Que dia maravilhoso haverá, aquele em que for possível telefonar para os melhores amigos e dizer-lhes que houve um ligeiro engano, que não teria sido preciso escrever coisa alguma? E que, dali em diante, nada mais se escreverá, a não ser os nomes e os números necessários das pessoas e das coisas.
Que boa impressão a de ser-se uma parte do coral, um grito em meio às vozes que clamam o gol, um gemido noturno, entre os muitos e repetidos gemidos, na imensa e fria sala do hospital de indigentes! E que absurda e amiga paz a de saber-se que a lua e a flor, o rio e a queixa, nada foi mais lua ou flor, mais rio ou mais queixa, por causa do que se disse. A própria mulher foi sempre bela ou fêmea, antes e a salvo da minha poesia e das minhas mãos!
Vivi entre o que viveu. Fui multidão e povo, um lugar ocupado, uma rescendência de suor, uma voz que pediu licença, um olhar que mendigou prazeres e uma parte milesimal dos pés que povoaram. Das minhas mãos, prefiro não contar, a não ser na custosa confissão de que foram mãos vadias. De bem, fizeram a bênção e o carinho... mas o carinho é vadio e, em toda vez que se aparta de Deus, é proibido. Prevalece, portanto, o existente da multidão, o corista, aquele que não foi o solista de beleza alguma e que, por isso, se sente irresponsabilizado dos erros de maneira especial e destacada!
Sou o rosto fora de foco de uma fotografia em que dezenas de pessoas aparecem em segundo plano. Posso ter ou não a barba crescida; posso trazer ou não uma flor no peito; posso chorar até, e ninguém botará reparo. A fotografia passará de mão em mão e todos os que comigo estiverem desfocados só serão odiados quando não houver mais nada a odiar em primeiro plano.
Só assim é — se o homem real e constante — o que sente o gosto e o cheiro da vida. A maioria se evade de sua condição real, para fazer ou imitar o êxito. Entretanto, só o êxito casual é verdadeiro. Exemplo de êxito casual: a beleza. Exemplo de beleza: a mulher bela. Uma mulher sentou-se à minha frente. Tinha luz própria... E tanta, que um fanal de evidente claridade iluminou minhas mãos, quando em gestos inúteis (as mãos) procuravam supor os seus múltiplos encantos. Mas não me quero perder além do homem real e constante, portanto, desenvolto.
Só farei, sem pudor e remorso, aquilo que fizer com desenvoltura. Principalmente, a poesia e o amor. O amor ou é desacanhado, destro, irrefletido... ou é suor. A poesia também. Por isso volta-se a multidão, vivem-se as imunidades corais e espera-se a vinda casual da poesia e do amor.
Sou o homem real, que sua, que mente, que disfarça, que teme, que inveja e cobiça. Tive e tenho os meus momentos de suicida. Não gosto que me conheçam aquém e além de um homem constantemente exposto ao erro e ao crime. É dever do ser humano pressentir em seu semelhante um sem-número de intimidades inconfessáveis. O grande e verdadeiro amor ao próximo é aquele que ama os erros mostrados e pressupostos.
Além da verdade, só existe a multidão, que exime o homem das proclamações e o ampara das conseqüências de sua coragem. Depois de cumprida a Verdade, ter-se-á conquistado o silêncio. "O silêncio alcançado à custa de sempre dizer a mesma coisa" (João Cabral de Melo Neto).
Só creio em dois estados de lucidez: o dos bêbados e dos poetas. Ambos são negados. Mas essa negação ainda não é a definitiva. Lucidez não é, por exemplo, comprar-se uma vitrola por cem dólares e se vendê-la por vinte contos. Isto seria melhor chamado de "paciência"... ou "organização"... ou ainda "paciência organizada". Lucidez não é ainda ir-se hoje para Brasília e voltar-se, daqui a três anos, com cem milhões. A isto eu chamaria de "disciplina para fazer o fácil". A grande lucidez dos poetas estaria, por exemplo, neste verso de Fernando Pessoa: "Em tudo quanto olhei, fiquei em parte". A lucidez dos bêbados é difícil de defender, porque existem mil bêbados diferentes na humanidade. Mil que partem de dois: o bom e o mau. Ambos são lúcidos e, se um desagrada, é porque sua natureza repele o estado angelical e luzente da bebedice.
O conhecimento incessante da verdade faz com que o homem caminhe para o anjo. Chegarão primeiro os que mais depressa conheceram ao seu semelhante, tanto quanto a si mesmo. Nunca foi impossível o exato conhecimento próprio. É necessária, porém, a coragem bastante, para que cada qual se veja e se pegue, se espie e se apalpe, em cada um dos seus mais íntimos espaços físicos e morais. Que as constantes feiúras a encontrar não nos retraia os olhos (no caso, o sentir) e as mãos. Depois, será mais fácil conhecer-se o próximo. E depois, então, mesmo que se minta, só se saberá da utilidade e do consolo da verdade. Faltará ânimo para o fingimento e a fuga, quando acreditarmos em que ninguém engana ninguém e em que somos capazes de conhecer o próximo, desde o instante inicial do primeiro conhecimento.
A sintomatologia do mal é evidente e constante. O homem mau ri errado. Por isso, deve-se viver em multidão. Falar e rir em coro, andar e parar em batalhões. Viver entre os que, simplesmente, estiverem vivendo. A vida coral nos alivia da obrigação do êxito, do êxito que é casual (e verdadeiro) ou é fabricado e cínico. Desconfiai dos feitos que são repetidamente comemorados com jantares e missas de ação de graças!
