quarta-feira, 10 de setembro de 2008

QUINTA DA ENTREVISTA: Luc Ferry

Viver no século 21, segundo Luc Ferry
Fernando Eichenberg


Pouco tempo antes de o filósofo francês Luc Ferry decolar para o Brasil este mês para inaugurar o ciclo de palestras Fronteiras do Pensamento, do Projeto Copesul Cultural, em Porto Alegre, entrevistei-o aqui em Paris para a revista Bons Fluidos. Numa conversa de uma hora no seu gabinete no Conselho de Análise de Sociedade, do qual é presidente, abordamos temas de seus livros "O Que É uma Vida Bem-sucedida" (ed. Difel), "Aprender a Viver" (ed. Objetiva) e do recentemente lançado em francês "Familles Je Vous Aime - politique et vie privée à l'âge de la mondialisation" (XO Éditions).
Para Luc Ferry, a grande questão filósofica e política de nosso tempo é saber como e com que valores retomar as rédeas de um mundo que escapou totalmente do controle do homem. A política cedeu lugar aos ditames da economia e a democracia perdeu importância diante dos imperativos do progresso da globalização, acusa. Ferry defende a superação de medos, principalmente do medo da morte, como um do grandes desafios do homem do século 21, e acredita numa nova sabedoria do amor como um dos elementos fundadores de um novo humanismo.
A maior parte de nossa discussão permaneceu inédita e segue abaixo a reprodução na íntegra do resultado de nosso encontro
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Você diz que uma vida bem-sucedida, hoje, está relacionada ao sucesso social, ao culto da performance, à preocupação narcísea e ilimitada de poder, seja nos domínios do esporte, da arte, das ciências, da política ou do amor. Perdeu-se o sentido transcendente dos Antigos de "vida boa"?
Luc Ferry: A "vida boa" no sentido grego não desapareceu. É sobretudo a sabedoria grega que não é mais a sabedoria moderna. A sabedoria grega não pode ser a dos modernos, porque nossa visão do mundo hoje, nem que seja apenas por razões científicas, não é mais a dos gregos. Quando se fala hoje de vida bem-sucedida, se pensa imediatamente no sucesso social, no dinheiro, no sucesso no sentido mais corrente do termo, o que Freud chama de "sonho acordado". Ele explica que temos todos pequenos sonhos, principalmente quando se é adolescente, mas é algo que freqüentemente continua depois, e as pessoas se imaginam como milionário, campeão de tênis, mulher fatal, jogador de futebol, e num piscar de olhos se tem todas as mulheres ou todos os homens a seus pés.
Há os "sonhos de reparação", uma frustração no dia porque se teve um acidente de carro com alguém que é mais forte, ou porque se leva uma bronca do chefe. No sonho acordado corrigimos a realidade, damos dois tapas no caminhoneiro e acertamos as contas com o chefete que nos incomodou durante o dia. Tudo isso é bem analisado por Freud e representa um pouco a imagem que temos hoje da vida bem-sucedida. Pensamos com frequëncia no sucesso na forma do sonho acordado, como os jovens que têm vontade de ser como Zidane ou Pelé. O que parece interessante nos gregos, mesmo se a filosofia grega não pode ser mais a nossa, é a idéia que creio bastante profunda para definir o que é uma "vida boa" em oposição ao sucesso social: o objetivo da filosofia é o de ajudar os humanos a superar os medos que nos impedem de viver.
"Filo", "sofia", amor da sabedoria, quer dizer na verdade procura da serenidade no sentido de se conseguir, ao mesmo tempo, ser livre na sua mente e também aberto aos outros, na generosidade, ser capaz de amar os outros, quando se supera os medos que nos impedem de viver. Em resumo, há três tipos de medo. O medo social, a timidez, quando temos de falar em público, fazer uma apresentação num jantar, quando se encontra socialmente pessoas que são mais importantes que você, e se empalidece, as mãos tremem, a boca fica seca, enfim, a pressão social se encarna no corpo. Há os medos que os psicanalistas chamam de fobias, que são mais profundos. Pode ser simplesmente o medo de estar fechado num elevador, pegar o avião, ou o medo de rato, de serpente, de ter câncer, do escuro. Temos todos pequenas fobias. E há uma terceira categoria de medo, que são os medos metafísicos, particularmente o medo da morte. E há o medo da morte dos outros, de seus filhos, de pessoas que amamos, e isso toca na questão metafísica da finitude humana. O que caracteriza esses medos é que eles nos encurralam, somos como um esquimó no seu iglu, nos encolhemos, nos encerramos em nós mesmos.

Nesse sentido, a filosofia grega ainda mantém sua influência?
Luc Ferry: O objetivo da filosofia grega, nos estóicos como nos epicuristas, é o de dizer aos humanos que graças à filosofia eles podem superar esses medos, aceder à serenidade, ser mais livre na sua mente e mais aberto aos outros. Essa idéia da filosofia como busca da serenidade permanece válida hoje. E aqui que percebemos a verdadeira diferença entre religião e filosofia. As grandes religiões como as grandes filosofias são doutrinas da salvação, que no sentido etimológico quer dizer "se salvar de medos", se salvar do que nos encurrala. A única verdadeira diferença, na minha opinião - e aqui creio que se trata algo extremamente profundo, e tem a ver tanto com Platão, Spinoza, Kant ou Nietzsche -, é que, em resumo, as grandes religiões são doutrinas de salvação por um outro e pela fé, ou seja, por Deus e pela crença em Deus, enquanto as grandes filosofias são doutrinas de salvação por si mesmas e pela razão. Essa é a única diferença entre filosofia e religião. Os grandes sistemas filósoficos são grandes doutrinas de salvação. Quando Spinoza nos fala da beatitude e nos convida a superar as paixões tristes, quando Nietzsche fala da inocência e do amor facti, o amor tal como é, e quando diz que o sábio é aquele que consegue se arrepender menos, esperar menos e amar mais, eles estão na ótica de uma doutrina da salvação. A filosofia, contrariamente ao que se diz, não é a reflexão do espírito crítico, isso é piada, todo mundo reflete, todo mundo tem espírito crítico. As grandes filosofias são grandes doutrinas da salvação, sem Deus.
O mundo contemporâneo estimula o "sonho acordado" de Freud?
Luc Ferry: É preciso distinguir bem entre um grande projeto, pessoal, político ou outro, do que os psicanalistas chamam de fantasia. A fantasia é algo da ordem do imaginário, que compensa as frustrações da realidade. Muitas vezes, a concretização de fantasias é um desastre. Não há nada pior do que concretizar uma fantasia. Na vida privada, amorosa, pode-se ter todo tipo de fantasia, com todo o direito, mas muitas vezes concretizá-las leva ao horror. Pode-se ter na vida amorosa componentes perversos ou sádicos, o ato de amor inclui mil coisas que não são bem claras, mas concretizar fantasias pode ser uma decepção. É como os velhos que sempre sonharam em fazer uma grande viagem, uma volta ao mundo, e quando o fazem ficam decepcionados, pois era uma fantasia, não um verdadeiro projeto. É preciso distinguir os dois. A fantasia ou o sonho acordado nascem de frustrações.
Você diz que devemos aprender a viver e a amar pensando, a cada dia, na morte. Vencer o medo da morte é fundamental para o ser humano. Há essa idéia de que a morte não é simplesmente o fim da vida. Por quê?
Luc Ferry: Epiteto, por exemplo, diz que todos os pensamentos se concentram na questão da morte, porque enquanto não se suprimir o medo da morte não se alcançará a "vida boa". Lucrécio, de outra tradição grega, diz que antes de tudo é preciso vencer o medo do Aqueronte, o rio dos Infernos, que se deve atravessar quando se morre e se vai para os subterrâneos. É preciso vencer esse medo porque senão não se pode viver bem. Montaigne, vinte séculos depois, diz que filosofar é aprender a morrer. Há essa idéia de que a morte não é apenas o fim da vida, mas que é no interior da vida, a mais alegre - e não é depressivo, pessimista nem melancólico o que estou dizendo -, que fazemos a experiência do tempo que passa, não no sentido dos minutos que passam, mas a experiência de momentos da vida que não voltarão nunca mais. Um divórcio, uma separação. Você passou dez anos na França, um dia talvez vá retornar ao Brasil, e pensará no seu período francês como um período que ficou definitivamente para trás. Há coisas que morrem na vida. A morte é também o irreversível das épocas de nossa vida no interior da vida. Nós temos uma experiência da morte.
Uma experiência que remete às dimensões do passado e do futuro, que são, como você assinala, causa de males.
Luc Ferry: Como dizem os estóicos, há duas grandes infelicidades que pesam nas nossas vidas, o passado e o futuro e a relação com a questão da morte. Quando o passado foi feliz, é a nostalgia. Quando foi triste, é a culpabilidade, o remorso e o arrependimento, o que Spinoza chama de paixões tristes. Então, deixa-se o passado para se precipitar no futuro e nos imaginamos que trocando de carro, barco, casa, profissão, marido, mulher etc, tudo vai ficar melhor. É o que diz Sêneca como sendo a ilusão por excelência do futuro. A verdade é que transportamos nossas preocupações e infelicidades conosco, e as coisas não se tornam melhores porque se trocou um Peugeot por um Mercedes. Não muda nada no fundo da existência humana. O grande tema é que à força de viver no passado ou no futuro, perde-se de viver a única realidade que seja real, ou seja, o presente. Que relação isso com a morte? Por que, para os estóicos, pensar na morte não é mórbido? Epiteto diz a seu discípulo: quando você abraçar seu filho ou sua filha, diga a si mesmo que ele é como o copo ou a xícara de café que você quebrou ontem e que ele pode morrer no momento exato em que estiver nos seus braços. Os budistas dizem isso também. Por quê? Quando refletimos, vemos que todos os medos, inclusive o medo da morte, se enraízam, sem exceção, nessas duas dimensões do tempo que são o passado e o futuro. O sábio é aquele que consegue, num mesmo movimento, viver no presente e viver na serenidade. Porque ele vive no presente, ele se desvencilha dos medos que habitam essas duas dimensões irreais do tempo que são o passado e o futuro, porque o passado não existe mais e o futuro ainda não existe.
Há uma relação entre a capacidade de se reconciliar com o presente e a vitória sobre os medos, principalmente o medo da morte, que nos impede de viver. Pensar na morte não é algo mórbido. Para bem viver é preciso ser capaz de bem morrer. Quando Montaigne diz que filosofar é aprender a morrer é nesse sentido. Para bem viver é preciso superar os medos, e isso chamamos de sabedoria. E o amor da sabedoria no permite superar os medos que nos impedem de viver. Meu amigo André Comte-Sponville, que está nessa tradição estóica, epicurista, de sabedoria grega e budista, me dizia um dia: "Minha filosofia se escreve no futuro anterior", como a dos budistas. Quer dizer o quê? Que quando a catástrofe ocorrer eu estarei preparado. É o conceito estóico e budista: é preciso pensar na morte, se preparar, o medo é aprisionado. É uma estratégia, embora não seja a minha. Mas a idéia a de que pensar na morte não é algo negativo, mórbido ou pessimista.
Você insiste no presente, no carpe diem. O futuro anterior não seria uma escapatória do presente?
Luc Ferry: Para os budistas e os estóicos, o futuro anterior é uma maneira progressiva de se preparar a viver no presente. À força de se preparar para a catástrofe, de se saber como se vai reagir, acabamos por ser capazes de viver o presente, mesmo quando ele é doloroso. Isso é que Nietzsche chama de amor fati, tudo o que é capaz de estar no ideal e não no real. Por isso que para Nietzsche todo idealismo, toda doutrina que se baseia na idéia de que devemos ter ideais transcendentes é um niilismo, pois ter valores superiores é sempre se refugiar num mundo que só serve para negar a realidade e se poupar da pena de se reconciliar com o presente no modelo do sábio grego. Nietzsche e Spinoza se reencontram com a sabedoria grega.
Como você aborda essa questão da sabedoria de valores transcendentes?
Luc Ferry: Na minha opinião, há três maneiras na história da filosofia de abordar os valores transcendentes. Há a estratégia de Nietzsche, que, em resumo, consiste em dizer que os humanos inventaram grandes ideais, religiosos, políticos, para sempre reconduzir a estrutura da religião, que é a de oposição entre o céu e a terra, o ideal e o real. E, a cada vez, se inventa o ideal para negar a realidade. Quebrar o ideal - e por isso o subtítulo de seu livro "O Crepúsculo dos Ídolos" é "como filosofar com um martelo" - é o preâmbulo da sabedoria entendida como reconciliação com a realidade. É preciso fugir dos ídolos e dos ideais, porque é o que nos distancia da reconcilição com o amor fati, da verdadeira sabedoria. Quebrar os ídolos como um preâmbulo ao carpe diem. Há um segunda forma de se apegar aos ídolos, que é a de ser idealista, de reencontrar grandes projetos na política, dar novas esperanças à juventude, reinventar grandes resoluções, "o comunismo está morto, tudo bem, mas vamos reencontrar ideais republicanos, a democracia, a Europa". É assim que pensam os políticos, os filósofos da ação, que dizem: "As grandes utopias de 1968 desapareceram, mas é preciso retomar as utopias, reiventar novos ídolos".
Eu me situo no oposto dessas duas estratégias. Penso que Nietzsche tem razão quando diz que não podemos mais inventar ídolos no sentido de ideais metafísicos que servem para dar sentido à vida. Sou bastante nietzschiano nisso. Ao mesmo tempo, a conclusão de Nietzsche é a de dizer que não há mais transcendência, que todos os valores transcendentes devem ser descartados. Eu colocaria uma terceira via, que tomo emprestada, em parte, da fenomenologia de Husserl, mas mais para trás na tradição kantiana, que é o que se chama de transcendência na imanência. O século 20 foi nietzschiano, no sentido de que quebramos todos os ídolos: a tonalidade na música, a figuração na pintura, a cronologia e os personagens nos romances, mas também todos os valores morais, religiosos, políticos explodiram sob o golpe da desconstrução. Foi um século de desconstrução. Os filósofos dos anos 60, Jacques Derrida, Michel Foucault, Gilles Deleuze, Pierre Bordieu são desconstrutores, pessoas que quebraram os ídolos da religião e da metafísica. Muito bem, eles tiveram razão, eles quebraram tudo isso. O problema é que hoje sob essa terra que foi devastada, esse céu esvaziado, pois os ídolos desapareceram, vemos aparecer transcendências que não são mais da mesma natureza dos ídolos da metafísica e da religião, dos ideais que Nietzsche quebrou com seu martelo. Porque são transcendências diretamente enraizadas na imanência ao mundo da vida. Para pegar um exemplo simples. Quando você ama verdadeiramente alguém - sua mulher, seus filhos, irmão, irmã, pouco importa - , você faz a experiência de uma transcendência, de algo que faz você sair de você mesmo. O outro se torna eventualmente mais importante do que você, no limite, se torna sagrado, não no sentido sagrado do termo, mas no sentido de que você poderia sacrificar sua vida por ele. Quantos pais de família estão dispostos a sacrificar suas vidas por seus filhos? Quase todos. Não se pode mais falar de egoísmo nesse nível, porque há uma transcendência. Mas essa transcendência não está enraizada num ídolo metafísico, como aqueles que Nietzsche quebrou com seu martelo, mas diretamente na imanência no mundo vivido, algo factual, da ordem de um fato que se constata. Da mesma forma que constato que dois mais dois são quatro e não posso fazer nada, isso me transcende, não é uma questão de gosto. Assim como constato que a verdade, a justiça, a beleza e o amor me transcendem. Mas essas transcendências são vividas na imanência do coração humano. Elas não estão ao alcance do martelo de Nietzsche. Ele não tem razão contra as transcendências que me interessam hoje e que dão sentido às nossas vidas. Isso é genial, e é exatamente o que vivemos nesse momento. E é a partir disso que é preciso repensar toda a política e a filosofia moderna. Vejo estudantes americanos que continuam a fazer a desconstrução, refazer Deleuze, Derrida, Foucault, e escrever a 1000ª tese ultrafeminista, e de novo se vai fazer a estratégia microfísica do poder, enfim, tudo o que já se fazia nos anos 60. Isso tudo acabou, está morto, não tem mais nenhum interesse. Sobre essas cinzas, esse céu desconstruído, vemos aparecer transcendências como pequenas flores que aparecem na primavera. São transcendências de uma outra natureza do que as transcendências metafísicas. Isso é que me fascina e que acho genial. Estou numa posição pós-pensamento 68.
