quinta-feira, 9 de outubro de 2008

continuação...


Eu só chamo uma coisa de música
- só faço uma tentativa quando existe algo
que me comove o interesse.
Mas isso é uma coisa minha

José Arbex Jr. - Você fez uma série de referências estéticas aqui, o que demonstra que tem uma preocupação de elaboração estética que não é tão intuitiva assim, procura elaborar teoricamente a tua estética.
Tom Zé - Absolutamente...
José Arbex Jr. - E, do ponto de vista de uma teoria estética, você acha que a linguagem é mais erudita ou mais popular?
Regina Porto - Só um parêntesis aí, para completar a informação: teu último disco tem um pouco esse manifesto da estética nova de que você fala. A estética do plágio.
Tom Zé - Não é da estética nova propriamente. É da estética do plágio, que os tropicalistas quiseram dizer que nisso eu estava só botando um nome novo na Antropofagia. Gil, um dia, me perguntou isso num programa da TV da Abril, eu falei assim: “Não, Gil, é muito diferente, eu nem me importo com o que vocês pensam, eu dou a resposta outro dia, que agora já está no fim do programa”. “Acho que nem vale discutir isso aqui, tenho certeza que é outra coisa. Mas só queria dar um exemplo musical, porque música é como futebol: é uma arte que todo mundo entende – quem disse que música é como futebol foi Décio Pignatari. Então é o seguinte: eu tenho uma música que é uma música que ninou a todos nós, que eu simplesmente queria tocar de novo, que é assim: “nã-naram-nã, nã, nã, nã, nã...” (cantarola trecho melódico de sua música). Tem que ser cantado para ter a experiência. Aí eu faço a pergunta: alguém se lembra? Ninguém se lembra, mas acontece que sei que na cabeça de todos vocês isso parece alguma coisa. No palco eu faço outra malandragem com isso. Agora, sabe o que é isso? Isso é: (cantarola nã, nã, nã, nã, naran-nã... nã-naran-nã - Hey Jude, dos Beatles). É invertido, inversão é uma técnica que se estuda na escola em música dodecafônica e serial. Você pega o tema, inverte pra lá, inverte pra cá, inverte pra lá. João Sebastião Bach, por exemplo. José Arbex Jr. - João Sebastião? (rindo) Tom Zé - O senhor Bach lá, por exemplo, pegou uma peça de Vivaldi em dó maior, passou pro cravo em mi bemol maior e assinou João Sebastião Bach. A palavra autoria não quer dizer autor, vem de autoridade, porque é assim: na Amsterdã e na Veneza do século 17 – que era o lugar rico do mundo naquele tempo, logo os músicos iam pra lá, os príncipes levavam os bons músicos, a música se desenvolvia lá –, o que se chamava de um bom moteto... mas moteto não é popular, uma música qualquer dessas danças populares da Europa.
Cláudio Júlio Tognolli - Giga.
Tom Zé - Giga, obrigado. Uma boa giga era a que mais se aproximasse de uma espécie de giga padrão. Hoje é diferente, quer dizer, menos no axé. (risos gerais) Mas a boa giga daquele tempo era como o axé de hoje. Sempre bem parecida, que não tivesse nada de novidade. Isso significava que essa autoridade da giga padrão se deixava emanar para a giga feita pelo compositor. Então, autoria vem disso, de autoridade. A palavra depois virou autor e hoje significa, cada vez mais, o compositor que faz uma peça que não fuja ou à armação estética ou à melodia, é uma coisa inesperada pra nos distrair. E é nisso que eu trabalho, só trabalho da novidade. Eu só chamo uma coisa de música – só faço uma tentativa quando existe algo que me comove o interesse. Mas isso é uma coisa minha. Não quer dizer que todo compositor seja obrigado a isso. Os caras da caipira são craques de fazer caipira: aquele problema de amor, aquela coisa que vai... Tenho a impressão de que, se eu pudesse formar uma escola com compositores mais ou menos populares, mas que quisessem trabalhar com alguma coisa que a pessoa... Desculpe, eu quero falar de uma coisa importante. Vamos ver se sou capaz. A empregada lá de casa, Agostinha; os empregados da farmácia; os amigos do ponto de táxi, converso com essas pessoas, essas pessoas todas são meu público-alvo. Porque o tipo de inteligência a que eu me refiro e que procuro na minha música não é uma inteligência cartesiana, que a universidade ensina. As pessoas do povo têm uma inteligência que a gente ignora, uma inteligência não-cartesiana, não-aristotélica. Eu trabalho pra elas. Não trabalho pra um fracasso. Não trabalho para a USP. Não trabalho com pessimismo. Eu trabalho com otimismo. Tanto que fui cantar no festival Abril Pró Rock onde só tinha moleque de dezoito anos, semi-analfabeto, meninos empregados de sorveteria, mocinhas que trabalham em casa de família e todo mundo se lavou de rir. Por quê? Minha música não mudou, eu não fiz nenhuma concessão: cantei Nave Maria, cantei O Dólar Moeda Falsa.
José Arbex Jr. - Você faz música popular então?
Tom Zé - Eu faço música po-pu-lar! (escandindo as sílabas) Agora, eu não consegui ainda muito bem, como diz Lao Tsé, aplainar certas angulosidades, arredondar certas circunferências malfeitas. Não consegui ainda ter um produtor bom, mas agora vou trabalhar com Heraldo do Monte, José Miguel Wisnick e com Alê Siqueira, gênios dentro de uma certa música que é contra a música que a gente combate.
Ricardo Kotscho - Esta semana você fez um show com o grupo Stomp, que seria quase um balé de percussão, tem performance, aí eu pergunto: é um caminho novo que você está procurando?
