A dança ritual das lembranças
Luiz Nassif
Há uns dez ou doze anos dia fui a um terapeuta indicado por uma amiga. Ele trabalhava com uma técnica desenvolvida a partir dos anos 50 nos Estados Unidos. Partia-se da constatação de que cada trauma de vida, cada momento infeliz, gerava tensões no corpo, naquela rede de vida e energia que envolve os ossos, o sangue e os mantém sob a pele. À medida que o terapeuta identifica e vai desmanchando os nós, as lembranças afloram com a força de um furacão, como se os fatos fossem da semana anterior.
Em alguma parte do corpo tenho os nós da última visita à casa de infância. A mudança já tinha vindo com minha família para São Paulo. Eu já estava aqui há alguns anos. Saí de São Paulo no sábado, para minha despedida solitária. Cheguei a Poços, entrei na casa, passei por cada cômodo vazio, contemplei cada vestígio de lembrança, pensei nos velhos deixando toda sua história para trás e chorei em cada sala, em cada quarto e no quintal silencioso. Até algum tempo atrás, o fantasma da casa vazia me acompanhava nos meus piores pesadelos.
Certamente, o terapeuta encontraria os nós da noite que varei na estrada, com meu primo Oscar, vindo de Poços para um Pronto Socorro da Rua Ribeirão Preto, em São Paulo, onde meu pai estava internado com um AVC grave. Parte dos nós se formou na entrada da UTI, quando ele via em cada pessoa da sala, em mim, na Regina, o vulto dos irmãos falecidos. Chamava-nos de Felipe, Clara e Rosita.
Muitos nós se formaram na manhã seguinte, quando fui até nossa casa pegar seus documentos. Não há impotência maior do que invadir o dia a dia de uma pessoa abatida por morte ou doença grave. É como se captasse as últimas esperanças antes da desgraça; ou os últimos sinais de desespero antes da tragédia. E que ambos não servissem mais para nada.
Abri sua carteira, olhei os documentos, o pequeno patuá que alguém lhe deu para espantar o azar, a carteira de trabalho, o hollerith com o último salário. Encontrei o carnê do primeiro patrimônio que ele começava a tentar comprar, depois de perder os bens de toda uma vida: uma linha telefônica. Fui até o guarda roupa para apanhar algumas camisas. Estavam lá, todas impecavelmente brancas, impecavelmente limpas.
Outros nós se incrustaram na alma, quando, anos depois, o internei em uma Clínica de Saúde, para preservar dona Teresa, supondo-o tendo perdido completamente a razão. Mas voltei no dia seguinte retirá-lo e trazê-lo de volta ao lar.
Haverá nós da última noite de dona Tereza. Das onze da noite da véspera, quando me deu uma bruta ansiedade e passei na Beneficência para o que nem supunha fosse a despedida. Até o telefone que tocou de madrugada do hospital, e que pela primeira vez não me acordou, eu que passava noites sobressaltado com campainhas de telefone me convocando para levar dona Tereza ao Incor. Nós e nós quando cheguei ao andar e minhas irmãs me olharam com olhos de "acabou". E outros nós quando, no velório, contemplei os olhos sofridos de vó Martha, cuja dor de mãe jogava para segundo plano dores de filhos e irmãos.
Certamente um dos nós será para Luizinha, quando, aos doze anos, soube da separação, silenciosamente desceu ao seu quarto e montou um quadrinho com fotos do pai e da mãe e colou no seu quadro de avisos. E outros para Mariana, nas duras conversas para ajudar a arrancar a angústia que sufocava seu coração de adolescente.
E aí me dou conta que felizes são aqueles que conseguem, no dia-a-dia, sufocar esse inventário de pequenas e grandes tragédias que acompanham todas as pessoas. Muitas vezes os nós vêm como armadilhas, como laços amarrando para sempre vontade e futuro à celebração soturna de cicatrizes abertas. Ou então estimulando o sentimento destrutivo da autocompaixão ou, pior, do arrependimento.
Para mim são lembranças fundas, que vêm me visitar vez por outra, quando os fins de semana são um pouco mais vazios, e as saudades um pouco mais apertadas. Convivo com esses fantasmas quando descem do sótão da lembrança, acolho-os, abrigo-os ao som de uma música adequada. Depois, com toda gentileza despacho-os de volta ao seu espaço, ajudado pelo ritmo piedoso da semana de trabalho, que impede a cabeça de surfar pelas ondas das más lembranças.
Meu receio é na hora da partida, os fantasmas surgirem e, valendo-se da fraqueza dos moribundos, entrarem travestidos de remorsos ou arrependimento. Até lá, creio que serão exorcizados para sempre das lembranças, e apareçam apenas como inspiradores de reencontros, que só a partida permite.
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As prioridades
Danuza Leão
Nós costumamos tratar melhor as pessoas a quem conhecemos pouco, e mais: que nos dão pouca bola.
QUAL É A pessoa que você trata melhor neste mundo? Não vale dizer assim, sem nem pensar -"meu pai, minha mãe, meus filhos". Feche os olhos e faça uma reflexão profunda: quando você chega em casa e tem um monte de recados na máquina, para quem você liga primeiro? Para sua mãe, que está em ótima saúde, ou para aquela pessoa que ficou de dar a resposta sobre um projeto?
Para seu pai, que joga vôlei todos os dias, ou para aquela mulher maravilhosa, seu sonho de consumo há anos? Bem, respondidas essas perguntas, vamos em frente.
É doloroso, mas é verdade: cada um de nós procura primeiro pelo que mais o está interessando naquele momento, e que pode até ser o pai ou a mãe -mas quase nunca é. A não ser, claro, quando esse pai ou essa mãe ficaram de responder a algum pedido, seja de que tipo for, para o filho querido.
Mas se, no fundo do seu coração, você detectar que o telefonema é só para saber se você melhorou da gripe, pensando bem, dá perfeitamente para fingir que foi do trabalho direto para o cinema e ligar amanhã de manhã, não é mesmo?
E por que será que as mães têm a mania de saber da evolução da gripe de seus filhos?
Com filho é diferente. Não há pai ou mãe -mãe, sobretudo- no mundo que não interrompa a mais importante das reuniões de trabalho para atender a um telefonema do filho, e ainda está para nascer uma que tenha coragem de mandar dizer que naquele momento está ocupada. Aliás, é só saber que é ele que está chamando para dar um aperto no coração; será que está bem?
Será que está precisando de alguma coisa? Será que caiu e quebrou a perna?
Não há uma só que consiga pensar que, se ele está telefonando, tão mal assim não pode estar.
Voltando aos recados: se for aquela pessoa bem famosa, que você conhece mas que não chega a ser um amigo, você liga correndo, não liga? E se for sua antiga babá, que te segurava no colo e contava histórias para você dormir?
Você adora ela, claro, mas depois de um dia tão duro -ah, dá para ligar amanhã, claro que dá. Tem mais: você já reparou como são bem tratadas as pessoas com quem a intimidade é pouca?
É duro de admitir, mas costumamos tratar melhor as pessoas a quem conhecemos pouco, e mais: que nos dão pouca bola.
E isso em todos os níveis, sobretudo quando se trata de amor. Por que a maior parte das pessoas ama tão apaixonadamente quem não aparece, quem trata meio mal, quem não ama direito?
Esses são absolutamente irresistíveis, enquanto daqueles que nos amam de paixão a gente pode até gostar, mas com uma mal disfarçada indiferença. Nada mais desestimulante do que ter certeza; aliás, certeza seja do que for, sobretudo do amor de um homem.
Nada deixa você mais viva, digamos assim, do que estar na corda bamba, sem saber o que vai ser do seu amanhã. Será que ele vem? Essa falta de segurança - exatamente a tal segurança que se busca em todos os momentos- é que move o mundo.
É ela a responsável pelas academias de ginástica, pelos salões de cabeleireiro, pela indústria da moda, e mente quem diz que quer ficar bonita "para ela mesma". Pois sim.
As mulheres fazem tudo para ficarem desejáveis para um homem em particular ou para todos em geral, e se conseguem um dia ter certeza da estabilidade no amor, ai do outro.
Feliz ou infelizmente, as pessoas que mais nos amam são as que tratamos com mais displicência.
Tratamos assim nossos pais, e assim nos tratam nossos filhos, pela certeza desse amor eterno e incondicional. Não é justo que seja assim, mas desde quando a vida é justa?
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