O seu recente livro sobre a família se enquadra nessa posição?
Luc Ferry: Por isso que falo sobre a família moderna. O reflexo habitual é o de dizer, em resumo, que a família é algo de direita. Para nós era o marechal Pétain e sua célebre fórmula "trabalho, família e pátria". A cada vez que se evoca a família se diz que é um tema de direita. A direita tradicional que quer restabelecer a família contra o divórcio. Isso é completamente falso e idiota. Não há nada mais democrata e moderno do que o tema da família. A verdade é que a família moderna fundada no casamento de amor é uma instituição muito recente. No Antigo Regime não existia o casamento por amor, mas sim para transmitir um nome, uma herança, uma linhagem. É no seio dessa nova estrutura nova da família fundada no sentimento que se desenvolvem essas novas transcendências. É o que cria novas formas de solidariedade e também novas questões políticas.O individualismo moderno tem uma grande característica: a preocupação com o outro e a autocrítica. Nunca uma sociedade criticou a colonização e a escravidão como faz a sociedade moderna. Enquanto que a escravidão continua a ser praticada na África e no mundo árabe-muçulmano como nunca foi no século 18 na Europa. Isso ninguém ousa dizer. Então, o indivíduo moderno é autocrítico e também muito aberto aos outros, ele se interessa pela alteridade. Hoje somos muito mais abertos do que jamais fomos no passado. Estamos numa saída de nós mesmos, algo novo, e que paradoxalmente se dá nas relações interindividuais fundadas no amor. Não é o individualismo no sentido do egoísmo. Não há nada mais coletivo do que os problemas individuais. Temos todos os mesmos problemas, de vida amorosa, de separação, de divórcio, de educação dos filhos, de poder de compra, de escolha de uma profissão que dê prazer. E o político que compreender isso alcançará um enorme sucesso.
Você fala do "progresso pelo progresso" do mundo contemporâneo, ausente uma reflexão sobre o homem ou sobre um projeto.
Luc Ferry: No Brasil vocês têm um movimento antiglobalização bastante forte. Eu mesmo participei do Fórum Mundial Social de Porto Alegre. De uma maneira geral, o pensamento antiglobalização atual, de extrema-esquerda, coloca o dedo numa questão verdadeira, mas a analisa de uma forma totalmente ilusória. Em resumo, o que caracteriza a globalização é o fenômeno generalizado do benchmarking. O fato de que a competição generalizada no planeta inteiro se coloca como motor do progresso. Não é mais como no século 18, a representação de uma finalidade superior, de um objetivo grandioso, que seria a emancipação dos homens e a sua felicidade. O motor do progresso é simplemsente a necessidade, induzida pela competição, de avançar para não cair. No fundo, as empresas hoje estão na situação de alguém que anda de bicicleta e que, se não avança, cai. O fabricante de telefone celular sabe que se em três meses seu aparelho não for moderno ele estará acabado.
Estamos numa lógica que, contrariaramente ao que pensam os militantes antiglobalização, as primeiras vítimas são os chefes de empresas, as pessoas que estão nessa lógica. Os antiglobalização imaginam que por trás do mercado financeiro há pessoas que comandam tudo. Como em Wall Street, seriam os grandes financistas e capitalistas que mandam. Eles têm ainda o modelo marxista na cabeça: por trás de superestruturas há infraestruturas. É um enorme erro. Se houvesse pessoas que, por trás do mercado financeiro, comandassem tudo, seria uma boa notícia. Mas não é nem isso. Obviamente que os capitalistas tiram proveito, isso é evidente. Mas, diante de uma onda gigantesca, se você tem uma prancha de surf pode deslizar nela ou cair. Essa é a situação de um chefe de empresa hoje. A globalização produz ondas gigantescas permanentemente e o empresário não tem outra escolha do que surfar ou ser varrido. Ele não tem nenhuma liberdade. Ele pode ganhar ou perder, mas o curso do mundo lhe escapa.
