terça-feira, 4 de dezembro de 2007

QUARTA VIA

(Do site do repórter Geneton Moraes Neto onde você pode encontrar outras entrevistas interessantes. Selecionei a de Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas)
Aos leitores mais jovens, um pouco da nossa história; aos menos jovens, a releitura de um tempo que vivemos.

FRANCISCO JULIÃO
UM DEPOIMENTO PARA A HISTÓRIA : O HOMEM QUE AGITOU OS CANAVIAIS


Francisco Julião revela os planos de Ernesto Che Guevara para chegar ao Brasil – A conversa entre os dois em Cuba – A autocrítica do criador das Ligas Camponesas – A confissão que Miguel Arraes fez a ele na prisão, em 1964 – Um padre católico é o guru de Arraes! – Por que Fidel Castro ficou fascinado por Jânio Quadros – A luta para reunir Miguel Arraes e Leonel Brizola no exílio – Por que Arraes não quer se aproximar de Brizola – A queixa de Julião contra João Goulart – A ascensão e queda das Ligas Camponesas.
Francisco Julião (Bom Jardim, Pernambuco, 16/02/1915) cumpriu uma penitência, por livre e espontânea vontade: durante quinze anos, entre 1940 e 1955, peregrinou pelos canaviais da zona da mata de Pernambuco usando a lei para defender camponeses. Era advogado. Tinha feito uma escolha. Não queria gastar energias defendendo poderosos. A penitência, ele sabia,”não dava dinheiro nem voto. Mas fui". O resto é história.
Transformado em líder das célebres Ligas Camponesas, Julião ganhou fama de santo entre os sem-terra. Aos olhos de quem o combatia, era o diabo em pessoa. Chamavam-no de agitador, incendiário, comunista, Julião agradece o título de "agitador". É e sempre foi. "Mas dentro da lei". Afinal de contas - diz ele - "até remédio você precisa agitar antes de usar”... E só ler a bula. A primeira instrução é: “Agite antes de usar". Comunista nunca foi. “Minhas divergências com os comunistas permanecem até hoje ". O que pouca gente sabe é que Julião é um dos fundadores do Partído Socialista Brasileiro, ao lado de Otávio Mangabeira.
Quando veio o primeiro de abril de 1964, Francisco Julião estava na Câmara dos Deputados, em Brasília. Era deputado federal. Conseguiu ficar lá até o dia 7 de abril. Neste dia, pegou uma carona no carro de Adaucto Lúcio Cardoso, líder da UDN. Talvez para não assustar o motorista do carro, o líder da UDN escreveu em cima de um jornal e mostrou a Julião: "Está tudo perdido". Ali, a certeza de que o golpe não tinha volta, se corporificava na forma de três palavras rabiscadas numa folha de jornal.
A tarde estava caindo em Brasília, num crepúsculo de cartão postal. Adaucto Lúcio Cardoso olha para o céu e constata: "Ah, essa cidade deveria se chamar Belo Horizonte!”. Veio o estalo. Julião tomou ali, dentro do carro, a decisão de fugir para Belo Horizonte, disfarçado de camponês. Terminou preso. Sobral Pinto o defendeu. Ganhou um habeas-corpus. Ia ser preso de novo. Correu para o Rio de Janeiro; tentou, em vão, obter asilo nas embaixadas da Iugoslávia e do Chile. Conseguiu um lugar na Embaixada do México. E lá se foi para dezesseis anos de exílio, a maioria vivida em Cuernavaca. Quando voltou ao Brasil, em 79, trouxe um saco de terra do México. E também a fórmula do Elixir da Juventude.
Quem vê Julião não diz que ele nasceu em 1915. Já tem dois bisnetos. Não esperava chegar a tanto. Tinha uma enxaqueca terrível - que o perseguiu por quarenta anos, desde a adolescência. Já dera a batalha contra a enxaqueca como perdida. Um dia, o milagre. Em meio à Conferência de Puebla, no México - para onde tinha ido porque, exilado, queria ver de perto os bispos brasileiros – esbarra com um jesuíta argentino chamado Alejandro.
Das mãos do jesuíta, saiu a fórmula criada por um bruxo sul-americano. Assim: primeiro, arranja-se meio quilo de alho. E meia garrafa de álcool etílico de 96 graus. Depois, é só colocar os dentes de alho no liquidificador e ir misturando com o álcool. O último passo: "Coloca-se esta emulsão em um frasco de vidro, onde deve permanecer durante quinze dias num canto. A partir do décimo sexto dia, deve-se tomar uma colherzinha da emulsão misturada em um copo de suco de fruta". A enxaqueca acabou. Julião, bisavô, ficou novo. Jamais deixou de beber a sagrada mistura.
O agitador Julião vem escrevendo, há anos e anos, um relato completo de tudo o que viveu. Cada vez que preenche um caderno com anotações, manda-o para o México. “Ninguém sabe o que pode acontecer amanhã neste País” – diz, para justificar tanto cuidado com o diário íntimo. Não é para menos. Em 1964, oficiais do Exército foram aos arquivos fotográficos dos jornais do Recife e recolheram toda a documentação que existia sobre Francisco Julião, Miguel Arraes e Gregório Bezerra. Onde andarão todas estas fotos? Agora, o 'Chico Julião' que um dia foi personagem nas páginas da revista 'Time" passa as mãos nos cabelos revoltos - que lhe dão um certo ar messiânico - e embarca numa viagem pelo tempo, ao encontro de figuras como Ernesto Che Guevara, Salvador Allende, Leonel Brizola, João Goulart, Miguel Arraes, Fidel Castro, Jânio Quadros e todos os personagens que cruzaram o caminho do advogado que saiu das terras do Engenho Galiléia para a história das lutas políticas do Brasil.
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Qual foi o sentimento do Francisco Julião líder das Ligas Camponesas em abril de 1964 quando soube que o governo tinha mudado de mão? Qual foi a extensão da frustração pessoal ?
Julião
: “A palavra frustração é pouco intensiva para exprimir este sentimento. Meu sentimento foi bem mais profundo. Era um sentimento de rebeldia e revolta, por ter sido interrompido bruscamente, pelas armas, com um golpe à Bonaparte, o processo de democratização popular do País. A Constituição foi rompida. E, o que é incrível, em nome da Democracia e da legalidade romperam-se a Democracia e a legalidade. Eu preferi, ali, permanecer no Brasil ao invés de buscar uma embaixada, apesar de saber que corria um grande risco. Então, lancei um manifesto no interior de Minas Gerais convocando o povo para a resistência armada. O manifesto caiu no vazio, porque ninguém estava, absolutamente, preparado para tomar as armas. Todos nós acreditávamos que as eleições de 64, em outubro, iriam se realizar. E todos estávamos preparados para enfrentar as urnas. Daí a razão por que caiu no vazio o meu manifesto com um apelo ao povo para que se unisse e defendesse a Constituição com armas na mão”.

O senhor faz alguma crítica, hoje, à atitude do ex-presidente João Goulart - que preferiu não resistir, segundo os historiadores, para evitar um derramamento de sangue?
Julião:
“Faço. O comportamento de Goulart foi débil. Não chamaria de pusilânime, mas diria que foi débil (fala em tom de lamento). João Goulart era um homem ambivalente: como populista, oscilava feito um pêndulo entre a direita e a esquerda e queria simultaneamente atender aos patrões e aos operários. Acabou entrando em choque com o próprio sistema que ele queria que não se interrompesse, apesar de proclamar a necessidade de reformas de base.
Não se preparou nem se preveniu para dar um sustentáculo mais forte ao programa de reformas de base. Faltou a ele mais decisão, coragem cívica e valentia frente aos golpistas. Ele tinha informações. O próprio Brizola - cunhado de Goulart - prevenia e até alguns oficiais que percebiam a mobilização dos que estavam mais à direita dentro do Exército preveniam Jango. Mas ele acreditava que nada iria acontecer e estava convencido de que depois da Campanha da Legalidade - em que o Exército se dividiu e afinal ele conseguiu chegar à Presidência da República com o apoio de Leonel Brizola, general Lott e das forças legalistas do País - fatos assim não iriam ocorrer. E, no entanto, ocorreram.
Não era a primeira nem a segunda nem a terceira vez que se tentava dar um golpe de direita no País. Considero que Jango cometeu um erro quando deixou a Presidência sem oferecer resistência”.

Havia condições reais de oferecer resistência? A grande interrogação que existe até hoje é esta: há os que dizem que havia condições; há os que dizem que não, não havia de modo algum. E o senhor, como personagem central dos acontecimentos de 64, o que diz?
Julião:
“Em escala bem menor, poderia se repetir o que houve em 1961, quando da luta pela legalidade democrática, iniciada no Rio Grande do Sul. Afinal de contas, João Goulart era o chefe supremo das Forças Armadas. E era dever de Goulart permanecer no Palácio lutando pelo mandato que o povo lhe concedera. Deveria ter seguido não o caminho de Getúlio Vargas, mas o caminho que Salvador Allende posteriormente adotou no Chile como presidente: preferiu sacrificar-se e oferecer resistência às forças armadas para defender o mandato, em vez de entregá-lo e aceitar simplesmente o exílio ou escapar ou fugir do País. Um presidente não pode desertar numa hora como aquela, porque o seu mandato é mais importante que sua vida”.

O escritor Antônio CaIlado - autor de um livro sobre as Ligas Camponesas - diz que a máxima aspiração de João Goulart era ser presidente do PTB - e não presidente da República. O senhor também tinha essa imagem de João Goulart? Ele não seria, segundo esses depoimentos, um homem talhado para a Presidência da República ...
Julião: “Goulart era, no fundo, um homem bom. Dotado de grandes ambições, não estava suficientemente talhado para atender a essas ambições que ele tinha pelo Poder. O que lhe faltava era convicção. Daí, a ambivalência e a facilidade com que se deixou apear do governo. Não era um bom gaúcho, como foi Vargas. Veja: Vargas não se deixou apear. A primeira vez sim, porque ele tinha um mandato que foi arrematado por um golpe. Mas quando ele recebeu um segundo mandato através do voto popular ele disse: “Do Palácio só me tiram morto”. Como estava só, preferiu o suicídio, o que é uma forma de resistência, no caso de Vargas. Sou contra o suicídio, mas ele deixou um manifesto que é um convite à rebelião do povo brasileiro em defesa do mandato que os trabalhadores lhe deram e uma denúncia em favor dos povos de Terceiro Mundo e contra a penetração docapital multinacional”.

Qual é a autocrítica que o senhor faz hoje ao célebre “Chico Julião” das Ligas Camponesas?
Julião:
“Naquele tempo, eu via os problemas do Brasil e da América Latina através das Ligas Camponesas, através do Nordeste, através da minha região conflitiva, atrasada e dominada pelas forças oligárquicas mais retrógradas. Hoje, tenho uma visão mais distinta, porque vejo Pernambuco, o Nordeste e o Brasil através do mundo - e não só do Terceiro Mundo mas do mundo industrializado e do campo socialista. A minha visão se universalizou.
É essa a primeira crítica que faço a mim mesmo: ter tido uma visão local, estreita e regional. É verdade que, num dado momento, essa visão local pode adquirir um sentimento universal. Mas em política não podemos usar essa expressão com tanta propriedade como se usa na Literatura e na Poesia...”.
Inclusive na poesia se diz que quanto mais local mais universal se é ...
Julião:
“Em política, você tem de adquirir uma visão bem mais ampla dos problemas e analisar as situações desde um ponto de vista global, para então tomar posições dentro de uma região determinada.
A segunda crítica que me faço é que por falta de tempo - uma vez que eu dava 48 horas por dia ao movimento das Ligas Camponesas - eu vivi um praticismo bastante acelerado. Eu deveria ter respaldado esse praticismo com mais conhecimentos teóricos, para corrigir as distorções que se davam dentro do próprio movimento, o que é normal dentro de um movimento popular ou um partido político. É também uma crítica que me faço: a falta de uma melhor base teórica para conduzir o movimento de maneira a cometer o menor número possível de erros”.

O senhor pode dar um exemplo concreto, na prática, de como essa visão “local, estreita e regional” se traduziu em atos?
Julião: “Hoje penso - o que é válido também para aquela época - que não podemos conduzir um país com a extensão territorial e a diversidade de situações sociais como o Brasil ... Por exemplo: aquilo que ocorre no Nordeste não é válido para o que acontece em São Paulo ou no Rio. Então, nossas alianças deveriam ter sido mais amplas.
Eu me ative tanto ao problema camponês que cheguei a entrar em choque até com pequenos e médios agricultores - que eram aliados naturais do movimento camponês! Então, os pequenos e médios agricultores, pelo temor de perder seus pedaços de terra - o que era bastante explorado pela imprensa burguesa -, buscavam aliança junto ao grande latifúndio. E o latifúndio é inimigo do pequeno e médio agricultor.
Ora, o latifúndio empresta, compromete e acocha para se expandir. Ao latifúndio não importa absolutamente que o pequeno e o médio agricultor percam as suas terras, desde que ele, o latifúndio, possa se alargar, para fazer não a cultura de subsistência, mas a cultura de exportação. Então, perdemos aliados importantes entre os pequenos e médios agricultores. Hoje, considero que estes pequenos e médios agricultores são aliados incondicionais e necessários para que se lute por uma reforma agrária no País e se melhore a situação do próprio camponês que não tem trabalho. Ando até com essa preocupação de unificar os pequenos e médios agricultores. Assim como as Ligas Camponesas acabaram forçando a criação dos sindicatos, considero que a união dos pequenos e médios agricultores pode levar o País ao cooperativismo”.

Há espaço hoje para a reativação das Ligas Camponesas ou os sindicatos rurais podem cumprir o papel que foi das Ligas até 64?
Julião: “A Liga Camponesa era parte da luta dos camponeses pela democratização do trabalho no campo e pela democratização da terra. Sempre tive essa visão. O camponês que nós buscávamos naquele tempo era o que arrendava a terra; não era o assalariado. Não havia sindicato. E sempre considerei que o sindicato era um passo bem mais avançado que a Liga, porque o homem que vende a força de trabalho tem mais consciência política do que aquele que arrenda um pedaço de terra e só encontra o senhor, o proprietário, para pagar a renda no fim de cada ano ou quando vai levar a parte que lhe corresponde no cultivo de uma dada lavoura.
Eu achava que essa gente iria inevitavelmente ser liquidada dentro de um processo de capitalização do campo. A Liga era um passo que poderia contribuir para conduzir até o sindicato. Então, falar em Liga agora é um retrocesso. O Sindicato pode perfeitamente cumprir as funções da Liga e ir além”.

Durante a fase negra da repressão, a figura do “Chico Julião” foi “satanizada”, como o senhor diz. Durante anos e anos houve uma contrapropaganda bem forte. A imagem do Francisco Julião para a geração mais nova é de um agitador que fazia marchas de camponeses sobre o Recife e queria a reforma agrária “na marra”. Qual é a imagem que o senhor gostaria que ficasse do Francisco Julião das célebres Ligas Camponesas?
Julião:
“A imprensa distorceu a minha imagem. Nunca saí da legalidade. Sempre utilizei o Código Civil e a Constituição para defender minhas idéias. Já naquele tempo eu sustentava a necessidade de uma “Revolução Francesa” no campo e achava que o Nordeste tinha ficado parado na história. O latifúndio no Nordeste utilizava ainda as sobrevivências feudais. E era preciso trazer o camponês para o processo de democratização da região. O camponês era utilizado como “besta de carga”, para usar a expressão de Engels. Sempre foi - durante toda a Colônia, todo o Império, toda a República. Sobre ele pesava a carga mais forte.
O que eu queria era libertá-Io dessa carga. Como não havia nenhuma forma de organização camponesa, surgiu a Liga - não das minhas mãos, mas de uma necessidade histórica. Houve um momento na história deste país que propiciou o surgimento da Liga. A imagem que eu gostaria que ficasse - e por ela continuarei lutando até o fim - é que fui um homem apegado à legalidade. Eu utilizava a legalidade para ir, pouco a pouco, unindo e organizando os camponeses. O que acontece é que toda vez que se une e se organiza o povo, ele próprio vai criando uma legalidade própria. Quer dizer: a legalidade é rompida pela legalidade, num processo democrático.
Se uma pessoa se conscientiza e verifica que a realidade em que ela vive é distinta daquela que ela pensava que era a realidade correta, ela trata de se libertar. Organização e unidade significam a ruptura de uma legalidade que historicamente já está morta. O que nós queríamos é que o latifúndio, com suas sobrevivências feudais, desaparecesse diante do avanço da sociedade brasileira para um mundo já industrializado”.

A imagem do senhor como uma figura demoníaca não foi criada somente pela imprensa: os próprios governos de depois de 64 tinham também interesse em criar esta imagem ...
Julião:
“Ainda hoje passam filmes em certos centros de estudos para manter esta imagem sobre mim, sobre Brizola e sobre Miguel Arraes, figuras que tiveram atuação marcante naquela época. Acontece que ninguém deve subestimar a capacidade crítica e a inteligência de um homem humilde e analfabeto. Os analfabetos também são capazes de pensar, porque são gente, são povo! Eu estou convencido de que hoje, com esse meu comportamento e com a visão que tenho dos problemas do Brasil através dos problemas do mundo, é mais fácil chegar ao pequeno e médio agricultor, à classe média e até ao empresariado nacionalista, aquele que quer que o Brasil defenda a soberania econômica, aquele que quer evitar o saque das multinacionais - que, inclusive, prejudicam seus interesses de classe como empresários brasileiros”.

Gregório Bezerra nos disse, num depoimento, que em 1964 Brizola era exaltado, Arraes era moderado e Julião era mais exaltado ainda. O senhor confirma?
Julião: “Gregório está equivocado. Naquele tempo, ele tinha uma posição legalista. O Partido Comunista defendia posições sumamente legais. Sua posição era um tanto irreal, porque chegava ao extremo de admitir que já estava no governo. Recordo bem a expressão de Luís Carlos Prestes. Quando se deu início à luta pelas reformas de base - e Prestes freqüentava o Palácio do Governo e se encontrava com João Goulart - ele chegou a admitir que já estava no poder. Ora, Prestes poderia estar no governo, ter uma parte do governo, mas não estava absolutamente no Poder, porque o PC continuava na ilegalidade!
O que houve foi uma distorção da minha imagem pela imprensa e, inclusive, por companheiros que, embora estivessem comigo numa só trincheira, tinham interesse em diminuir o volume do movimento que estávamos liderando. Gregório, a quem sempre respeitei pelo passado, pela tenaz resistência contra toda e qualquer forma de opressão, pelo comportamento e pelo heroísmo, estava a serviço de um Partido. Se o Partido dava uma meta, uma linha, uma ordem, ele tinha de cumprir.
O Partido Comunista cometeu erros em relação aos camponeses e à própria classe operária. Tinha uma visão distorcida dos problemas e da realidade nacional, porque se preocupava mais em transplantar do que em plantar. E esse tem sido o erro dos Partidos Comunistas em geral na América Latina. É a razão por que todos eles fracassaram. Até hoje nenhum Partido Comunista conseguiu fazer uma revolução socialista na América Latina.
As revoluções sempre saíram de outros movimentos. Fidel Castro não era comunista quando desabou da Sierra Maestra, derrubou Batista e implantou uma sociedade socialista em Cuba. Assim tem ocorrido em todo o Continente, precisamente porque, apesar de se proclamarem marxistas, não analisavam as situações concretas dos países em que atuavam como partidos”.

O senhor teve um encontro com Fidel Castro em que ele fez referência ao governo de Jânio Quadros. O que é que ele disse a respeito do Brasil?
Julião: “Jânio Quadros é um homem tão astuto que foi capaz de enganar o próprio Fidel Castro ... Até Fidel Castro foi enganado por Jânio Quadros! Quando eu estive em Cuba, percebi que Castro ficou empolgado com a figura de Jânio Quadros. Acontece que Jânio Quadros tinha feito um discurso magnífico ao pé do monumento de José Martí na Praça da Revolução e, desde então, Castro guardou esta visão de Jânio. Custou um bocado para que essa visão fosse prescrita da mente de Fidel Castro...
Durante algum tempo, ele permaneceu convencido de que Jânio era um homem que poderia ter contribuído para uma transformação mais profunda da sociedade brasileira. Jânio era esse homem capaz de condecorar Che Guevara porque estava com raiva de Carlos Lacerda. É, portanto, um homem passional, emotivo, inesperado e esquizofrênico. Coisas assim acontecem com estas figuras.
Admito que Fidel Castro depois modificou inteiramente seus pensamentos sobre Jânio Quadros. Não basta tomar uma condecoração, chamar um homem como Che Guevara e condecorá-lo. Isso foi uma provocação de Jânio e até contribuiu para acelerar o golpe neste País. Jânio talvez tenha sido o tipo mais responsável pelo aceleramento do desencadeamento do golpe de 1964”.

O senhor, pessoalmente, contribuiu para que Fidel Castro mudasse a imagem que ele tinha de Jânio Quadros?
Julião:
“A própria dinâmica da história, os fracassos dos movimentos guerrilheiros no Continente e a ampliação da visão de Castro em relação ao mundo... Porque ele também via o mundo através de Cuba; hoje é que ele vê Cuba através do mundo. Tudo, então, contribuiu para que ele chegasse ao ponto de ir à Nicarágua, como foi, depois da vitória da revolução nicaragüense, para dizer aos sandinistas que eles estavam certos quando defendiam o pluralismo democrático e a existência de mais de um partido político; que lamentavelmente Cuba não pôde seguir por este caminho mas que eles deveriam preservar este pluralismo.
Castro modificou a visão que tinha em relação ao Continente e em relação à própria Cuba. Hoje, a grande preocupação de Castro é fazer com que o Terceiro Mundo se unifique, apesar das divergências dos países que fazem parte dos não-alinhados, para que haja uma melhor coordenação na luta contra o imperialismo econômico".

Já que o senhor diz que tem hoje uma visão mais universal, existe, então, algum país que o senhor cita como modelo político para o Brasil?
Julião
: “Não há nenhum modelo que se possa aplicar ao Brasil. Cada povo e cada país tem de construir um modelo próprio. O Brasil terá de buscar entre suas raízes históricas - com seu povo e sua realidade - o modelo adequado para poder desenvolver a sociedade e chegar ao socialismo”.

Moreno?
Julião
: “O socialismo moreno é um socialismo baseado nas raízes históricas deste país, de acordo com suas realidades, seus problemas e cultura. É o que Brizola quer. Quando ele fala em “socialismo moreno”, ele dá, em primeiro lugar, um grande realce às populações negras e mestiças do Brasil; reconhece que o Brasil é um país de negros e mestiços. E o socialismo tem de ser moreno no Brasil porque a maioria da população é morena”.

A imagem das figuras que estavam no centro do palco em 1964 vai ser talhada pelos livros de História; os historiadores se encarregarão desta tarefa. Mas eu gostaria de um depoimento pessoal do senhor, a partir das experiências vividas pelo “Chico Julião”, sobre - para começar - o Miguel Arraes governador. O senhor foi companheiro de cela de Miguel Arraes logo depois do golpe. Qual foi a imagem que ficou do Arraes governador, para o senhor?
Julião: “O Arraes que conheci como governador era nacionalista. Ele defendia as teses que Getúlio Vargas defendia. A sensação que tenho é que Arraes quis ser uma espécie de Getúlio Vargas do Nordeste. Quis ocupar esse espaço e o grande vazio que, deixado por Vargas, não foi ocupado até hoje. É possível que Brizola, homem que já entrou na idade da razão e voltou ao Brasil com um projeto bem mais inteligente e exeqüível, chegue a ocupar este espaço e dê uma maior dimensão ao pensamento de Vargas.
Arraes pretendeu ocupar. Mas acontece que Arraes é um homem do Nordeste, nascido numa cidadezinha do interior do Ceará e com uma visão bem mais localista e sertaneja. Com o exílio, ele avançou demais. De nacionalista, passou a ter uma visão de movimentos de libertação; movimentos armados. Talvez porque ele tenha ido para a Argélia e ficado na África. E a África é um continente em que as lutas políticas e sociais são bem distintas das lutas políticas e sociais da América Latina.
Nós começamos nossa luta de independência no início do século passado. E somente depois da Segunda Guerra Mundial é que a África começou seus movimentos de independência, já aí recorrendo à luta armada. A independência política da África se dá simultaneamente com a independência social e econômica. Os métodos que devemos aplicar na América Latina são distintos, porque somos um continente mais avançado que a África. Somos um continente em que há países já bastante industrializados; é o caso da Argentina, Brasil, México. E aí o processo adquire mais complexidade.
Creio que se Arraes tivesse permanecido como exilado num país da América Latina teria uma visão que coincidiria com a minha e a de Brizola. E aí teria sido bem mais fácil uma aliança com ele. A dificuldade é de enfoque. De qualquer modo, penso que no dia-a-dia, na medida. em que ele vá percebendo que não pode absolutamente trazer uma fórmula da África para o Brasil - mas sim uma fórmula que deve ser criada dentro do nosso país -, é possível que possa surgir uma aproximação.
Mas até agora tenho encontrado bastante dificuldade em fazer uma aproximação entre Arraes e Brizola. Atuei nos últimos anos como uma espécie de algodão entre cristais, na tentativa de aproximar os dois, por reconhecer que ambos têm liderança no país. Tenho sentido que, na medida em que Brizola cresce, Arraes como que vai se apagando, como uma estrela que vai para o ocaso. É o que tenho observado. E ele precisa corrigir. De outra forma, pode perder-se”.

Qual foi a primeira tentativa que o senhor fez no exílio para aproximar Miguel Arraes e Leonel Brizola?
Julião: “A primeira tentativa que fiz para aproximar os dois foi meses depois da chegada ao exílio. Em 1966, fui à Argélia com essa preocupação. Sempre tive ligações estreitas com Brizola e Arraes. Talvez eu tivesse até mais coincidências com Arraes do que com Brizola. Eu tinha mais afinidades com Arraes. Em Brizola, eu via o condutor, o homem audaz e com bastante capacidade de aglutinar forças e conduzi-las. Arraes é um homem mais desconfiado.
Eu sempre dizia a ele: “Você às vezes me lembra um cacto. A gente olha, você está sempre se defendendo, cercado de espinho por todo lado. Eu sei que existe uma flor dentro de você. Mas ai de quem queira meter a mão para agarrar esta flor, porque fura os dedos...”
Já Brizola é o homem do Pampa e das largas caminhadas, capaz de repartir um churrasco com o inimigo. Ele tem essa virtude: é um homem mais cordial, aberto e expansivo. Arraes lembra algo do jagunço; é cerrado. Você não arranca facilmente um pensamento de Arraes. Ainda hoje é assim. Quando você se aproxima de Arraes, ele se prepara e se previne”.

O senhor tem também esta dificuldade? Eu pensei que era só dos repórteres que trabalham na cobertura política ...
Julião:
“É de todo mundo. Os próprios companheiros que estão próximos de Arraes têm dificuldade. É um pouco esfinge. A gente tem de decifrar o pensamento de Arraes, porque ele não se deixa decifrar. Para um político, pode ser bom e pode ser péssimo. Tanto que se vê: Arraes não gosta de figurar em um partido político. Nunca passou pela cabeça de Arraes fundar um partido político, sequer. Toda vez que ele participou de um partido político o fez apenas para ter uma sigla onde se eleger. Já pertenceu a todos os partidos políticos deste país!
Arraes gosta de frentes. Não é por acaso que foi para o PMDB. Não é por acaso que suas eleições sempre se deram em função de frentes. Ele era frentista quando foi prefeito do Recife; era frentista quando foi governador de Pernambuco e agora, como deputado, ainda é frentista.
Desconfio que Arraes nunca virá a fundar um partido ou a participar de um com um programa claro, uma ideologia, uma doutrina, uma filosofia. Ele é homem de frente e enigmático. Não gosta que conheçam o que pensa. Há quase vinte anos tentei a primeira aproximação entre Arraes e Brizola e não foi possível”.

Qual era, então, o argumento de Miguel Arraes para não se aproximar de Brizola?
Julião:
“Arraes acha que Brizola era um homem que não reunia as condições para poder participar de um movimento em que ele se engajasse. O que sempre houve, no fundo, foi uma competição, porque os dois foram as duas maiores lideranças que surgiram com a possibilidade - até - de chegar à presidência ou à vice-presidência da República. Havia, então, uma disputa.
O comportamento de Brizola tem sido bem mais modesto em relação a Arraes. Quando Willy Brandt, o ex-chanceler da Alemanha Federal, convidou-o a ir à Alemanha, porque queria conhecer o pensamento de Brizola, antes da anistia e da abertura, Brizola teve o cuidado de ir à Europa e, antes de seguir para a Alemanha, mandou convidar Arraes, para que o acompanhasse.
Brizola disse: “Eu gostaria que você participasse desse encontro. Você está mais informado sobre o que se passa na Europa, porque vivi a maior parte do meu tempo no Uruguai e estou chegando via Estados Unidos. Você poderá se encontrar comigo, para a gente fazer esta conferência”. Arraes foi. E colaborou. As perguntas que Brandt formulava a Brizola eram respondidas pelos dois, numa demonstração de que Brizola estava interessado na aproximação com Arraes.
Depois, fui à Argélia duas vezes, tentar a aproximação. Por último, com o próprio Brizola, quando nos reunimos em Lisboa, tentamos por telefone que Arraes viesse participar do encontro - com absoluta independência - e ver os amigos que tinham vindo do Brasil para a reunião de cerca de 150 brasileiros. Teria direito a voz, se quisesse falar. Se não quisesse, ficaria como simples observador. Arraes não aceitou e não veio.
Achava que uma aproximação com Brizola não tinha sentido, porque Brizola vinha para o Brasil para dividir as forças de oposição. É a arma que ele sempre utilizou. Tanto é que, quando houve o fracasso na fundação do PIB, eu fui informado de que um dos homens que mais exultaram com a derrota de Brizola foi Arraes. Ficou feliz. Quando surgiu o PDT tentei mais uma vez, fui várias vezes à casa de Arraes no Recife e disse: “Vá pelo menos dialogar com este homem. Ele quer conversar contigo. Se você fala com todo mundo, por que não pode falar com Brizola?”. Houve um momento em que ele aceitou. Mas, afinal, como jagunço desconfiado, retrocedeu. E fez o que é de Arraes: ficar na retaguarda, na reserva, observando. Isso é do temperamento e do caráter de Arraes. Temos de assimilá-lo assim.
Meu comportamento foi sempre esse, nos nossos meses de cadeia: aberto, comunicativo e tratando de descobrir coisas de Arraes, em quem reconheço um homem de qualidades, um bom chefe de família, bom irmão, bom filho e bom pai. É um homem que, para o clã, é magnífico. Mas fica agarrado ao clã. Ele necessita - inclusive - de formar em torno de si um clã político. Não se abre. E faz algumas concessões quando verifica que conta com a absoluta lealdade de quem se aproxima. Qualquer crítica que se faça a Arraes, ele recebe sempre com uma certa desconfiança. Para esta fase em que estamos entrando, no Brasil, seria necessário que ele se abrisse mais, expusesse melhor o pensamento e não ficasse simplesmente nos enigmas”.

Que idéia exatamente o senhor tinha quando tentou aproximar Arraes e Brizola ainda no exílio: voltarem os três juntos - Julião, Arraes e Brizola - para criar um partido forte?
Julião:
“Teria sido proveitoso. A união entre os dois poderia ter dado um avanço bem maior à consolidação da democracia no Brasil. Fico pensando que ainda é possível. Sou homem de esperança; nunca perco a esperança de uma aproximação entre os dois. Sempre que houver uma oportunidade me esforçarei, embora reconheça a dificuldade de trazer Arraes. Brizola é mais fácil, porque sempre se dispõe ao diálogo. Como eu digo: Brizola é o Pampa; Arraes é o mandacaru do Cariri”.

Como é que o senhor define ideologicamente Miguel Arraes?
Julião:
“Tentei descobrir, na prisão, o pensamento, a ideologia e a filosofia de Arraes. Sempre me confessei marxista. Aderi ao marxismo aos dezenove anos. Era o melhor instrumento ideológico pa:ra interpretar a sociedade, o homem, a natureza e o mundo. Então, perguntei a Arraes: “Seu comportamento me leva a crer que você é um marxista ...”. Ele disse: “Pois você está equivocado. Não sou marxista”. E eu: “O que é que você é, afinal de contas?”. Então, ele me contou que era chardinista, seguia Theillard de Chardin, o teólogo avançado da Igreja.
A obra de Chardin continua lá guardada, para ser estudada. Chardin tem idéias interessantes, chega a admitir a possibilidade de um encontro entre a Ciência e a Religião. Toda a luta de Theillard de Chardin é mostrar que não existe incompatibilidade entre o pensamento científico e o pensamento místico-religioso. Arraes disse que se considerava próximo de Theillard de Chardin.
Arraes tem sofrido influência da Igreja e se ligado aos grandes da Igreja. O Cardeal da Bélgica naquele tempo, em 1964, era um homem com quem Arraes mantinha correspondência. E essa gente deve ter influenciado também para que os laços entre a Igreja e Arraes se estreitassem.
É algo que, acredito, continua a predominar na figura de Arraes. E aí predomina - de novo - o clã. Ele obedece um bocado. A mãe, a irmã e a mulher têm uma influência grande sobre ele. Arraes é fllho único; varão numa família de oito. Então, sempre foi envolvido por esta aura. É até bonito que a mulher tenha uma certa predominância na vida de Arraes, porque as mulheres, quando têm consciência política, são bem mais conseqüentes que os homens. A gente tem de lutar um bocado no Brasil para que a mulher se incorpore às lutas políticas e sociais deste país. Porque, na medida em que elas se incorporem, daremos passos mais avançados no sentido da transformação da sociedade brasileira”.

É interessante esta revelação que o senhor faz sobre a predileção de Arraes por um teólogo. E a primeira vez que alguém diz. O que é que atraía Arraes na obra de Theillard de Chardin?
Julião: “Como eu conhecia o pensamento de Chardin - ele também - nós não discordamos. Eu quis, naquele momento, descobrir Arraes e saber se ele era materialista ou idealista. Ele escapou por este caminho: nem materialista nem idealista. Isso é bem de Arraes. Quando Theillard de Chardin prega a necessidade de um encontro inteligente entre a Ciência e a Religião, dá um passo tão avançado no sentido de uma Igreja moderna e científica que ainda não foi tirado do socavão das bibliotecas do Vaticano para figurar como teórico da religião católica. Arraes está bem a cavalheiro quando diz que é Theillard de Chardin, porque encarna esta visão”.

Qual foi a pior notícia que o senhor recebeu do Brasil no exílio?
Julião: “Todas as notícias que eu recebia do Brasil eram péssimas. Eram notícias de que se torturava, se assassinava; a perseguição era constante e qualquer movimento que surgia para fazer com que o Brasil retomasse à democracia era esmagado de forma violenta. Sempre foram péssimas as notícias. Eu não seria capaz de distinguir uma entre elas. A notícia que mais me doeu no exílio foi o assassinato de Salvador Allende. Doeu bem mais que a morte de Che Guevara.
Eu senti um bocado a morte de Che Guevara porque tinha admiração por ele, cheguei a conhecê-lo e a tratá-lo pessoalmente em Cuba, quando ele era ministro da Indústria. Mas minha aproximação pessoal e minhas afinidades eram maiores com Salvador AIlende. Ele chegou ao poder no Chile e inaugurou um processo socialista na legalidade, com a Constituição na mão. Minha afinidade vem daí. Era uma experiência fabulosa: um homem conseguir, através do voto, instituir uma sociedade socialista.
O sacrifício e o assassinato de Salvador AIlende me doeram. Eu estava ligado efetivamente a Salvador AIlende. Ele era do Partido Socialista; eu também era. Sempre que ele passava no México me visitava. Ia até a minha casa e dialogávamos. Allende acreditava que estava inaugurando no Chile algo tão extraordinário para o mundo que, se vingasse, poderia ser a fórmula para a chegada ao socialismo sem precisar de uma grande convulsão e do uso das afinas e da violência”.

O que é que mais marcou o senhor nos contatos com Che Guevara?
Julião: “Numa de minhas visitas a Cuba, recebi um convite para visitar Che Guevara no Ministério da Indústria. Ele trabalhava de noite; passava toda a noite trabalhando. Sempre com a “bomba” perto, para aspirar, porque sempre tinha ataques de asma. Era como se fosse um chimarrão gaúcho. A “bomba” de Che Guevara lembrava um chimarrão. Eu fui convidado daquela vez porque a mãe de Guevara, Dona Célia, esteve no Recife e eu a recebi, como deputado estadual, no Centro Cívico-Literário Monteiro Lobato, no bairro da Iputinga. Tive a oportunidade de saudá-Ia.
E aí houve um negócio desagradável: quando me levantei para saudá-Ia, diante de uma massa imensa, alguém jogou uma bomba. Resultado: a bomba tocou na quina da janela e explodiu. Um negócio tremendo, gente ferida. O camarada que jogou foi embora. Era um terrorista. E esta mulher ficou impassível, sentada, enquanto todo mundo saltava as janelas, naquele pavor do estampido da bomba. Então, eu - que ia fazer um discurso detalhando a vida de Dona Célia e a influência que ela teve - levantei-me, tomei o microfone e limitei-me simplesmente a dizer, depois que se restabeleceu a ordem e desapareceu o pânico: “Senhores e senhoras, aqui está a mãe de Che Guevara!”. Fiz ali o discurso mais curto que já se fez na vida de um político.
Ficou influenciada por este episódio. Contou tudo a Che Guevara - e ele me chamou para falar sobre o Brasil e a América Latina. Só depois de alguns anos, quando ele já entrava na luta, é que eu percebi o sentido de suas perguntas. Ele perguntou um bocado sobre o Mato Grosso e sobre as fronteiras com a Bolívia. Queria saber o que era e como era o Mato Grosso. Queria saber quais eram os rios mais caudalosos, se tinha grandes florestas, quais eram as lideranças mais importantes. Guevara perguntou também se eu conhecia algum líder destacado no Mato Grosso, gente ligada às esquerdas. Quando eu já estava no México, exilado, tomei conhecimento de que ele estava na Bolívia, na guerrilha...
Nosso encontro se centralizou sobre estas questões: a América Latina, as lutas sociais, o Brasil, as fronteiras e a recordação da passagem pelo Recife. Sua mãe tinha lhe relatado. Mas foi um encontro afetuoso”.

Che Guevara fez referências aos projetos de criar vários Vietnãs na América?
Julião:
“Não. Isto surgiu depois. Ele fez referências geográficas ao Brasil e, no entanto, não relacionei com nada. Só depois é que percebi qual era o sentido de suas perguntas e, talvez, a razão principal do convite que ele tinha me feito. Não era um convite sentimental ...”

Era um convite prático, ele já pensava na possibilidade de fazer guerrilhas na América Latina ...
Julião:
“Era um convite prático...”

Que tipo de curiosidade Salvador AIlende tinha em relação aos problemas políticos do Brasil?
Julião: “A gente conversava sobre a América Latina. Sempre que nos encontrávamos era para falar sobre o desenvolvimento de uma estratégia latino-americana contra a penetração das multinacionais. A preocupação de Allende era libertar o Continente das garras do imperialismo econômico. Ele traduzia “imperialismo econômico” por multinacionais. Num grande discurso que fez na ONU, ele tratou de identificar perfeitamente bem o papel das multinacionais no imperialismo. Ele quis separar o povo norte-americano das grandes multinacionais, porque achava que o imperialismo eram as grandes multinacionais - e não o pensamento do povo norte-americano. Allende era um homem inteligente, distinguia perfeitamente bem. Como tinha uma visão bem mais ampla que o próprio Che Guevara, ele teve mais impacto. A Europa sentiu a morte de Salvador Allende como se fosse, mais do que um acontecimento latino-americano, um acontecimento europeu”.

Já Che Guevara, depois do episódio da bomba que botaram no dia da recepção a Dona Célia Guevara, deve ter ficado com medo do Recife ...
Julião: “Ele fez referências a este episódio com um sorriso. Eu narrei minha admiração pela serenidade com que Dona Célia recebeu aquele impacto”.

Já que nós estamos falando sobre suas experiências com Che Guevara e com Salvador Allende: existe uma canção anarquista italiana que diz que se devem mandar flores para os rebeldes fracassados. Para que rebelde fracassado o senhor mandaria flores no Brasil?
Julião: “Para todos. Todo rebelde, sobretudo quando tem nas mãos uma bandeira que se identifica com as aspirações mais profundas de um povo, merece e rosas”.

Como é o Brasil com que o senhor sonha?
Julião:
“O Brasil dos meus sonhos é um Brasil socialista. Um Brasil em que nossas riquezas possam beneficiar toda a população brasileira. O Brasil é tão rico, é tão grande, tão vasto, tão belo e tem um povo tão cordial, afetivo e carinhoso que não merece o que está aí. O que este povo merece é ser dono deste país e participar de toda esta grandeza. Nós – e sobretudo vocês, os jovens - temos a grande responsabilidade de conduzir o processo de transformação da sociedade brasileira em uma sociedade justa e igualitária, em que nós não vamos necessitar tirar de ninguém - mas dar. O Brasil tem tudo para dar. Não precisa tirar de ninguém. É tão grande, tão rico, tão potente e tão extraordinário este país que a gente pode dar.
E não só dar aos brasileiros, mas a outros povos que vivem em situação mais angustiosas e apertadas, sem possibilidade de se desenvolverem por falta de solo adequado e riquezas minerais. Nós podemos dar a nós e, ainda, oferecer algo aos demais povos. Meu sonho é este: ver um Brasil e uma América Latina socialistas, sem fronteiras, em que a gente não tenha necessidade de utilizar o passaporte, mas apenas a simples identidade de uma nação em relação a outra. Se sou brasileiro, posso chegar ao Chile com minha carteira de brasileiro. E um chileno pode chegar ao Brasil sem encontrar dificuldade nas fronteiras. Eu sonho com este mundo. Um mundo socialista, fraternal e igualitário, em que o homem não sinta a angústia de viver, mas sim a necessidade de realizar-se como ser humano".

(1983) Posted by geneton at junho 9, 2007 11:45 PM
Fonte: http://www.geneton.com.br/archives/000209.html

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