você soube do companheiro Pedrinho?” Eu digo: “Pronto, foi preso e se fodeu”. “Denunciou o partido, lenhou com todo mundo...” Então eu disse: “Graças a Deus!” (gargalhadas). “Graças a Deus, minha alma está salva dessa dor, dessa culpa!”
José Arbex Jr. - Mas ele denunciou você também?
Tom Zé - Quê? Eu não era nada! Os meninos do CPC (Centro Popular de Cultura), que eram da AP, a Ação Popular, católica de esquerda, eram da Polop, Política Operária, de esquerda, eram do próprio Partido Comunista, porque não tinha o PC do B ainda, nós todos nos congregávamos ali e tal. E os mais moleques brigavam com os meninos do IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrático), de direita, aquelas briguinhas bestas, e os caras do IBAD os denunciaram! Sofreram o diabo! Alguns não se recuperaram mais. Eu nunca briguei com eles. Quando o CPC estourou, ninguém sabia quem era eu. Quando fui preso aqui em São Paulo, em 1972, saí do programa de Hebe Camargo, entrei lá em casa, tinha duzentas metralhadoras, e eu falei: “Meu Deus, o que é isso?” Metralhadora pra tudo quanto é canto, aí, finalmente, o cara que estava comigo, um italiano – o marido da Luísa Maranhão, atriz baiana –, começou a tremer e toda hora virava pra trás e eu falava: “Rapaz, não vira pra trás, não, que esses caras atiram! Fica quieto!” Enfim, fui algemado pro DOPS, passei quatro dias lá e ficava imaginando, porque lá você tem que trabalhar a mente feito o diabo: “O que é que tá acontecendo?” Eu tinha muito medo por minhas irmãs, que eram muito jovens e estavam mesmo metidas bravamente na política.
continua...

Nenhum comentário: