quinta-feira, 6 de novembro de 2008

CRISE FOI ÀS URNAS NOS EUA


A política ficou maior que o mercado. Até quando?

O sonho americano perdeu o crédito bancário e foi buscar amparo nas urnas: os norte-americanos elegeram Barack Obama com a responsabilidade de tornar a política maior que o mercado. Sobretudo, maior que os interesses condensados pela agenda neoliberal predominante no país e no mundo nos últimos 30 anos e que agora se esfarelou.
Redação - Carta Maior


Barack Obama não é Roosevelt. O mundo de hoje não é o de 1929. Os EUA não são a mesma sociedade dos anos 30. Naquele momento, sindicalistas, liberais de esquerda e um movimento comunista internacional ascendente emparedaram os dirigentes do Partido Democrata impondo-lhes um programa de recorte progressista para superar a depressão econômica que se arrastou por quase 12 anos e jogou 25% da força de trabalho dos EUA no desemprego. Mesmo assim a roda da história só girou de fato quando Roosevelt mobilizou os EUA, em 1942, para lutar na II Guerra mundial, acionando um poderoso programa de encomendas à indústria bélica.

Hoje , porém, o grau de insatisfação é equivalente, porque a desilusão atingiu uma intensidade proporcional à exuberância consumista - recheada de endividamento familiar, individualismo, nacionalismo bélico e desemprego - muito maior hoje que o padrão dos anos 30.

A equação que desafia Barack Obama contém doses insuspeitas de esperança ao lado de um caldeirão fervente feito de revolta, duas guerras, pobreza crescente, desemprego e ódio incontido.Para preservar a margem de manobra que lhe foi dada pelas urnas, Barack Obama terá que ir além de suas convicções e dos interesses que sustentam o poder nos EUA. Só assim seu governo será capaz de reinventar a história. Seu grande aliado nesse momento é a urgência e a profundidade da crise que bate na porta de milhões de lares norte-americanos. Alguns dados:

Endividamento, fracasso e medo.

Em 1984 os norte-americanos poupavam 10% de sua renda; hoje, a taxa de poupança de 34 milhões de famílias é negativa entre 13% e 40%. Elas usaram o patrimônio (a casa) como ativo para financiar gastos correntes incorporando-se assim à ciranda da especulação financeira que implodiu. A crise das subprimes derrubou o preço dos imóveis que valem menos que a dívida contraída ao hipotecá-los. O eleitor que escolheu Obama amarga o pesadelo de equilibrar as contas e cortar gastos. Esse é o chão duroque pavimenta o caminho do sucessor de Bush Jr.

Radiografia de perdas e danos

O consumo das famílias responde por 70% do PIB norte-americano. Nos últimos anos, cresceu à razão de 3% ao ano, sem que tenha havido poupança, apenas expansão do endividamento. O patrimônio familiar nos EUA divide-se em: os imóveis representam 32% do total equivalendo a US$ 21,5 trilhões; 6% são formados por bens duráveis e cerca de 62% de ativos financeiros (ações, fundos etc). Do passivo total, 73,1% (ou quase US$ 11 trilhões) são de crédito imobiliário e 18%, crédito ao consumo.

Desemprego e desigualdade

A participação dos salários na renda dos EUA está no nível mais baixo dos últimos dez anos. No segundo governo Bush, a renda do trabalhador aumentou o equivalente a apenas 1/3 do aumento da produção. Entre os mais pobres a evolução foi ainda pior: crescimento de apenas 3% da renda entre 1989 e 2006. Hoje a renda média dos assalariados nos EUA é inferior a existente em 2000.

No caso dos ricos, ao contrário, houve um salto de 42% no período. Os milionários que formam 1% da população (os mais pobres representam 12,6%) viram seus rendimentos aumentarem nada menos que 75% desde 1989, sobretudo durante os dois mandatos de Bush.

Hoje, 20% dos norte-americanos mais ricos são responsáveis por 50%do consumo.

O salário mínimo nos EUA encontra-se congelado desde 1996.

A insatisfação latente com a fatura do neoliberalismo foi contornada até agora com a expansão explosiva do crédito e do mercado imobiliário. Ambos permitiram à classe média manter-se à tona penhorando a casa própria para inflar artificialmente seu consumo e o padrão de renda.

A crise fechou essa válvula de escape e vem agravar um sentimento de derrota e insegurança que pode assumir diferentes nuances políticas. Por enquanto, Obama conseguiu canalizar esses sentimentos com um aceno de esperança.

Fim das guerras? Como realocar soldados numa economia em crise?

A guerra do Iraque já matou mais de 650 mil civis no país e um número superior a três mil norte-americanos. Mas a guerra emprega 150 mil soldados apenas no Iraque, e outras dezenas de milhares no Afeganistão. As encomendas de guerra – gasto superior a US$ 1,5 trilhão este ano - têm mantido em atividade inúmeros setores industriais.

Abandono da rede de proteção social

40% dos norte-americanos não têm plano de saúde. Os democratas, pelo menos Hilary, Obama e Nancy Pelosi , presidente do Congresso, defendem a universalização do atendimento.

O Medicare - uma espécie de SUS - foi sucateado nas mãos do Estado mínimo de Bush. Austero com os serviços públicos e generoso com os lobbies, Bush deu à indústria farmacêutica o privilégio de fixar os preços dos remédios destinados à saúde pública, sem que o Estado tenha direito de contestar ou renegociar as tabelas.

A economia de gastos com o bem-estar social vaza abundantemente para a guerra. Estima-se em mais de US$ 2 trilhões o custo da guerra do Iraque até agora.

Fome no capitalismo mais rico do planeta

A fome atinge 35 milhões de pessoas nos EUA. Quem informa é o Departamento de Agricultura norte-americano. Significa que 12% dos norte-americanos vivem sob permanente insegurança alimentar e 60% deles passam fome durante muitos dias ao longo do ano.

A válvula de escape que asfixia o emprego

Um espectro ronda o mundo do trabalho nos EUA: China.

O neoliberalismo radical encastelado na Casa Branca teve êxito indiscutível em articular seu sistema monetário e o mercado de consumo do país à expansão da economia chinesa. Foi assim que sustentaram a expansão do consumo com baixos índices de inflação . Como um dínamo, a China inundou os EUA de produtos baratos, fabricados em escala e preços imbatíveis, graças à exploração de sua farta mão-de-obra, transformada em nova fronteira da mais-valia planetária. De cada US$ 100 dólares de insumos injetados no sistema produtivo norte-americano, US$ 25 derivam de importações.

A China e o leste asiático respondem por 41% desse total. Na esteira inversa, os chineses acumulam reservas superiores a US$ 1,5 trilhão aplicadas em títulos do Tesouro norte-americano. Essa endogamia sistêmica ajudou até agora a expansão dos chamados “déficits gêmeos” –comercial e fiscal. Sobretudo, manteve acesa a chama do consumo obtendo o silêncio da classe média com doses maciças de crédito barato.

A explosão do mercado imobiliário quebrou os dentes dessa engrenagem. O país foi às urnas desorientado e sem enxergar o conserto que tem pela frente.

Globalização desintegrou a United Auto Workers, a CUT dos EUA

A globalização trouxe para a economia norte-americana os saltos de produtividade extraídos dos trabalhadores chineses, cuja remuneração é uma dezena de vezes inferior à hora/trabalho qualificada nos EUA. A um preço alto porém: o operariado industrial está desaparecendo nos EUA, com ele, suas organizações. O outrora poderoso sindicato United Auto Workers hoje negocia demissões em vez de negociar direitos e salários. Os empregos continuam a se evaporar no país para ressurgirem do outro lado do mundo arregimentando operários chineses e técnicos hindus.

A alta difusão da tecnologia digital associada à queda das barreiras comerciais acelerou a unificação do mercado de trabalho mundial nos últimos 15 anos.

Entre 1990 e 2000 a oferta mundial de trabalhadores saltou de 1,46 bilhão para 2,93 bilhões. Graças ao ingresso da China, Índia e economias do leste europeu, um grande investidor dispõe hoje de três bilhões de candidatos na fila do emprego para leiloar seu projeto a um custo mínimo de mão-de-obra.

Economistas como Lawrence Summers, ex-secretário do Tesouro norte-americano, acreditam que possa levar de 30 a 50 anos para que essa enorme sobra de gente seja "enxugada" do mercado de trabalho planetário. Só depois disso é que os níveis salariais nas economias mais ricas voltariam a ser competitivos.

Democracia versus capitalismo, a agenda oculta nas eleições nos EUA

O filósofo italiano Domenico Losurdo afirma que a democracia não pode definir-se independentemente dos excluídos. A agenda submersa à campanha eleitoral norte-americana deste ano recoloca o velho embate entre a supremacia dos mercados e os direitos dos cidadãos. São antigas as desconfianças acerca do convívio amigável entre democracia e capitalismo. A crise em marcha no coração do império e os primeiros cem dias de Obama, cuja posse está marcada para 20 de janeiro de 2009, permitirão avaliar melhor se as relações de vizinhança ainda desfrutam de alguma tolerância ou se o estoque de boas maneiras já se exauriu.

Obama mais protecionista?

Economistas ligados ao Partido Democrata, como Gene Sperling,assessor de Hilary Clinton, e Austan Goolsbee, da Universidade de Chicago, assessor de Obama, dizem que muitos trabalhadores dos EUA não estão recebendo sua parte nos ganhos gerados pelos mercados abertos. Embora não advoguem uma política abertamente protecionista, eles admitem que há uma pressão política sem precedentes para reverter esse processo.

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