Como escapa aos jornalistas. Num jornal ou num canal de tevê você está na lógica da audiência, que é a mesma lógica dos mercados financeiros, da globalização, da mercantilização do mundo. O problema da globalização é o de que o mundo nos escapa. Ele é a imagem dos grandes mitos de Frankestein e do aprendiz de feiticeiro, mitos da despossessão, que contam a história de uma criatura que escapa ao seu criador, e é isso que vivemos hoje. Não é como dizem os militantes antiglobalização: se houvesse responsáveis por trás, poderíamos prendê-los, fazer a revolução, enforcá-los e tudo estaria acabado. Estamos num processo anônimo e cego.
É assim para as deslocalizações de empresas, são processos automáticos. O chefe de empresa que não deslocalizar sua produção para a Tunísia, China ou outro lugar, moralmente não estará fazendo seu trabalho, que é o de fazer com que sua empresa sobreviva e não o de dizer: "Vou manter minha empresa no meu país mesmo que ela termine em falência". Ele não é como o capitão do século 17 que deve afundar junto com o seu navio. Isso acabou. A grande questão política hoje é: como retomar o controle? É o problema n° 1 para todos os políticos do mundo. Como não ser somente um surfista. E, em segundo lugar, saber sobre que valores se apoiar para retomar o controle. E nisso a relação entre filosofia e política é muito forte.
Há três palavras para resumir tudo o que penso:
1 - É um século de desconstrução, nietzschiano.
2 - Imenso paradoxo: a desconstrução serviu à expansão da globalização liberal. A globalização é a liquefação, a mercantilização do mundo, tudo se torna imanente ao mercado. A desconstrução, que era algo sobretudo de esquerda, marginal, prestou serviço à globalização liberal. Foi necessário o martelo de Nietszche para que o capitalismo de Bill Gates pudesse se expandir. Enquanto houvesse valores transcendentes, a globalização não era possível.
3 - A sacralização do indivíduo por meio do amor, a liberação de si, é o que permite sair desse molde que é o casal desconstrução-globalização. O verdadeiro problema colocado pela globalização não é o que dizem os militantes antiglobalização, as desigualdades crescentes, mas sim a despossessão democrática, o fato de que o mundo nos escapa. É verdade que as desigualdades aumentam, mas, apesar de tudo, os mais pobres são menos pobres do que se não houvesse a globalização. E penso que a abertura da África ao mundo acabará por salvá-la. Não é o problema econômico o fundamental. O verdadeiro problema é que as riquezas produzidas pela globalização não podem ser partilhadas porque o mundo nos escapa. A política desaparece em detrimento da economia. A questão é como retomar o controle e com que valores.
Você defende a exigência do amor como única forma de liberação e ampliação do pensamento.
Luc Ferry: Eu não me situo numa "filosofia da felicidade". Penso que o melhor que se pode fazer na sua vida é alcançar a serenidade e vencer os medos, o que já é enorme. Na verdade, não vencemos nunca os medos, os guardamos, mas, para usar uma metáfora, podemos tentar fazer algo um pouco como o judoca faz quando utiliza a força de seu adversário. Não penso que possamos alcançar a felicidade. Se eu devesse responder à pergunta sobre qual a finalidade da vida, responderia três coisas. A primeira, superar os medos. A segunda, ampliar o horizonte. Acho que a imensa chance que nos é dada nesta terra é a de, pela liberdade, nos separarmos de nossas particularidades do começo. Por exemplo, sou francês, mas posso ir fazer meus estudos na Alemanha, como fiz, e o resultado da separação de minha particularidade francesa será a ampliação do horizonte. Você, como brasileiro, veio para a França, é uma separação, dolorosa e apaixonante. Saímos do artesanato local, saímos de nós mesmos, de nossas particularidades e abrimos o horizonte. O resultado disso é que temos mais de universal, de comunidades e experiências humanas. Quando você aprende uma língua, aprende também uma cultura, encontra pessoas. É a finalidade da vida humana. Na Bíblia, quando se diz "conhecer" e "amar", é a mesma coisa. "Ela o conheceu biblicamente" quer dizer "eles transaram". Há nisso algo que se reencontra com uma terceira finalidade da vida, que é o amor.
E qual é a sabedoria do amor que você defende?
Luc Ferry: Temos necessidade de uma sabedoria do amor, num sentido bastante preciso e concreto. Desde que amamos, se coloca a questão da finitude humana, que é o luto do ser amado. É inevitável. Desde que você tem filhos, uma mulher, um marido, a questão da possibilidade do ser amado morrer não tem como não ser pensada. Não conheço ninguém que não se pergunte isso um dia ou outro. A vida obriga você a pensar isso. Se você é estóico ou budista, a mensagem de Epicteto como a do Dalai Lama é "não se apegue". Se apegar é se preparar aos piores sofrimentos. É por isso que o sábio grego e o sábio tibetano vivem sós. É a vida monástica. "Monos", em grego, quer dizer só. Nos seus livros, o Dalai Lama diz que a vida de família não se presta à sabedoria, porque certamente você vai se apegar aos seres que você ama, com quem você vive, e não é sábio se apegar. Então é preciso ter compaixão, amar as pessoas, ter amizade, mas não se apegar.
Eu não sei ser diferente, me apego às pessoas que amo. Tenho a impressão de que essa mensagem de sabedoria estóica ou budista consiste em se atirar na água porque se teme a chuva. Uma outra resposta é a do cristão. No Evangelho, o episódio mais importante nesse ponto de vista é a morte de Lázaro, amigo de Cristo. Cristo chora quando Lázaro morre, mas ele sabe que o amor é mais forte do que a morte e, conseqüentemente, ele vai poder praticar a ressurreição de seu amigo Lázaro e reencontrá-lo depois da morte. Então, é possível amar as pessoas que você ama, pois no amor de Deus você vai reencontrar as pessoas que você ama depois da morte. É a promessa cristã por excelência, a ressurreição dos corpos e não somente das almas, como para Platão ou para os judeus e muçulmanos. É uma ressurreição de corpo e alma.
E para aqueles que não são budistas nem cristãos, qual a resposta?
Luc Ferry: Precisamos de uma sabedoria do amor para pessoas que amam seus próximos e que não são nem budistas ou cristãs. Elas estão apegadas e não têm a rede de segurança do cristianismo, como uma rede de proteção no circo quando se cai. Essa sabedoria do amor não tem preceitos morais, mas de vida amorosa. Por exemplo, é preciso se reconciliar com seus pais antes que morram. Por mil razões, estamos sempre em conflito com nossos pais. Penso que não nos perdoaremos de vê-los morrer sem ter clarificado a situação com eles. É um preceito de sabedoria do amor extremamente precioso.
Outro exemplo seria: não se deve nunca mentir a seus filhos. Claro, há mentiras que não são graves, como falar do Papai Noel. Mas não se deve, por exemplo, nunca mentir a um filho adotado, dizer que ele não foi adotado. Se um filho, após a morte do pai, sabe que foi adotado, poderá reinterpretar na idade adulta relações que teve com o pai à luz dessa nova verdade. Temos tendência a reinterpretar coisas, principalmente com nossos pais, à luz de novas verdades relacionadas à segredos de família, anos depois revelados. E deve-se também pensar que os filhos podem morrer. É preciso se preparar para isso, tentando deixar o mais claro possível o diálogo que temos com eles. A perda de um ser amado é tanto mais irreparável quanto menos fomos longe no diálogo com ele. Isso não se trata de preceitos ou valores morais, de ética. A lógica do amor não é lógica da moral. Trata-se de uma sabedoria do amor, e não de uma ética moralizadora ou de direitos humanos. Essa é a idéia que me interessa: se você não é budista, como você vive com as pessoas que ama, sabendo que elas podem morrer de um momento a outro?; que imperativo de sabedoria do amor isso cria? Essa é uma grande questão. E é uma verdadeira questão filosófica, não se trata simplesmente de religião, da psicanálise, porque leva em conta a questão da finitude humana e da morte.
Fonte: terra.com

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