quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Quinta da entrevista: Samantha Power


Em 2005, a jornalista e professora de política inter-nacional da John F. Kennedy School of Government em Harvard, Samantha Power, recebeu um tele-fonema do senador Barack Obama. Ele havia lido seu livro Genocídio: a retórica americana em questão, vencedor em 2003 do prêmio Pulitzer, o mais importante do jornalismo político americano sobre os erros dos Estados Unidos diante de morticínios cometidos ao redor do globo. Atendendo a um convite de Obama, preocupado em manter ao seu redor cérebros alinhados com suas próprias idéias, Samantha deixou Harvard, mudou-se de Boston para Washington, onde trabalhou como sua assessora de política internacional por três anos. Inteligente, humana e eficiente como as idéias que expressa e as soluções que aponta para a política internacional em sua obra, Samantha pecou um pouco pelo excesso de franqueza. Na disputa pela indicação democrata, declarou que a adversária do senador, Hillary Clinton, era um “monstro” – expressão que caiu no ouvido da imprensa e pegou mal junto à opinião pública ao ser estampada nos jornais, já que o candidato saiu vencedor da disputa interna do partido, mas ainda precisa do apoio da ex-primeira dama para enfrentar o republicano John McCain. A ex-assessora foi convenientemente afastada da campanha, mas ainda é cotada como uma eventual secretária de Estado, caso ele seja eleito, e segue trabalhando. Acaba de lançar outro livro capaz de mostrar as mazelas da política externa americana: O homem que queria salvar o mundo. Nele, a jornalista faz uma biografia do brasileiro Sérgio Vieira de Mello, morto há cinco anos em Bagdá, entre outras vítimas do homem-bomba que explodiu o edifício sede da ONU na capital iraquiana. Com a história de um homem que perdeu a vida lutando pela paz e que defendia o entendimento no lugar das armas, mesmo contra os piores terroristas, ela faz um contraponto dramático à força bruta americana no Iraque. Rápida nas respostas, com os olhos claros reveladores de um certo idealismo sob a capa do pragmatismo americano, a autora deu uma entrevista à Revista da Cultura durante sua passagem para o lançamento do livro no Brasil. Usava calças de boca larga e blusa de mangas caídas numa versão pós-moderna dos hippies e tomava Coca-Cola Light.
Até dois anos atrás, havia ainda muito medo do terrorismo e um grande apoio à política linha-dura do presidente George Bush. Hoje, Barack Obama está à frente nas pesquisas eleitorais com um discurso de mudança na mentalidade do governo na política internacional. Essa é uma mudança sem volta?
SP - O país ainda está dividido, meio a meio, mas os eleitores americanos têm prestado cuidadosa atenção aos eventos ao redor do mundo e viram como foi improdutiva a abordagem do presidente George Bush até aqui. Já passou certo tempo desde os ataques de 11 de setembro, sem o calor do momento, as pessoas se tornam mais sensatas, avaliam melhor as coisas e olham para seus interesses de longo prazo. O desastre do Iraque, a tragédia do Afeganistão, a tortura (em Guantánamo) e o fato de que ela cria mais terrorismo também são fatos que estão mudando a opinião pública.
A idéia de que é preciso ser mais inteligente na política externa pode ser mais forte que a reação instintiva de proteção por meio da força?
SP - Ainda temos o instinto de nos proteger, bastante real, mas hoje há um questionamento a respeito de qual é a melhor forma de nos proteger, a mais efetiva. Muito do apoio democrata vem daí. Ainda nos sentimos atingidos pelos ataques terroristas, mas também sabemos que 4 mil americanos já morreram no Iraque sem nenhum avanço substancial (no combate à violência).
Obama tem condições de enfrentar a extrema direita nos Estados Unidos?
SP - Há muitos conservadores e um surpreendente número de pessoas que apóiam coisas como a tortura. Isso não muda do dia para a noite, é um processo longo. Mas o fato de ser um dos candidatos à presidência dos Estados Unidos já é um sinal de que o outro lado está mais forte. Sua escolha teve um efeito incrível sobre a maneira como as pessoas “diferentes”, as minorias do ponto de vista de raça ou nacionalidade, vêem suas possibilidades nos Estados Unidos. E mudou também a maneira como os outros países estão nos vendo. Vieira de Mello procurava substituir a mentalidade do uso da força pela do entendimento, muito embora no Iraque tenha sofrido com a indiferença do governo americano em relação à ONU e talvez tenha chegado tarde demais. Sua biografia aponta um caminho para uma política mais equilibrada diante de conflitos que interessam ao mundo inteiro.
