terça-feira, 25 de dezembro de 2007

QUARTA VIA

O passado medieval que retorna à Europa
(Madeleine Bunting*)

A verdade é que o Natal é propício à nostalgia. Nós relembramos nosso passado, respeitamos (ou nos rebelamos contra) as tradições de nossa família e carinhosamente fazemos um pastiche da história européia - um pouco da era vitoriana com um bocado de Idade Média. Os cartões de Natal que chegam ao tapete da entrada com suas curiosas iluminuras medievais, as visitas às catedrais... O Natal não seria Natal sem acenos carinhosos a nosso passado medieval.
Isso reflete um apetite curiosamente persistente. Ao que parece, poucos filmes de sucesso para crianças conseguem se sustentar sem referências à Idade Média. Mesmo que essa última não domine o enredo, ela está presente como pano de fundo. Enquanto As Crônicas de Nárnia, O Senhor dos Anéis e Shrek, de diversas maneiras, recheiam seus enredos com recursos medievais como castelos, rainhas e cavaleiros andantes, Harry Potter e o recém-lançado A Bússola de Ouro usa associações medievais para injetar aquele senso de luta épica de uma época em que o heroísmo e seu triunfo ainda eram críveis.
O “medieval” se tornou uma espécie de símbolo cultural, e serve a muitos propósitos. Não se trata apenas de enredos ou de uma estética admirável - ele também é usado como um termo pejorativo. As pessoas falam da África como medieval, ou argumentam que o Islã está “preso à Idade Média”. Medieval virou sinônimo de vidas curtas, difíceis, barbárie, e um uso arbitrário, brutal , da violência. Sentimos ao mesmo tempo uma atração e uma repulsa por esse período de nosso passado.
Cavando um pouco mais fundo, surgem algumas explicações fascinantes para a intensa circulação do medieval na cultura contemporânea. Apesar das enormes diferenças entre a Europa atual e a do século 12, há também paralelos notáveis que poderiam aproximar essas sociedades mais do que em qualquer outro período.
Primeiro, nós compartilhamos a ansiedade difundida sobre um apocalipse: enquanto nós tememos uma mudança climática, nossos semelhantes medievais temiam o fim do mundo.
Segundo, compartilhamos o medo do Islã e a incerteza sobre como lidar com ele. Devemos combatê-lo (como fizeram nas Cruzadas), ou tentar conquistar conversos pelo proselitismo? A capacidade que o Islã mostrava de exercer um domínio tão poderoso sobre seu número crescente de seguidores deixava a Europa do século 12 assustada e insegura quanto a suas próprias certezas. Será que isso soa familiar?
Terceiro, o surgimento de uma economia monetária pela primeira vez desde a Antiguidade causou preocupações profundas. A busca do lucro produzia desigualdades e os contemporâneos lamentavam a ruptura da comunidade e da família.
Por fim, havia uma crise de autoridade na Europa do século 12, com a Igreja e a nobreza embrenhadas em corrupção e uma revolução no governo à medida que este tentava expandir seu poder para as vidas dos súditos. Nosso paralelo é um processo político corroído por apatia e desilusão, enquanto o Estado insiste em adquirir poderes novos sem precedentes com cartões de identidade, bancos de dados de DNA e vigilância.
SOLUÇÃO INTOLERANTE
Até aqui, traçar essas similaridades parece um jogo de salão de historiadores, uma espécie de exercício de memória, mas a coisa se torna mortalmente séria daí em diante. Como nossos ancestrais do século 12 lidaram com toda essa insegurança e essas mudanças drásticas?
Eles inventaram uma sociedade perseguidora, uma sociedade que sistematicamente identificava categorias inteiras de pessoas e depois tratava de exterminá-las, subjugá-las ou segregá-las. Assim como as origens da Europa moderna e sua expansão global podem ser referidas às momentosas transformações políticas e econômicas do século 12, o mesmo pode ser feito com seu corolário, o Estado construído para perseguir minorias que tem caracterizado, intermitentemente, a história da Europa desde então.
Esse é o argumento brilhante explorado em um dos livros mais influentes e controvertidos de história medieval dos últimos 20 anos, The Formation of a Persecuting Society (“A formação de uma sociedade perseguidora”) de R. I. Moore.
Moore demonstra que a demonização dos judeus e o surgimento de um anti-semitismo sistemático foi parte de um processo mais amplo em que a ameaça de grupos muito díspares de pessoas foi inflada - hereges, gays, leprosos ficaram todos sujeitos a novas leis - e novos métodos de intervenção nas vidas dos indivíduos, como a Inquisição e a tortura sistemática, foram inventados.
Alguns resultados da “sociedade perseguidora” são bastante conhecidos. A posição dos judeus se degradou por toda a Europa, suas vidas foram circunscritas por regulamentos punitivos e assassinatos em massa. Houve a perseguição brutal aos hereges cátaros no sudoeste da França e a invenção da Inquisição. Leprosos eram privados de direitos civis e confinados.
As atitudes européias perante o Islã se encaixam na tese. Elas se deterioram no século 12 e a curiosidade inicial deu lugar a um preconceito abusivo. Houve um processo de deliberado esquecimento das grandes conquistas do conhecimento islâmico que foram conhecidas um século antes. A Europa simplesmente perdeu o interesse em aprender árabe. Na verdade, em aprender qualquer coisa de seus vizinhos muçulmanos.
Esse preconceito, esse impulso para estigmatizar e perseguir não foi uma reação a uma nova ameaça. Sempre houve muitos judeus, hereges e homossexuais e, é claro, eles já haviam sido objeto de perseguição antes, nas não na versão do século 12 de uma violência deliberada e socialmente sancionada pelo Estado e pelas instituições.
A perseguição não foi uma resposta a judeus se enriquecendo com a usura (como a História costumava colocar) mas a resposta de uma sociedade em tumultuada mudança da qual interesses poderosos procuravam tirar vantagem. Basicamente, o Estado e seus novos funcionários queriam expandir seu poder e usaram a perseguição de “crimes” absolutamente novos como maneira de desenvolver a máquina e a legitimidade para exercer esse poder.
Esse é um legado que, segundo Moore, impregnou a história européia, irrompendo cada vez com maior força e conseqüências mais devastadoras. Pode-se ver o padrão dos julgamentos por bruxaria e a perseguição religiosa do século 16, até o Holocausto ou aos informantes da República Democrática Alemã. Tudo segue um padrão estabelecido entre os séculos 11 e 13, apesar de muitas diferenças de detalhes circunstanciais.
SOMOS MEDIEVAIS
Quando se lê Moore, os paralelos com os dias atuais são, muitas vezes, de arrepiar. Estamos testemunhando agora uma concentração de poder numa elite político-econômica que está lutando para afirmar sua legitimidade enquanto amplia paulatinamente seu poder.
Decisivamente útil para isso é a retórica cada vez mais dura, hoje endêmica no debate público, quando novos grupos são identificados como ameaças - muçulmanos, aqueles que pedem asilo e os imigrantes irregulares - e a escala dessas ameaças é absurdamente inflada.
Isso zomba da idéia de usarmos “medieval” como um termo ofensivo para lançar contra outros, quando ele, na verdade, define corretamente características persistentes e profundamente vergonhosas de nossa própria sociedade contra as quais a história nos previne para ficarmos escrupulosamente vigilantes.
Moore admite que houve períodos de recessão em nossas tendências persecutórias nos últimos 600 anos. Mas as lições terríveis do século 20 não nos deixam nenhum espaço para a crença complacente de que essa arma de ascensão política se tornou dispensável.
__
* Este artigo foi originalmente publicado no jornal britânico The Guardian
(http://www.estado.com.br/editorias/2007/12/23/ger-1.93.7)

#####################

A paz dos inquietos
(Danuza Leão)


Eles vivem em eterna tensão, para o bem ou para o mal; só não podem é ficar parados. Os caminhos que escolhem são sempre os mais difíceis
É A INQUIETAÇÃO; ou você nasce com ela ou não, e se nasceu, vai passar a vida inteira com uma pressão no peito e outra na alma, querendo entender e não entendendo, trocando de casa, de objetivo, de marido e de analista, sem chegar, nunca, a uma conclusão.
Um inquieto não tem sossego: se é pobre, gostaria de ser rico, se é rico, acha que o dinheiro atrapalha e que talvez fosse mais feliz se morasse numa pequena cabana.
Se é inverno, ele se lembra com saudades do verão, mas se está debaixo do mais lindo sol, pensa em como seria bom se estivesse em Gramado no inverno, de botas, tomando um chocolate quente.
Não é que ele queira sempre o que não tem; apenas não consegue viver o momento presente - não em paz. Ou está lembrando do passado ou pensando em como vai ser bom quando o futuro chegar. É duro fazer parte da tribo dos inquietos.
Com eles não há risco de monotonia; acordam te sufocando com beijos e abraços ou na mais fria das indiferenças, e o pior: sem saber o porquê. No meio do dia podem telefonar como a mais dócil das criaturas, sem conseguir explicar por que foram tão insuportáveis horas antes. Nem explicar, nem entender. É dura a vida dos que vivem perto de um inquieto.
Mesmo quando está tudo bem -o amor perfeito e o trabalho legal, alguma coisa atrapalha: é a tranqüilidade. Como é possível alguém viver em paz e em harmonia com as pessoas e com o mundo? Difícil de responder.
Difícil, a vida dos inquietos, e ninguém imaginaria o quanto essas pessoas tão vitais - porque vitalidade é o que não lhes falta - sofrem, mas que ninguém confunda sofrimento com infelicidade.
Nada a ver. Para eles nunca há paz; há momentos de intensa e fugaz felicidade, mas paz, nunca. O grande momento dos inquietos é quando eles começam a planejar uma mudança de vida, seja essa mudança quebrar uma parede, mudar de profissão ou de país.
Eles vivem em eterna tensão, para o bem ou para o mal; só não podem é ficar parados. Os inquietos não se conformam com nada que se pareça com a estabilidade, e por isso os caminhos que escolhem, sejam eles quais forem, são sempre os mais difíceis. Os inquietos não sabem viver sem uma complicação, e a luta para eles é sempre melhor que a vitória.
Eles não compram, jamais, uma casa de campo pronta, mas um terreno; levam dois anos para construí-la e mais dois fazendo o jardim, decorando etc. No dia em que ela fica pronta, as flores crescidas, ele sente um grande vazio - que só se resolve quando encontra um comprador.
É que assim eles passam a maior parte da vida, com algumas pausas para refletir por que são assim e como poderiam se aquietar, para serem mais felizes; para encontrar uma certa paz, talvez - só que não conseguem.
Mas um dia eles compreendem que essas pausas foram tempo perdido e teria sido mais simples se tivessem reconhecido, há muito mais tempo, que com eles não há nada a fazer, e que é impossível mudar.
E é melhor que não saibam nunca: se souberem, terão, de uma certa maneira, encontrado a tal da paz - o que para eles pode ser fatal.

Nenhum comentário: