quinta-feira, 15 de maio de 2008

QUINTA DA ENTREVISTA: D. Pedro Casaldáliga

Dom Pedro Casaldáliga


Em conversa franca, dom Pedro Casaldáliga discorre sobre suas motivações, o que faria se fosse papa e opina sobre figuras e temas atuais.
Eduardo Lallana e Charo Garcia de la Rosa, fundadores da ONG "Tierra Sin Males", entrevistaram Dom Pedro, em janeiro deste ano, durante visita a São Félix do Araguaia, local onde estão desenvolvendo um projeto, financiado pela Província de Soria (Espanha), para reduzir a desnutrição e a mortalidade infantil.


Missionário da Ordem dos Claretianos, o catalão dom Pedro Casaldáliga, 79 anos, esteve à frente da prelazia de São Félix do Araguaia (MT) por mais de 30 anos. Atualmente, é seu bispo emérito. Foi o primeiro a denunciar a existência de trabalho escravo no Brasil, em 1971. No mesmo ano divulgou a primeira carta pastoral, "Uma Igreja da Amazônia", em conflito com o latifúndio e a marginalização social. A partir dessas denúncias, a prelazia tornou-se referência para os movimentos de oposição à ditadura, mas também foi alvo de ataques pelo fato de ser encarada como foco da guerrilha. Dom Casaldáliga foi preso e torturado pelos militares.


Entrevista:
Eduardo Lallana e Charo Garcia de la Rosa, de São Félix do Araguaia (MT)


Muitas já foram as entrevistas feitas com dom Pedro Casaldáliga. Umas abordam a sua tomada de postura ante a situação mundial, outras, sua verve ante os problemas e desafios da Igreja. Mas a entrevista a seguir busca uma peculiaridade: alcançar o coração da pessoa, do pastor, do místico, do poeta - duas vezes indicado ao Prêmio Nobel da Paz, bispo emérito de São Félix, um dos líderes da teologia da libertação, figura internacional na defesa dos direitos humanos.

Qual seria o lema da tua vida?
Dom Pedro Casaldáliga - Relativizar o que é relativo e absolutizar o que é absoluto.

E para você, o que é absoluto?
Dom Pedro - Tenho um poeminha que diz "que tudo é relativo, menos Deus e a fome".

Que passagens do Evangelho são as que mais têm influenciado sua vida, as que mais têm guiado sua ação pastoral?
Dom Pedro - "Deus é amor" e "Deus amou o mundo de tal modo que enviou seu Filho não para condenar o mundo, mas para salvá-lo".

Falemos de seus guias, mestres espirituais, aquelas pessoas que iluminaram seu caminho além desta fonte evangélica.
Dom Pedro - Evidentemente Jesus de Nazaré, Francisco de Assis, Teresa de Lisieux, Charles de Foucault, companheiros de episcopado, aqui na América Latina.

Você é conhecido por sua alma de poeta. Se tivesse que eleger dentro da literatura universal, quais seriam seus poetas preferidos?
Dom Pedro - San Juan de la Cruz, Antonio Machado.

Se tivesse que eleger algum poema?
Dom Pedro - O próprio "Auto-retrato" de Antonio Machado, "A seqüência de Páscoa" e outro poema imortal para mim, o "Canto Espiritual de Joan Maragal".

Somos humanos, somos feitos de virtudes e defeitos. Qual seu maior defeito?
Dom Pedro - A impaciência.

E a maior virtude?
Dom Pedro - A esperança.

Qual é o grande pecado do mundo de hoje?
Dom Pedro - O capitalismo neoliberal.

E um dos pecados importantes da Igreja santa e pecadora?
Dom Pedro - A falta de capacidade para unir-se às igrejas, absolutizando o que não é absoluto, e não respondendo ao testamento de Jesus, "que todos sejam um".

Entrando mais em aspectos pessoais de sua vida, qual é o momento mais triste de sua vida?
Dom Pedro - Não saberia dizer em virtude de relativizar o que é relativo, o momento da morte de meu pai, de minha mãe, a morte de líderes, militantes, agentes de pastoral. São momentos tristes, mas como a esperança continua não chega a ser um drama, uma tragédia. Não creio que possa dizer que tenho vivido tristezas maiores. Relativizar porque a esperança continua dando garantia posterior a todos os fracassos, a todas as decepções. Eu digo em algum lugar de um diário meu: "Deus é amor, nós somos amor, traição e medo, mas também esperança". E essa esperança resolve todas as decepções e todas as tristezas, todos os fracassos.

Por contraste, quais os momentos mais felizes de sua vida?
Dom Pedro - Cada vez que vejo que uma comunidade, um líder que assume sua missão, assume suas causas, cada vez que vejo que há comunidades, pessoas, capazes de solidaridade, arriscando inclusive a própria vida. O testemunho de nossos mártires.
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Sabemos que foi perseguido, ameaçado de morte em várias ocasiões. Quando realmente temeu por sua vida?
Dom Pedro - Durante a ditadura militar, houve bastantes momentos. Na ocasião da morte do padre Juan Bosco Penido Burnier: a bala era para mim. Eu tenho o poder de esquecer o mal e quando olho para trás nunca posso dizer que estou olhando para trás com raiva. Não. Esse absoluto que é Deus resolve todos esses problemas e todas as tristezas e decepções.

Falando de decepções, qual foi a maior decepção de sua vida?
Dom Pedro - Maior nenhuma, porque seria uma decepção maior chegar a um túnel sem saída, mas a saída está sempre adiante. Não posso falar de decepções maiores: políticos amigos que falharam, projetos militantes ou pastorais que falharam, mas eu os relativizo.

Quais são os seus três maiores desejos?
Dom Pedro - Que se acabe a fome no mundo, que se acabe a fabricação de armas, a carreira armamentista, que se acabe a guerra sobretudo essa guerra religiosa ou respaldada por religiões.

E as três maiores preocupações?
Dom Pedro - Que as igrejas não se unam, que não sejamos capazes de administrar este mundo que daria para todos e tenhamos que seguir vivendo em meio a uma humanidade em que dois terços não têm o direito de viver. E no cotidiano, os erros, sobretudo os nossos e dos agentes de pastoral.

Olhando para trás, qual seu maior erro?
Dom Pedro - Não ter sido compreensivo o bastante em muitas ocasiões.

Do que se arrepende?
Dom Pedro - De muitas coisas. De tudo um pouco. Podia ter feito melhor, com mais esperança, com mais simplicidade, com maior generosidade. Eu recordo sempre a frase daquele santo que dizia que quando se apresentasse diante de Deus lhe pediria: "esqueça-se das minhas boas obras, vamos falar somente dos meus fracassos, dos meus pecados, que isso sabes resolver muito bem".

Uma de suas características mais destacadas tem sido a relação com os povos indígenas. O que tem aprendido nesta experiência com eles?
Dom Pedro - A convivência com a natureza, um certo sentido de comunidade, relativizar também muitas coisas que nossa civilização considera como absolutas.

Poderia recordar quando, como e se houve algum momento especial no qual fez essa opção pelos pobres que tem guiado e marcado sua existência?
Dom Pedro - Em minha infância ouvi muitas vezes de meu pai e minha mãe: "Nós somos pobres". Já firmado na infância, pouco depois com contatos, com análises, convivências religiosas passei a sentir que a opção pelos pobres tem que ser a opção fundamental da Igreja. Uma opção que defina a Igreja recordando aquela frase de Van-der Meerch: "A verdade, Pilatos, é estar do lado dos pobres". Para a Igreja também.

Quais são, para você, os três grandes desafios para a Igreja do terceiro milênio? Dom Pedro - O ecumenismo e o macroecumenismo. A pobreza estrutural de suas instituições. A profecia contra sistemas, estruturas que matam, que excluem, que proíbem. Então seria, a união das próprias igrejas, a profecia diária, uma profecia que denuncia, anuncia e consola.

Se fosse nomeado papa, quais seriam as três primeiras decisiões mais importantes que tomaria?
Dom Pedro - Estamos brincando, não? A primeira seria suprimir o Estado Pontifício e que o papa deixasse de ser chefe de Estado. A segunda, suspender a Cúria Romana e, a terceira, convocar um encontro chamado Concílio verdadeiramente ecumênico, para refazer totalmente a Cúria Romana, para redefinir o ministério de Pedro e para propor com seriedade a integração dos diferentes povos e a relativização do que é relativo, que pode ser o próprio celibato sacerdotal.

Chama atenção em sua vida o fato de que sendo bispo não tenha empregado os símbolos do poder episcopal. Qual é a motivação última e profunda, de que nunca tenha usado a mitra e o cajado? Qual é a raiz dessas suas decisões?
Dom Pedro - Com todo respeito aos irmãos que os usam, creio que não são símbolos nem gestos evangélicos. Estão vinculados a um status e seria o mais lógico prescindir de escudo, prescindir de mitra, de cajado, e celebrar as eucaristias com simplicidade. Não creio que essas simbologias façam nenhum bem à Igreja.

Para você, qual é a virtude humana que mais valoriza?
Dom Pedro - A coerência.

E a virtude evangélica?
Dom Pedro - A esperança.

Como gostaria de ser recordado?
Dom Pedro - Como alguém que crê que Deus salva todos e tudo.

Para você, ser um homem ou uma mulher espiritual é...?
Dom Pedro - Viver em profundidade, assumir opções dignas de uma vida humana. Ser coerente, abrir-se às necessidades do próximo. Celebrar a vida.

Agora vou lhe dizer algumas palavras soltas e lhe pediria que respondesse com o fogo de sua mente e de seu coração. Algunas relativas à geografia. África?
Dom Pedro - A maior dívida da humanidade.

América Latina?
Dom Pedro - Minha segunda pátria.

Cataluña?
Dom Pedro - A família, a língua, a paisagem.

Brasil?
Dom Pedro - Uma casa de última hora e definitiva.

Araguaia?
Dom Pedro - Nosso rio.

Soria?
Dom Pedro - Antonio Machado, "Tierra Sin Males", solidariedade.
Injustiça?
Dom Pedro - A negação do amor.

O chamado "terceiro mundo"?
Dom Pedro - Um escândalo na história humana. Porque "terceiro mundo" por definição significa um mundo proibido, marginalizado, explorado, inferior.

"Primeiro mundo"?
Dom Pedro - A prepotência, o lucro, o egoísmo, o consumismo, o imperialismo.

Liberdade?
Dom Pedro - A possibilidade de vencer o medo, a possibilidade de ser o que se é, a possibilidade de ajudar todos que vivem sem liberdade.

Movimento dos Sem Terra?
Dom Pedro - Hoje em dia, o maior movimento popular social da América Latina.

Latifúndio?
Dom Pedro - Uma iniqüidade, o abuso da terra de todos, o egoísmo estrutural no campo.

Globalização?
Dom Pedro - A transformação da humanidade em mercado.

Solidaridade?
Dom Pedro - Como disse a poeta nicaragüense: "a ternura dos povos". A caridade estruturada de povo para povo.

Guerra?
Dom Pedro - A negação da vida.

Bem. Agora, também com algumas palavras, sugiro que evoque seu pensamento, seu sentimento sobre alguns personagens. Lula?
Dom Pedro - Uma experiência, operária, política, importante para a América Latina. Uma certa decepção, quiçá porque exigimos o que no momento não se pode exigir, mas em todo caso, na história do Brasil, na história da América Latina, haverá sido um passo político importante.

Bush?
Dom Pedro - Uma epidemia mundial.

Fidel Castro?
Dom Pedro - Um grande estadista, um pai da pátria latino-americana, mas ao mesmo tempo, autoritário, imperialista, que talvez não tenha sabido abrir os espaços que deveria ter aberto para democratizar mais as conquistas de saúde, de educação que Cuba fez, que seria um testemunho mais acessível aos outros povos.

Evo Morales?
Dom Pedro - Uma vitória dos povos indígenas depois de 500 anos de proibição, de exclusão.

E para terminar, o que lhe dizem estas palavras? Vida Eterna?
Dom Pedro - A convivência plena com Deus vivo, e com todos os filhos e filhas de Deus.

Vida Plena?
Dom Pedro - A partir da palavra de Jesus: "que todos tenham vida e a tenham em abundância", vida plena, aqui do lado de cá da morte, sempre é uma vida relativa, mas em esperança: vamos à vida eterna plena.

E a última pergunta; o que tem dado sentido a sua vida?
Dom Pedro - A Boa Nova do Evangelho.

* A versão em português foi publicada no Brasil de Fato, Março 2007.
* Organización No Gubernamental de Soria

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