A senhora acredita que Obama tem algo em comum com esse perfil?
SP - Sim, acho que ele e Sérgio têm muito em comum, em termos do desejo de negociar, inclusive com foras-da-lei, os sujeitos maus, sem problemas de estar na sala com eles. O fato de alguém ser um assassino não significa que você não possa aprender ou obter algo negociando com ele, sobretudo quando isso pode aumentar sua habilidade real de proteger as pessoas. Como o diplomata brasileiro, o candidato americano aceita aquilo que é “diferente”, no sentido de não ter preconceitos, entender o outro e admitir um tratamento igual para todos, seja por raça, religião ou nacionalidade.
Ambos aceitariam a idéia de que o mais importante é promover o desenvolvimento em escala global para diminuir a pressão social e sanar a violência a longo prazo?
SP - Estou certa de que Sérgio concordaria com isso, mas o desenvolvimento e a erradicação da pobreza não eram seu trabalho central. Ele estava concentrado em obter recursos de emergência para pessoas que viviam em lugares conflagrados. Além disso, tinha uma relação ambivalente com a força militar. Ele mudou; viu que às vezes o gestor da crise tinha de usar a força, ser agressivo, do contrário não conseguiria proteger a si mesmo ou aos civis. Viu que não adiantava dizer “Ei, somos pacifistas!” diante de processos de genocídio, como em Ruanda, onde estavam morrendo 800 mil pessoas. Percebeu que, quando os funcionários da ONU entravam em lugares violentos, o que os civis mais queriam era proteção. Claro, eles não queriam ser pobres, mas antes de tudo desejavam escapar dos tiros. Esse era o tipo de lugar por onde ele andava.
Escrever sobre uma história dramática como a de Vieira de Mello pode ter um papel didático?
SP - Completamente. Ensinar para mim é tudo. Precisamos de um compromisso maior, mais duro, de toda a sociedade. Como professora e também escritora, assumi há muito tempo um compromisso de encontrar o caminho mais acessível para fazer avançarem as soluções para os problemas sociais e de justiça. Para isso, ajuda contar uma história mais humana, com um pouco de suspense, que tornam a leitura compulsiva.
A senhora acredita na capacidade dos EUA de liderar uma solução global para a diminuição da pobreza?
SP - As pessoas falam muito em questões globais, em transnacionalização, mas mesmo gente de projeção internacional, como Nelson Mandela, teve uma atuação local, que depois se tornou importante para o mundo inteiro. Pelo que me ocorre, Sérgio é o único sujeito que realmente cruza fronteiras: ele é global. Para ensinar aos jovens sobre como o século 21 será e como lidaremos com seus problemas, acredito que hoje é muito mais importante mostrar quem foi este brasileiro do que o general MacArthur (herói na-cional americano, que rendeu o Japão na Segunda Guerra e ficou conhecido por seu plano para reerguer o país). É preciso encontrar modelos de liderança relevantes para os desafios com que temos de lidar hoje, seja em nossas próprias vidas ou em nosso momento histórico. Esse é o meu objetivo, não sei se um tanto bobo ou ingênuo, mas ambicioso.
Os brasileiros conhecem pouco Sérgio Vieira de Mello. Isso a entristece?
SP - O Brasil é especialmente importante para mim. Estar aqui não é como ir à Inglaterra, Holanda ou Irlanda, onde já fui lançar o livro. É um lugar importante, porque ele tinha orgulho de ser brasileiro. Falava sobre o país o tempo todo. E precisa ser mais conhecido aqui. Se os brasileiros tiverem uma noção melhor de quem ele era, acho que poderia ser um modelo aqui também. Quem nasceu na década de 1970 no Brasil talvez tenha sonhado na sua juventude em ser como o Pelé. Num mundo ideal, se eu fosse um jovem brasileiro hoje, gostaria de ser um pacificador quando crescer, alguém como ele. E você pode fazer o mesmo bem aqui, não precisa ir para o Iraque ou a Bósnia. Não temos muitos modelos capazes de inspirar as pessoas, gente que nos faz acreditar que podemos fazer o bem e cujos princípios adotamos em nossas próprias vidas.
Você vê algum tipo de influência cultural brasileira em Vieira de Mello?
SP - Claro. Não sei muito sobre a cultura brasileira, mas os brasileiros dizem, ao ler o livro, que a habilidade de viver em estado de sítio em Sarajevo ou ir a um coquetel em Paris, conversar com um chefe tribal no Congo ou a rainha da Inglaterra eram algo bem brasileiro. Sua habilidade de transitar de um mundo para outro, como um camaleão, parece ser bem típica deste país. Sérgio tinha também uma certa dignidade. Soa como um clichê, mas ninguém fala sobre algo tão importante como a dignidade.

O fato de ser a biografia de um homem digno foi o que mais a motivou a escrever o livro?
SP - Foi principalmente a maneira como ele morreu. Ficou enterrado sob os escombros do prédio da ONU em Bagdá por três horas e meia, esperando ser resgatado pelas forças americanas, mas ninguém conseguiu salvá-lo. Vieram com uma bolsa de mulher e uma corda de cortina, era tudo o que tinham para tentar ajudá-lo. Meu coração ficou partido e me preocupei com o futuro porque, no sistema internacional, quando pensamos sobre crises e conflitos, não vemos mais ninguém com a capacidade dele para resolver situações complicadas. Eu queria salvar ao menos as lições que ele nos deixou, como um manual a ser usado no presente. Sentia que estas lições, aprendidas nos lugares violentos onde trabalhou, não deviam morrer com ele. Porém, somente quando comecei a escrever o livro, que levou quatro anos, com 800 entrevistas, compreendi de uma forma mais completa a incrível história e o alcance que ela podia ter. Ele não apenas tem essa importância histórica como também foi uma figura carismática, uma mistura de James Bond e Bobby Kennedy, que pode interessar ao público em geral, razão pela qual já há estúdios interessados em fazer filmes a seu respeito. A HBO está preparando um grande documentário que será lançado no Sundance Festival em janeiro próximo. E Terry George, o diretor de Hotel Ruanda, está fazendo um filme para Hollywood, a ser lançado no ano que vem ou em 2010.
Como o livro foi recebido nos EUA?
SP - Está na lista dos mais vendidos do New York Times, do L.A. Times, do Boston Globe. Já a crítica não foi tão boa quanto a de meu último livro. Acho que todos adoram a história e o trabalho que foi feito, porém os americanos são muito impacientes com os tons de cinza, eles gostam mais de preto e branco. E Sérgio ocupava as áreas cinzentas. Alguns dos críticos ficaram frustrados, porque não há no livro respostas seguras sobre como lidar com os problemas internacionais. Nos Estados Unidos, todo mundo quer um programa de cinco pontos sobre como solucionar os problemas do mundo. Ele não operava com planos de cinco pontos, mas com intuição, reações rápidas em crises, adaptação. Vivia com as complicações da realidade e a necessidade de barganhar. Os americanos ainda têm que entender que a vida inclui a necessidade de barganhar.
Obama pode distinguir as áreas cinzentas, mas isso o ajudará na eleição?
SP - Por enquanto, está funcionando. Será uma eleição muito apertada, mas há um fator bastante claro a seu favor. No princípio, as pessoas do mundo inteiro achavam que os Estados Unidos tinham um problema chamado Bush. Quando foi reeleito, todos chegaram à conclusão de que os Estados Unidos é que eram um problema. E não é bem assim. Muitos eleitores agora estão diferentes. Olham para o mundo, não querem ser odiados, nem invadir outros países sem razão. Rejeitam isso.
Quais são seus livros favoritos ou que a inspiraram?
SP - Há alguns livros importantes para mim. Um que realmente me inspirou foi o de Neal Sheehan, A bright shining lie, um título maravilhoso (“Uma mentira reluzente”, um trocadilho em inglês com “bright shining light”). É sobre um americano que vai ao Vietnã com o objetivo de mudar o mundo, de maneira muito idealista, mas é corrompido pela guerra e acaba sendo morto. Meu livro sobre Sérgio é modelado nessa obra, um grande sucesso editorial nos Estados Unidos. A guerra do Vietnã é um tema que me interessa muito, de modo que outro de meus livros preferidos é The best and the brightest, de David Halberstam, sobre como pessoas humanas e inteligentes podem causar enorme destruição no mundo. Gosto também muito de George Orwell e Albert Camus. Volto a eles todo o tempo. Hannah Arendt também me influenciou muito no sentido de compreender a necessidade de enfrentar as bestas e os agentes maléficos dentro de sua própria barriga.
Existe alguma possibilidade de voltar a trabalhar com Barack Obama?
SP - Não tenho a menor idéia. Quero que ele ganhe a eleição, é o que importa.

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