terça-feira, 16 de setembro de 2008

Putz! "No passado, o futuro era melhor"

Mercedes Sosa


LA VIEJA
Juremir Machado


Ela é conhecida como La Negra. Mas, sentada, quase imóvel, no palco do Salão de Atos da Ufrgs, parecia mais uma vieja, melhor, uma índia vieja. Mercedes Sosa arrasou no seu show do último sábado em Porto Alegre.

Muita gente torceu o nariz ou debochou. Um amigo meu duvidou que ela estivesse viva. Outro, mais informado, apostou que não haveria público. A casa estava cheia. Foi emocionante. O vozeirão continua intacto. O mais interessante é que, escutando a vieja cantar, a gente sente-se jovem.

Ao menos, bem entendido, os que, como eu, já estão na chamada meia-idade. É nostalgia pura. O passado salta do baú com cheiro de centro acadêmico, movimento estudantil, camisetas de Che Guevara, gritos de 'viva a América Latina' e 'pátria livre', páginas de Eduardo Galeano, 'gracias a la vida', 'sol de alto Peru' e outras cositas más que o vento levou sem apagar da memória.

O público, evidentemente, era mais amplo e com repertórios estudantis variados. Estava-se ali pela grande artista. Que cantante! Mercedes Sosa é, ao mesmo tempo, uma voz extraordinária e o vestígio de um tempo em que se acreditava em 'todas as vozes, todas, todas as mãos, todas'.

Depois, os modernos decretaram o anacronismo dos sonhos de solidariedade latino-americana, esquecendo-se apenas de tirar, por exemplo, a Bolívia do seu atoleiro histórico. Em arte, nada é excludente. Pode-se adorar Joss Stone no Pepsi On Stage e Mercedes Sosa na Ufrgs.

Difícil mesmo para um quarentão ultrapassado é engolir Britney Spears, embora um jovem hipermoderno tenha tentado me explicar que ela representa o top do fashion radical e musicalmente inovador em termos esteticamente irados e absolutamente experimentais no próprio sistema mais amplo. Entenderam? Eu não. Pivicas!

Mas entendi perfeitamente a emoção que tomou conta da platéia de Mercedes Sosa. A vieja encarna um tempo em que certas canções se tornavam hinos. A minha geração cantou com atraso 'Pra Não Dizer que Não Falei de Flores' e 'Travessia'. Ninguém é perfeito.

Os mais utópicos, evidentemente, tomaram grandes porres no Maza, um boteco na Bento Gonçalves, em frente à PUC, repetindo 'Canción con Todos' e tentando lamentavelmente imitar a voz de Mercedes Sosa. Ao som de 'salgo a caminar/ por la cintura cósmica del sur', o berreiro era geral.

Muita gatinha da época entregou o patrimônio a rebeldes cabeludos e de coração mole depois do refrão 'Todas las voces, todas/ Todas las manos, todas/ Toda la sangre puede/ Ser canción en el viento/ Canta conmigo, canta/ Hermano americano/ Libera tu esperanza/ Con un grito en la voz'.

Hoje, acho que depois desse refrão o sujeito vai dormir sozinho. Curiosamente, foi a canção que faltou no show da vieja. Confesso meus pecados de juventude e também os de meia-idade. Voltei para casa, depois de uma garrafa de um vinho argentino, Punto Final Malbec, e escutei 'Canción con Todos' no YouTube.

É isso que Michel Maffesoli chama de pós-modernidade: a tecnologia de ponta a serviço do arcaico, ou seja, dos mais antigos sentimentos do mundo, entre os quais a agridoce nostalgia de uma época revoluta.

Como é bom, vez ou outra, sair do casulo para sentir saudades de nós mesmos, do que não conseguimos ser. Ao final, Mercedes Sosa levantou-se, para delírio de todos. La Negra resiste. La vieja encanta. Pode-se voltar para casa com uma certeza: punto final.

Fonte: http://entrelacos.blogger.com.br/

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