É esta uma simples canção de fim de ano. Escrevia, confessando-me e comprometendo-me em cada uma das minhas pequenas descobertas. Se não atingi, rondei mais das vezes a insolente verdade dos homens e das coisas. Em vez disso, escreveria uma crônica de Natal... Mas, em tudo o que eu dissesse do Nascimento de Cristo e fraternidade humana, correria o erro constante de repetir: "Natal, Natal, bimbalham os sinos...".
14/12/1956
O texto acima foi extraído do livro "Com vocês, Antônio Maria", Editora Paz e Terra - Rio de Janeiro, 1994, pág. 134.
Antônio Maria Araújo de Morais nasceu no Recife, em 17 de março de 1921, filho de Inocêncio Ferreira de Morais e Diva Araújo de Morais. Junto com os irmãos Rodolfo, Maria das Dores, Consuelo, e inúmeros primos, teve uma infância feliz, conforme se depreende de suas crônicas sobre os bons momentos desfrutados, nessa época, em sua terra natal. Nelas nos conta sobre a mãe carinhosa, os tempos de colégio, as aulas de música, as lições de francês, os mergulhos no rio e os "banhos salgados", as férias na usina Cachoeira Lisa, deixada por seu avô materno, Rodolfo Araújo. (...) Seu primeiro emprego, aos 17 anos, foi o de apresentador de programas musicais na Rádio Clube Pernambuco. Vencido o primeiro degrau, no ano de 1940, mês de março, vem para o Rio a bordo do Ita "Almirante Jaceguai", "com quatro roupas novas e cinco contos no bolso", para ser locutor esportivo na Rádio Ipanema. Ficou pouco tempo no Rio — 10 meses — sem ser notado. Passou fome, foi humilhado e preso. Retornou ao Recife e se casou, em maio de 1944, com Maria Gonçalves Ferreira. Logo muda-se para Fortaleza, tendo ido trabalhar na Rádio Clube do Ceará. Depois de um ano vai para a Bahia como diretor das Emissoras Associadas, tendo ali conhecido e feito amizade com Di Cavalcanti, Dorival Caymmi e Jorge Amado. Volta ao Rio de Janeiro, em 1947, já com dois filhos, Rita e Antônio Maria Filho, como diretor artístico da Rádio Tupi. Convocado por Assis Chateaubriand foi o primeiro diretor de produção da TV Tupi, inaugurada em 20 de janeiro de 1951, tendo trabalhado também como cronista de O Jornal. Durante mais de 15 anos escreveu crônicas diárias. Assinou, até 1955, as colunas "A noite é grande" e "O Jornal de Antônio Maria", nesse diário. No jornal O Globo manteve, por pouco tempo (início de 1959), a coluna "Mesa de Pista", tendo então se transferido para a Última Hora. Ali voltou a assinar "O Jornal de Antônio Maria" e "Romance Policial de Copacabana", esta última com crônicas e reportagens. Graças ao dinheiro que o governo Getúlio Vargas despejou em troca de apoio político, no fim de 1952 a rádio Mayrink Veiga partiu para o ataque contra a Tupi e passou a contratar seus grandes nomes. Antônio Maria foi um dos primeiros contratados, por 50 mil cruzeiros, o mais alto salário do rádio no Brasil. Com Paulo Soledade, assinou alguns shows na boate Casablanca e, em 1953, chegou a subir toda noite ao palco do Night and Day, no Edifício Serrador, localizado no centro do Rio, para apresentar "A Mulher é o Diabo", revista de Ary Barroso. Era um homem de 7 instrumentos, como se dizia.(...) Autor de jingles comerciais em parceria com Geraldo Mendonça e com o Maestro Aldo Taranto, acabou compondo letra para um samba que falava numa "poltrona surrada / um cigarro apagado / só nós dois e mais nada..." Não fez sucesso, mas pouco depois compôs um frevo, que foi o primeiro de uma série de cinco, chamado Frevo nº. 1 do Recife, gravado pelo Trio de Ouro em agosto de 1951. Nesse mesmo ano, com Fernando Lobo, compõe o samba Querer Bem, gravado por Aracy de Almeida. No ano seguinte duas gravações na voz de Nora Ney se transformam em grande sucesso na programação das rádios brasileiras: Menino Grande e Ninguém me ama. (...) foram seus parceiros, entre outros: Fernando Lobo, Moacyr Silva, Vinicius de Moraes, Zé da Zilda e Reynaldo Dias Leme. Alguns dos intérpretes de suas músicas: Nora Ney, Dolores Duran, Elizeth Cardoso, Lúcio Alves, Doris Monteiro, Jamelão, Ângela Maria, Aracy de Almeida, Agostinho dos Santos, Dircinha Batista, Luiz Bandeira e Claudionor Germano, além de Nat King Cole, que gravou Ninguém me ama e Tuas mãos. Antonio Maria, cardiopata desde a infância, faleceu fulminado por um enfarte do miocárdio na madrugada de 15 de outubro de 1964, em Copacabana, quando se dirigia para o Le Rond Point; mesmo tendo sido socorrido por amigos que o viram cair e que se encontravam na boate O Cangaceiro, em frente daquele restaurante. Bom de copo e de garfo, Maria se auto-intitulava "cardisplicente", uma mistura de cardíaco com displicente. Profissão: Esperança.
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