quarta-feira, 28 de maio de 2008

QUINTA DA ENTREVISTA: Caetano Veloso

Caetano Veloso



Brasileiro adora dizer que o Brasil não presta



Músico critica a esquerda paulista, defende Mangabeira Unger e reclama da "inércia" no país, "salvo-conduto para cada um se mostrar irresponsável" . NA SAÍDA DO SHOW de Caetano Veloso no Rio, uma celebridade diz que amou "Ordem e Progresso", o novo espetáculo do cantor baiano. Ordem e progresso? A bandeira pública de Caetano é outra: "Obra em Progresso" -espetáculo em cartaz às quartas, no Vivo Rio, no aterro do Flamengo, Rio, até 18 de junho, no qual o repertório mistura músicas inéditas e releituras. Mas a variação paródica do lema positivista estampado no símbolo nacional não é ruim para servir também como análise sobre a realidade brasileira. O país é como o show: obra em progresso.

PLÍNIO FRAGA
DA SUCURSAL DO RIO


Caetano, 65, reclama da existência de uma "inércia de o Brasil ter sido desimportante" que puxa para trás os que tentam fazer coisas importantes por aqui. "As pessoas ficam com medo de assumir responsabilidade. Isso é inconsciente, mas é verdade. Brasileiro adora dizer que o Brasil não presta." Caetano se apresenta na Europa em julho e agosto e depois volta ao Rio para a continuidade dos shows, do qual resultará o novo disco. Daí "Obra em Progresso". Na sexta, falou à Folha sobre show, disco e também sobre ordem e progresso.


FOLHA - O título do novo disco será "Transamba"?
CAETANO VELOSO - Não sei se será o título do disco. É o apelido que dou para o negócio que a gente está fazendo. Pode ser o título do disco, pode ser que não. Essa palavra veio na minha cabeça porque tem muito a ver com o que a gente está buscando. E a palavra "transa" [título de LP de 1972] está ali inteirinha. Como trabalho musical é um aprofundamento do diálogo entre eu e os três músicos. A criação deste som que ficou bacana no "Cê". Estamos aprofundando por um lado que nem estava sugerido no "Cê".


FOLHA - Por que fazer uma canção chamada "Baía de Guantánamo", uma das inéditas do show?
CAETANO - Eu lia sobre aquilo na imprensa, mas nunca imaginei fazer uma canção. Quando eu vi o filme "Caminhos de Guantánamo" [produção inglesa de 2006], parte ficção, parte documentário, comentando com uma pessoa amiga, num e-mail, eu coloquei aquela frase ["O fato de os americanos desrespeitarem os direitos humanos em solo cubano é por demais forte simbolicamente para eu não me abalar"]. Fiquei com ela na cabeça. É um negócio seco, ficou só aquilo. É uma frase que dá conta do mal-estar que senti diante daquela situação irregular quanto aos direitos humanos, produzida pelos americanos na ilha de Cuba, onde eles têm a base de Guantánamo desde o século 19. Se você falar em questão de como são observados os direitos humanos e as questões de liberdade e respeito aos homens, sou 100% mais EUA do que Cuba. E eles, os americanos, os defensores das sociedades abertas, apresentam muitas vezes o caso de Cuba, como um lugar onde não se respeitam as liberdades. Que aconteça isso na base de Guantánamo, sendo que são os americanos que estão desrespeitando os direitos humanos, me abala, me provoca mal-estar. Justamente porque eu sou neste ponto do lado dos americanos. Se eu fosse o tipo de cara de esquerda, pró-Cuba, anti-EUA, não seria nenhum abalo para mim.


FOLHA - Que reflexos terá nos EUA a disputa Obama ou Hillary contra McCain na sua opinião?
CAETANO - Uma coisa boa é que vai acabar a administração Bush. Todo mundo sabe que a Hillary Clinton apresentava uma maturidade maior, um traquejo maior em política, o modo como falava, se apresentava. Mas Obama é um sujeito mais simpático. Ele é mais bonito, parece mais sincero. Tem um atrativo pessoal, não é um atrativo técnico. Obama parece meu pai, é um mulato, parece um cara de Santo Amaro [cidade baiana onde Caetano nasceu]. Me sinto mais próximo dele do que daquela mulher que parece uma perua de tailleur. Adorei o discurso dele sobre raça. É uma abordagem mais brasileira, multipolar, reconhecendo a mestiçagem. Sem se resumir àquela coisa bipolar americana. Ouvi dizer que ele mesmo disse: pareço mais um brasileiro. De fato.


FOLHA - Obama foi aluno de seu amigo Mangabeira Unger, que, depois de dizer que o governo Lula era o mais corrupto da história, assumiu um cargo de ministro de Assuntos Estratégicos.
CAETANO - É normal. Mangabeira sempre militou com suas idéias à esquerda. Esteve ligado ao PDT e ao Brizola por muito tempo, depois por um período bem mais curto a Ciro Gomes, no que, aliás, coincidia totalmente comigo. Foi José Almino Alencar [sociólogo e escritor] quem me chamou a atenção para que lesse os artigos dele na Folha. Eu li e gostei muito. Li o livro dele "Paixão". Li muito de "Política". Li esse livro de filosofia que se chama "The Self Awakened". Tenho muito interesse nele porque parece pôr a discussão política brasileira num nível diferente do habitual. Pensa de uma maneira que pode ser produtiva. Ele vem tentando se aproximar do poder real para fazer com que algumas idéias dele sejam testadas, experimentadas, postas em prática. Pouco antes de Lula ganhar em 2002, ele escreveu na Folha, naquela coluna estreitinha da segunda página, que não era hora de discutir. Lula iria ganhar, então tinha de colaborar com ele. Foi o que ele fez.


FOLHA - Mas depois afirmou que era o governo mais corrupto da história.
CAETANO - A história do mensalão foi realmente um escândalo, uma porcaria, uma coisa nojenta gritante. Alguns outros episódios assim vêm acontecendo, como esse -menor, porém não menos nojento- do novo dossiê, com Dilma e todo esse negócio. O Mangabeira, quando do episódio do mensalão, criticou durissimamente. Quando Lula chamou, ele aceitou, porque é coerente com o projeto que tem: aproximar-se do poder, dando forças à esquerda, para experimentar idéias produtivas de esquerda. Por que justamente esse escrúpulo, que ninguém exige nem do próprio Lula? Foi a única coisa que a imprensa exigiu do Mangabeira quando ele foi chamado. Tem duas coisas aí: uma que o Mangabeira não é muito simpático, apesar de, para mim, ele ser um sujeito espetacular. Mas ele também não faz muita questão de ser afável como os outros brasileiros. Ele mostra aquele aspecto prussiano para marcar diferença. Deseja marcar um certo distanciamento, contribui para que ficasse antipático para os jornalistas. Mas também a rejeição é por causa da novidade, da criatividade do pensamento dele. É uma mistura de ciúme e medo de experimentar verdadeiras mudanças até de pensar. Vejo assim. Você entendeu o que eu disse?


FOLHA - Por que acha que ele é folclorizado?
CAETANO - Porque todas as pessoas que tentam coisas importantes para o Brasil sofrem com essa inércia de o Brasil ter sido desimportante, uma espécie de salvo-conduto para cada um se mostrar irresponsável na sua área. As pessoas ficam com medo de assumir responsabilidade. Isso é inconsciente, mas é verdade. Brasileiro adora dizer que o Brasil não presta, que a língua portuguesa é uma porcaria, que todo mundo escreve errado e ninguém reclama. Tudo aqui é desrespeitado. Tudo que aponte para um negócio que crie responsabilidade... O Brasil vem fazendo isso, está crescendo, se afirmando, apesar disso... Essa força que puxa para trás, que segura, que dificulta é enorme. Essa reação a Mangabeira é uma manifestação disso.


FOLHA - Você não está com o governo, mas o governo está com você ao menos em relação a amigos como Mangabeira e Gilberto Gil.
CAETANO - Cara, fui crítico do Lula, sou crítico do Lula e do governo, mas sou um crítico modesto. Porque não sou cientista político nem faço política nem quero me meter. Mas Lula não é qualquer pessoa. Não é um episódio de somenos importância. Desde que fiz 18 anos, gosto de votar. Meu pai me botou na cabeça que isso tem um valor cívico e me emociono, me lembro de meu pai. Gosto desse ritual democrático. Mas nunca chorei dentro da cabine. Só quando votei em Lula. Fiquei emocionado, meus olhos encheram d'água. É porque era Lula. Não é assim. Não é fácil. Quando vejo o povo brasileiro continuar, atrasadissimamente, na festa da posse de Lula -a única coisa que aconteceu até hoje- entendo. Me identifico com esse sentimento. Eu também sou moreno como vocês (risos). O fato é que não se pode perder a objetividade e a exigência crítica. A tradição latino-americana é de pais da pátria, caudilhos, líderes populistas. Recaídas nisso são freqüentes e um risco permanente. Não quero ser condescendente com esse negócio.


FOLHA - Como vê a possibilidade de a sucessão de Lula caminhar para a disputa entre a ministra Dilma Rousseff e o governador José Serra?
CAETANO - Dilma pelo menos não é de São Paulo, não é da USP. Serra não é propriamente USP, mas essa esquerda paulista já encheu, já deu o que tinha que dar. E é o que Lula é também.


FOLHA - Por que você assinou o manifesto contra as cotas raciais?
CAETANO - Acho muito complexo, discutível, mas neste momento assinei contra para dar força... A maioria das pessoas que, como eu, vem da posição de esquerda, gente legal, todo mundo tem que ser a favor... A maioria dos grupos de movimento negro -não todos, porque há um grupo de movimento negro que assinou contra, o Movimento Negro Socialista. Assinei para dar um peso a esta outra posição. Tem valor abordar o assunto, mas não acho que seja um negócio simples assim aplicar cotas, como os americanos já fizeram. A sentimentalização das relações desiguais que se dá na sociedade influiu no modo como se encara a questão racial brasileira também para o bem e para o mal. Já deveríamos ter negros em posições mais visíveis. Pessoas visivelmente negras. Acho que é coerente que nos EUA aconteça isso e no Brasil não. O governo mais conservador que os EUA teve nas últimas décadas foi o governo Bush. E a figura forte de seu governo é uma mulher negra. Isso é resultado de uma luta aberta nos EUA. E aqui, como nunca houve uma luta aberta...


FOLHA - Nosso racismo cordial...
CAETANO - É. Acho que é bacana, um jeito do Brasil que o Brasil tem de resolver com as suas complexidades... Não venham para cá importar racialismo americano...


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