Tom Zé - Não. O Stomp, eu fui lá por causa de Marilda Vieira, uma pessoa que trata com imprensa e é uma pessoa carinhosíssima, delicada e me fez muitos carinhos, não é desse mundo da selvageria de que tudo é com dinheiro. Ela é quem estava organizando e eu fui nisso para prestigiá-la. O Stomp é um bom grupo. Agora, eu não quero saber de nada disso. Outra coisa importante: você, que está lendo esta reportagem (dirigindo-se ao gravador), saiba que, quando falo que estou interessado em criação, não estou interessado em todos esses aparelhos que tocam disco ao contrário, todos esses computadores que torcem e retorcem e fazem aquelas coisas que dizem geniais. Aquilo é uma merda. (gargalhadas) O que acontece é o seguinte: tanto com aquilo, quanto com um violão, uma viola velha se pode fazer música ruim ou música boa. Aquilo não é o cão, mas todos os artistas executivos – os poetas executivos de plantão – estão usando aquilo para pensar que fazem música, é mentira. Eles não estão fazendo nada, aquilo não é música. O que eu faço não é aquilo. Os instrumentos que tento fazer, que invento, nada têm a ver com aquilo. E aí eu queria dizer o seguinte: você está em sua casa, em sua solidão, no seu quarto sozinho, com uma pequena idéia que parece não valer nada, que é apenas uma quase primeiridade peirciana na sua cabeça, e você não acredita naquilo, você abre o jornal e vê: “Tom Zé estourou não sei o que nos Estados Unidos”. Esqueça Tom Zé. Aí, no outro dia, você abre: “O rock não sei de que do Hip Hop fez uma maravilha”. Esqueça isso. O que deu certo no meu trabalho foi uma ideiazinha boba. Se eu contar aqui, você diz: puta que pariu, é com isso que esse veado faz sucesso nos Estados Unidos? Isso é um moleque! Isso não é nada! O que é que eu fiz? Eu peguei uma bateria batendo lá em casa, gravada por um amigo. Uma bateria mais longa, uma bateria mais rápida, mais lenta. Aí eu pego um violão e faço como se fosse um contrabaixo – é um ostinato: ostinato é uma frase longa ou curta no baixo e contamina o ritmo da bateria. Como se o contrabaixo, que vai tocar depois no lugar do meu violão, regredisse na sua história e virasse instrumento de percussão – ainda incapaz de fazer harmonia e canto. A mesma coisa vai ser tocada, na oitava, pela guitarra – aí é um problema de instrumentação, porque o baixo sozinho não se escuta; e a guitarra dobrando o baixo, uma oitava acima, se escuta. Quando isso contamina a bateria e parece que o samba está meio degenerado, aí eu e Neusa dizemos: que beleza, tá bonito. Aí eu pego dois cavaquinhos e vou lá pra cima – pro agudo – fazer um contraponto entre isso que já está embaixo, que eu já gosto, e um cavaquinho. O contraponto tem que ser, ritmicamente, muito exigente. Tem que ser ajustado como um parafuso de um carro de fórmula 1. Tem um elemento tem de responder a outro, e lá em cima pode haver quase fugir da tonalidade – porque a dissonância é bonita –, mas ainda deve manter uma tonalidade. Ora, não se pode chamar isso de tonalidade: você sabe que tonalidade é a relatividade da tensão e do repouso. Como há um acorde: tensão e repouso, então, eu vou criar de outra maneira; tonalidade aí é outra coisa, que tem relatividade de outra maneira, mas muito bem, eu faço esse contraponto exigente. Aí faço o quê? O cavaquinho também não canta, o cavaquinho vira um instrumento de percussão. E tudo isso pode se chamar cozinha. Todo mundo aqui sabe o que é cozinha, né? É o talaco-taco, taco-taco. Então, o contrabaixo, a guitarra, o cavaquinho, tudo é a cozinha de minha música, com a bateria e a percussão. Daí eu digo assim: o que é que eu posso cantar? Tenho que arranjar uma coisa que a pessoa possa se engraçar. Por exemplo: tem o negócio de xingar. O sujeito diz: filho da puta. E se eu disser “meta sua grandeza!” Enquanto eu digo “meta sua grandeza”, o sujeito diz: onde é que vai meter? Mas, se eu contrariar a expectativa e disser “meta sua grandeza no banco da esquina”, o banco da esquina é também uma espécie de cloaca, mas não é aquela que se está esperando. Meta sua grandeza no cu, é isso que se está esperando. E se eu fizer uma brincadeira dessa vai ficar interessante porque: “Meta sua grandeza no banco da esquina! Vai tomar no verbo, seu filho da letra! Meta sua usura na multinacional! Vai tomar na Virgem, seu filho da Cruz!” O resultado é um certo humor, a pessoa se surpreende. Então eu acho que isso pode ser interessante. Vou tentar cantar isso, não como um cantor. Tentar cantar de um jeito que a pessoa ouça isso, que o mais importante seja ela ouvir. E aí eu vou tentar botar mais uma bobagem e aí, depois, David Byrne me ajuda lá, me dá mais um conselho – porque ele me dá conselhos ótimos. E então eu estou fazendo um samba, que tem uma bateria que contamine o ritmo de samba, que degenera, que fica um samba meio estranho, mas é um sam-ba. Não é uma balada de Elvis Presley, nem de Paul Anka, nem de ninguém. É um samba, é brasileiro, é meu povo, é meu sangue, é minha terra. Não é por nada, não é que isso seja melhor do que os outros. É porque o mundo só pode viver bem se tiver o Brasil de um lado, os Estados Unidos do outro; a música brasileira de um lado, a música americana do outro; a música javanesa do outro, a música cubana do outro. Isso precisa, para poder o mundo se organizar com diferenças. A importância disso não é patriotismo, é diferença.
continua...

Nenhum comentário: