Ela foi realizada durante a cadeira de Jornalismo Impresso, ministrada por Ronaldo Salgado, na Universidade Federal do Ceará. Não lembro ao certo toda a equipe que viajou para a conversa, mas além de mim estavam Janary Júnior, Paulo César Veras, Jarbas Oliveira, Kelly Magalhães, Ariene Parente, Maurício Lima, Lucirene Maciel e o próprio Ronaldo Salgado. Devo estar esquecendo alguém, peço desculpas, mas puxar pela memória onze anos depois é complicado.
Esta conversa deveria ter sido publicada na edição da revista “Entrevista” daquele semestre em 95, mas não foi, portanto, é inédita.
Ariano - (Pega no braço de Ariane). Depois eu tenho uma história para lhe contar.
Entrevista - … a Kelly, o Maurício, o Janary, o Elizeu, o Leonardo, o Paulo César, Jarbas Oliveira, que também é professor, da área de fotografia. Então é um projeto que eu espero que dê uma boa entrevista, e agradecer aí a atenção de nos ter recebido aqui.
Ariano - Uma alegria, uma alegria enorme.
Entrevista - Nós dividimos a entrevista em três etapas, certo? A primeira etapa nós vamos começar com o homem Ariano, os desejos, os anseios e as frustrações, seu cotidiano e seu momento atual. No segundo momento nós vamos falar sobre a sua literatura, suas influências e sua produção. E no terceiro, nós gostaríamos de fazer uma reflexão sobre cultura popular e sobre o seu trabalho aqui na Secretaria de Cultura. Vamos iniciar. Mais ou menos há uns 20 anos atrás, o senhor, numa entrevista para a Folha de São Paulo falava que aos 50 anos, tinha muito mais perguntas do que afirmações, isso num momento de crise. Agora, no início da década de 80 o senhor voltou a passar por uma crise assim, nós gostaríamos de saber o que é que essa última crise mudou no homem Ariano, como é que está o homem Ariano Suassuna hoje?
Ariano - Olhe, realmente, as pessoas às vezes me perguntam muito… Eu não sei os outros. Mas eu acho que esse negócio de a gente viver em crise é uma coisa mais ou menos normal, não é? Eu acho que não devia nem se chamar crise, porque esses altos e baixos da vida da pessoa, no meu ponto de vista, foi uma coisa absolutamente indispensável. Aquela parada que eu dei, foi em 81… Eu não fui muito claro, mas não fui muito claro de propósito, por que o pessoal pensou que eu estava rompendo com a literatura, eu não tava não, eu estava me vendo numa necessidade imperiosa de romper com a vida literária. Tá entendendo? Por que atrapalha muito o problema da criação literária, não é? Naquele tempo eu estava numa danação de conferência e aula para todo canto, eu era professor, hoje eu estou aposentado, mas eu era professor, já dava aula, é um trabalho muito fascinante mas muito desgastante, vocês sabem disso, vocês ainda estão estudando, mas o professor que leve a sério seu trabalho é uma coisa muito absorvente, não é? E eu levava muito a sério minha função de professor, meu trabalho de professor, eu tinha um relacionamento excelente com os meus alunos, graças a Deus, eu gostava deles e eles gostavam de mim, era uma paixão danada mesmo. Às vezes intempestuosa como toda paixão, mas era uma paixão realmente que havia entre nós. Então eu já me desgastava muito como professor, e além disso o número de conferência que a gente é chamado. É uma coisa que por um lado é muito difícil a gente dizer não, por que inimigo da gente é que não vem pedir para a gente falar, não é? Quem vem pedir é quem gosta da gente. E para dizer um não é ruim. E com isso eu tava numa danação, me metendo numa roda viva, que se juntou com um problema de insatisfação com a minha própria obra. Naquele ano de 80 eu comecei a examinar as coisas que tinha feito e… Não cheguei a renegar, mas me deu uma sensação de obra falhada, que eu tinha falhado na maior parte das coisas que tinha feito. E isso se juntou também com os erros de interpretação que cometi a respeito da política brasileira, da visão geral do Brasil. Eu cometi uns erros de interpretação. E isso me deixou profundamente angustiado, frustrado, porque… por exemplo. A Pedra do Reino não é um tratado, não é um ensaio sobre o Brasil, mas tem alguma coisa disso, não tem? E algumas coisas eu tinha errado… Eu vou lhe dizer assim uma coisa, não sei se vocês conhecem minha peça Auto da Compadecida, conhecem? Tem um protesto lá contra o preconceito de raça, contra a discriminação racial. E tem uma frase que o Cristo diz assim, o Cristo reclamando contra João Grilo diz a ele: “Você pensa que eu sou americano para ter preconceito de raça?”. Olhe, isso mostra de minha parte uma visão totalmente falsa do Brasil, eu estava certo naquele tempo que nós estávamos muito na frente dos Estados Unidos nisso, e não é verdade, o preconceito de raça no Brasil é profundamente enraizado, só que disfarçado. Então isso é um dos erros que cometi no decorrer da minha obra. Quando eu vi isso, depois que eu fiz aquela carta [carta em que declara estar abandonando a literatura, escrita em 1981] uma das coisas que fiz foi entrar no movimento negro. Eu entrei para o movimento negro… Para você vê, as coisas são tão estranhas no Brasil, que eu fui lá no local onde eles se reuniam, e era um lugar assim coletivo, era num prédio da universidade, e além do… o movimento negro ocupava uma sala e outras coisas ocupavam outras salas, aí quando eu cheguei lá que entrei, por acaso estava havendo uma conferência do outro lado, quando eu entrei eles mesmo disseram para mim: “não, a conferência é ali”. De tal maneira era estranho que um branco fosse lá - um branco na medida de que qualquer brasileiro é branco, porque eu sou branco aqui, mas se for para a Suécia serei discriminado de qualquer jeito, se for para os Estados Unidos também vou ser discriminado. Bom, aí eu disse: “não, eu vim para cá mesmo”. Depois que freqüentei vários dias, uma moça do movimento negro, que é chamada de Dausdete, perguntou a mim: “Ó Ariano, eu vi A Farça da Boa Preguiça e aquilo foi um dos dias mais importantes da minha vida, você já era consciente do problema negro?”. Eu não era, o que está certo ali, acertei na intuição, mas muita coisa é errada. Mostrei a ela essa frase que eu disse aqui, que mostra que eu não era consciente do problema. Depois me perguntaram: “o que foi que você veio fazer aqui?”. Aí eu digo: “eu vim me naturalizar negro, vim pedir perdão e vim me naturalizar negro”. Não tem esse negócio, quando o sujeito se naturaliza quando chega em outro país, não é? Então eu digo: “vim me naturalizar negro, vim pedir perdão e vim me naturalizar negro, foi isso que eu vim fazer aqui”. Depois eles acharam graça. Mas enfim, isso foi o motivo de eu ter passado por essa crise. Agora, as revisões foram feitas, as revisões que eu estava achando indispensáveis foram feitas. Hoje estou mais em paz comigo mesmo, voltei a reconciliar um pouco mais comigo mesmo, me perdoei, me perdoei dos erros que tinha cometido, e você pergunta então como está o homem Ariano Suassuna… Outro dia eu falei numa dessas semanas que estão chamando de semana da terceira idade, certo, a primeira coisa que eu fiz lá foi protestar contra esse negócio… eu digo: “olhe, vocês acabem com essa… estão botando apelido em velhice e eu não aceito isso não”. Negócio de terceira idade, os idosos, ninguém… eu digo, os velhos vivem reclamando porque os jovens têm preconceito contra a velhice, mas nós velhos somos os primeiros a ter, porque a gente fica fugindo de nome, ninguém quer aceitar, o nome velho é um grande nome, vamos aceitar, acabar com isso. Outra coisa, eu não aceito, às vezes chega gente perto de mim dizendo: “você é um velho de espírito jovem”, eu digo: “não venha com essa conversa não, que isso eu não aceito não”, não por me chamar de velho, mas por dizer que eu tenho um espírito jovem. Olhe, um velho de 68 anos, que é a minha idade, tiver espírito de 14 é um débil mental, não é, não é verdade? (Risos) Uma pessoa já de idade, com espírito de 14 anos é um imbecil, não é não? Aí eu digo, eu sou velho e aceito o nome, nessa idade que eu cheguei… Eu disse lá nessa semana da terceira idade, da qual fui participar, olhe, a velhice evidentemente tem desvantagens, a proximidade maior da morte, o desempenho físico não é dos bons, e a gente… mas tem coisas muito boas, eu não sei as outras pessoas, mas comigo, todas as idades foram misturadas, coisas boas e coisas ruins. A minha infância, o pessoal vive com idealização da infância, a minha infância foi como todas as outras idades, teve coisas maravilhosas, extraordinárias, como teve coisas péssimas. Duas coisas, por exemplo, que eu achava muito ruins na infância, ainda hoje sustento que era ruim, é a gente não ter um tostão, é liso, não é? É uma lisura total, não tem nada na infância, e todo mundo manda na gente, não é? Todo mundo manobrando, vai-te embora, é muito ruim, isso da infância é muito ruim. Na adolescência, também passei por coisas muito boas e coisas péssimas. Na adolescência da minha vida eu sofri demais, não sei se foi igual a de vocês, se foi fácil, a minha foi um drama, foi uma coisa terrível…
Entrevista - Como foi?
Ariano - Olhe, algumas coisas vocês vão rir. A gente falando sobre isso hoje é até engraçado. Mas, eu sofri muito por amor. Eu sou feio desde menino, isso aí justiça seja feita à velhice, não é culpa da velhice, eu já era feio menino. Ao mesmo tempo que era feio, eu era apaixonado pela beleza, não queria namorar com gente feia não, só me servia mulher bonita, e as mulheres bonitas não me queriam, eu era feio demais. Resultado, sofri demais nesse tempo, muito mesmo, eu conversava com as moças por quem me apaixonava, quando elas sabiam que eu estava namorando com elas, elas acabavam… (Risos) A gente hoje acha graça, mas foi muito ruim, foi muito ruim, isso foi muito. Tanto na infância como na adolescência, como na adolescência como na juventude. Quem me curou disso foi minha mulher, porque foi a única que eu encontrei que era bonita e que me quis foi ela, depois daí eu não sofri mais por amor, foi tudo bom. Mas, eu estava dizendo, uma das conquistas da velhice, a velhice tem aquelas coisas ruins, mas tem uma coisa boa também, eu hoje estou vivendo uma serenidade como eu nunca tinha tido, nunca me senti assim tão sereno, eu era muito duro, quando jovem. Era duro comigo e por isso eu me sentia no direito de ser muito duro com os outros, hoje eu tenho uma reflexão muito maior, uma tolerância e como decorrência disso uma serenidade. Olhe, um bocado de gente está brigando comigo por causa do projeto cultural que fiz aqui para a Secretaria. Se fosse no tempo em que eu era jovem, ia ser briga de fogo que eu partia até para a briga pessoal de esforço físico. Eu partia. Mas, hoje não, às vezes eu acho graça, até às vezes fico com pena de alguns que estão brigando comigo, que estou vendo que eles estão se sentindo mal…
Entrevista - A que o Sr. associa essa sua serenidade, essa sua paz?
Ariano - Eu não sei não, minha filha. Não sei não. E sei que está assim, agora porque é, eu não sei não. (Faz silêncio) Não sei não.
Entrevista - Ariano, quais são seus principais anseios e desejos?
Ariano - Olhe… em que setor? Na vida e na…?
Entrevista - No seu cotidiano.
Ariano - Eu sou uma pessoa muito apegada à família, tá certo? Não sei se por ser um sertanejo - sou um sertanejo - a família para mim é uma coisa fundamental. Eu fui assim, como a geração anterior à minha, muito apegado a pai e mãe, tios, etc. Sou muito apegado aos irmãos, depois apegado à mulher, aos filhos e agora à neta. Talvez seja uma das coisas que me dê serenidade. Eu pensava que não tinha vocação de avô. Eu achava que era babaquice. Quando encontrava os avós que a gente conhecia, é babaquice isso aí. Mas que nada! Eu pensava que ia ser indiferente até, tá certo? Mas que nada. É bom demais. É muito bom. É ótimo, é como se tivesse voltado a ver os filhos de novo pequenos, então a gente fica jovem de novo, fica se sentindo como tivesse os meninos pequenos. Inclusive os meninos se parecem com os filhos quando eram pequenos, é como se a gente tivesse repetido tudo de novo. Olhe, eu tenho os netos, tenho uma neta, todos são muito apegados comigo, mas eu tenho uma neta e um neto, que esses são muito apegados, é uma coisa extraordinária. É um tal de Gabriel, esse é um pequenininho assim, é um bicho bom danado, é extraordinário, tem uma paixão por mim danada e eu correspondo. Para responder a sua pergunta. Do ponto de vista pessoal, o que eu quero mais agora é que a família dê certo, que os netos dêem certo, que os filhos se realizem. Do outro ponto de vista, o meu grande sonho é escrever um romance no qual venho trabalhando há não sei quanto tempo e agora está parado por causa da Secretaria. Venho trabalhando nesse romance desde muitos anos e não estou conseguindo terminar, mas acho que vou conseguir. Infelizmente parei, se conseguir terminar como estou pensando, ele vai ser uma revisão de tudo que fiz, inclusive vai resolver alguma frustração que tenha para trás, vou ver se corrijo por ele.
Entrevista - Vamos fazer uma retrospectiva da sua vida, quais são suas principais frustrações?
Ariano - As minhas principais frustrações (silêncio). Eu não sou muito cheio de frustração. Mas vou dizer que talvez (ri) a maior seja que tenho muita vontade de ter uma criação de cabra (ri) no sertão da Paraíba, que é a minha terra. Tudo bom Ivana? (repórter do Diário de Pernambuco, que acaba de entrar na sala). De certa maneira, consegui, mas não tenho um palmo de terra, arranjei um primo, tenho um primo legítimo que é muito apegado comigo, e, de certa maneira, crio na terra dele. A gente começou a fazer uma criação de cabra juntos, mas de qualquer maneira é mais dele do que minha. Tenho essa frustração, de não ter uma criação de cabra. É talvez a maior da minha vida. Aliás, não é só de cabra não, gostaria de criar um determinado tipo de cabra, não é toda cabra não que me interessa, a que quero criar parte de um tipo nativo, que inclusive foi batizada por um conterrâneo de vocês, Aristóbolo de Castro, se não me engano, um zootecnista, que colocou o nome dessas cabras de gurguéia [também grafada como “gurgéia”], porque tem o Rio Gurguéia, acho que é no Piauí, não é no Piauí? Lá no Rio Gurguéia, no Vale do Gurguéia, tem muito dessas cabras, é uma cabra avermelhada, com uma listra preta no dorso. A cabra que quero criar vai partir dessa, mas ainda tem tempo.
Entrevista - Permita-me chamá-lo de você.
Ariano - Mas claro, eu acho melhor que tudo.
Entrevista - Ainda nesse universo do cotidiano, tenho uma curiosidade que é relacionada ao seu trabalho, o seu jeito de trabalhar. Nós estamos na revolução da cibernética e lhe pergunto, dentro do universo dos computadores, o Ariano Suassuna é ainda preso à velha máquina de escrever ou já acessa a internet?
Ariano - Olhe, tenho um genro que tentou me converter ao computador. Não tenho nada contra o computador, não teria nada se ele não tivesse contra mim, tá certo? Mas ele tem, ele antipatiza comigo, que já vou lhe dizer como. Mas vi que o computador é uma coisa muito boa porque pode ajudar, agora, comigo não pode por vários motivos, inclusive porque o computador, pelo o que entendo, é uma máquina de escrever, uma máquina de escrever sofisticada. Você tem a máquina de escrever comum, você chamou a “velha máquina”, tem o estágio intermediário, que é a elétrica, e o computador. Na primeira eu escrevo, mas não passei nem para a elétrica. Não é de propósito não, não é um negócio que eu sustente como uma religião, até porque não dô muito para isso. Depois, meu processo de escrever não vai muito com a máquina, escrevo à mão, não cheguei nem na máquina ainda. Bato a máquina também, mas, principalmente para escrever as partes mais difíceis, escrevo à mão. Não tenho segurança para chegar e bater na máquina, principalmente poesia - escrevo poesia também, apesar de ser muito pouco conhecido como poeta -, mas escrevo poesia e na minha opinião, minha poesia é a fonte profunda de tudo que escrevo, agora… eu não sei. Acho a máquina uma coisa meio fria, o sujeito escrever um poema numa máquina. Escrever é um ato que a pessoa tem que ter uma intimidade com o papel e para isso a caneta é melhor. Escrevo à mão, depois passo a limpo na máquina, depois novamente escrevo à mão, e não é uma vez nem duas, esse processo vai e vem, vai e vem, vai e vem. Eu só poderia usar o computador se eu automatizasse. Pois bem, aí tem um companheiro de trabalho meu aqui que vive também me aperreando para adotar o computador. Tem um computador ali, aí ele diz: “Ariano, venha cá rapaz, eu preparo aqui para você e tudo”. Isso não faz uma semana talvez, foi na semana passada. Fui, me sentei, ele disse: “eu preparo tudo aqui para você e você só faz bater como bate na máquina”, eu digo: “tá certo”, aí eu vou escrever a primeira frase do romance que estou escrevendo. Botei maiúsculo, aspas que precisava de aspas maiúsculo, e o computador botou, aí eu botei til e o computador… (faz um barulho com a boca querendo dizer que o computador falhou). Eu disse: “que é isso?”, “não, o computador não aceita”, “não aceita por que, que negócio é esse? É por isso que digo que ele não gosta de mim”, ele disse: “não, porque o computador só bota til em o e a”. Vai te danar, então não quero mais não. Eu quero botar em e, eu quero botar nesse e. Ele disse: “mas não tem isso na língua portuguesa”, não tem agora, mas no português antigo tinha, e tem hora que preciso usar o português antigo, entendeu? Estudei com um amor danado, conheço bem e preciso dele, aí o computador já não aceita, é por isso que digo que não sou só eu que tem algo contra o computador, é o computador que tem contra mim.
Entrevista - Nessa perspectiva, o computador estaria emburrecendo as pessoas?
Ariano - Não, acho que não, o computador não emburrece ninguém, também não torna ninguém inteligente. (Risos) Olhe, quem andou tentando me converter também foi o Millôr Fernandes, um grande entusiasta, mas ele tem uma secretária e ela ajuda, eu não sei trabalhar com secretária, não sei também se foi falta de sorte, ainda tentei fazer uma experiência… O ato de escrever para mim é um ato… não sei não, gosto de escrever e no meu caso essa secretária me atrapalhou muito. Eu ditava para ela e não saía escrito como eu queria, mandava copiar ela saltava pedaço, tá entendendo? Vi que ia era perder tempo.
Entrevista - Voltando ao desejo de criar cabra no sertão, o que te impede de fazer isso? Quanto ao consenso familiar, numa entrevista você falou que três eram contra e dois a favor de voltar ao sertão.
Ariano - É verdade. É verdade. Minha mulher se absteve. Foram dois a favor? Eu acho que foi um. O meu filho que é pintor votou a meu favor. Eu queria ir para lá, para o sertão, aqui não dá para criar, tenho que me mudar. O que impede é a família.
Entrevista - Seu desejo de voltar para o sertão é só pela criação de cabra ou tem outro motivo?
Ariano - Também o fato de eu ter sido criado lá. A gente tem saudade da terra, inclusive lá a gente tem um sossego maior.
Entrevista - Apesar disso você disse que não tem nenhum pedaço de terra.
Ariano - Tenho não, tenho não. Mas tenho uma casa. É o seguinte, perdi meu pai muito novo, quando meu pai morreu eu tinha três anos, e minha mãe teve que vender as terras todas que ela tinha para poder educar a gente, as terras que meu pai deixou e o gado… minha mãe primeiro arrendou a um irmão dela, e esse irmão teve um papel muito importante para nós todos, ele praticamente assumiu o papel do meu pai. Ele era irmão de minha mãe e ele arrendou essa fazenda que meu pai deixou, mas era mais um pretexto para ele pagar uma verba para mamãe, foi com essa renda que minha mãe nos educou a todos. Agora, à medida que os meus irmãos mais velhos, eu sou o último irmão homem de uma família de nove, ou seja, eu sou o penúltimo de todos, de mulher e homem, depois de mim tem uma mulher. Mas, os meus irmãos mais velhos vieram para cá primeiro, estudar aqui no Recife. A gente morava no sertão da Paraíba mas minha mãe mandou os filhos estudarem aqui, porque na Paraíba da década de 30 a situação era muito ruim, por causa de problemas de política. Mamãe preferia que a gente estudasse aqui, vieram meus dois irmãos mais velhos, se formaram em Medicina e ficaram aqui trabalhando quando velhos. A família foi se fixando. Depois vieram os outros, todos foram se fixando aqui. Em 42, eu estava com 15 anos, mamãe já estava com os filhos todos aqui, inclusive eu já estava estudando num colégio, nas férias eu voltava para Taperoá. Mas em 42, mamãe mudou-se para cá. Foram umas coisas que não foram determinadas por mim, foi minha mãe que determinou, então a gente ficou aqui. Aqui me casei e aqui nasceram meus filhos. Nessa época começou a aparecer a primeira oportunidade de mudar para lá, foi quando esse meu primo me chamou para a gente começar essa criação. Quis ir para lá de vez, porque tenho uma casa lá, mas veja as minhas aventuras. Comprei um pedacinho de terra nesse tempo, para exatamente o que eu queria fazer, a criação de cabra, mas era uma terra bem pequenininha, uma fazendinha de 67 hectares - o mínimo na minha região é 500 hectares. Mas a terra não tinha casa, entendeu? Troquei por uma casa sem terra (Risos). Vendi a terra para comprar uma casa, agora tenho uma casa, mas não tenho mais terra. Foi nessa época que pretendi ir, mas aí eu fiz a votação e minha filha mais velha, quando eu reuni a família, disse desse jeito: “mas papai, a gente morar naquele fim de mundo?”, botei o apelido dela de Fim de Mundo, passou muito tempo eu só chamava ela de Fim de Mundo, por vingança. Coitada da pobre da Maria. E aí não deu.
Entrevista - Nós gostaríamos agora de mudar um pouco e começar a falar sobre a sua literatura. Começando com as influências, qual a importância da sua infância como influência na sua produção literária?
Ariano - Foi grande. Em primeiro lugar porque foi a infância que me deu, digamos assim, o território poético no qual toda a minha obra se desenvolve. Todos os livros que escrevi até hoje são passados no sertão, foi onde passei a infância. Agora, esse último, pela primeira vez, estou tentando fundir, porque o Recife é muito importante para mim também, sempre foi, o Recife é uma cidade… se eu tiver que escolher um pólo urbano para contrapor ao rural do sertão é sem dúvida o Recife. Então, pela primeira vez, estou conseguindo trazer o Recife para o universo da ficção, porque já escrevi muito sobre o Recife, escrevi poemas, escrevi um pequeno ensaio chamado “Viagem Visionária Através do Recife”, mas na ficção ela nunca tinha entrado, somente agora é que estou tentando algo. Então, a infância foi muito importante por isso, depois da infância, não sei os outros escritores, comigo foi talvez durante a infância que as coisas mais poderosas do ponto de vista de uma criação literária, aconteceram a mim. Na infância e na adolescência aconteceram coisas que foram muito importantes para mim, no meu processo criador. Na própria formação literária… tive a sorte de ter herdado uma biblioteca muito importante, que foi a biblioteca de meu pai, que gostava muito de ler, era um grande interessado em literatura e herdei essa biblioteca. Eu, menino, peguei na biblioteca dele alguns dos livros que foram muito marcantes na minha vida. Por exemplo, ele era um grande admirador de Euclides da Cunha, que é uma grande admiração literária brasileira minha. Se tiver que escolher um patrono é Euclides da Cunha. Além disso, esse tio de quem falei a propósito do fato dele ocupar o papel de meu pai… a influência literária de meu pai em mim foi pela biblioteca, porque quando ele morreu eu tinha três anos, não dava para ele… e também foi uma influência indireta através desse tio, porque esse tio já tinha sido formado por meu pai, ele era bem mais novo - era o irmão mais novo de minha mãe. Quando meu avô e minha avó morreram, ele ficou muito pequeno e ele foi terminado de criar por minha mãe que era mais velha e por meu pai, de maneira que meu pai foi quem o formou literalmente. Meu pai transmitiu a ele a admiração por Euclides da Cunha, por Eça de Queiroz, por uma porção de escritores e ele me transmitiu indiretamente, quer dizer, me transmitiu diretamente a dele e indiretamente a do meu pai, o nome dele era Manuel Dantas Villar. E eu admirava tanto esse meu tio que botei o nome desse meu filho que é pintor de Manuel Dantas Villar Suassuna. Eu só acrescentei o Suassuna meu. Esse tio exerceu um papel muito importante na minha formação literária e depois vim aqui para o Recife, aí já foi na minha adolescência, e tive a sorte de pegar duas boas bibliotecas nos colégios onde estudei, o Colégio Americano Batista e o Ginásio Pernambucano. Mas antes de falar disso quero dizer a vocês uma coisa que foi fundamental e que tem interesse para vocês. Nessa época de infância entre os livros de meu pai que eu li havia um livro de um cearense que foi fundamental na minha formação, é Leonardo Mota. Não sei se vocês sabem quem é, é um personagem interessantíssimo, uma figura muito curiosa e esquecida, mas que merece um estudo. Pois bem, Leonardo Mota era amigo pessoal de meu pai que era um grande admirador da literatura popular, gostava dos cantadores, sabia de memória versos e versos dos cantadores, inclusive meu pai foi uma das fontes de Leonardo Mota, que recorreu a ele e no livro que ele tem chamado “Sertão Alegre”, vocês podem olhar lá que uma das pessoas a quem o livro é dedicado - eu não me lembro se é “Sertão Alegre” ou é “No Tempo de Lampião”, tenho esses dois livros ainda e tenho os exemplares que foram de meu pai. Guardo como uma coisa sagrada “Cantadores”, “Violeiros do Norte”, “No Tempo de Lampião” e “Sertão Alegre”. Se não me engano, é “Sertão Alegre”, dedicado a algumas pessoas dentre as quais meu pai. Lá dentro, no corpo do livro, ele cita meu pai como uma das fontes, cita até um verso muito curioso que meu pai passou para ele. Leonardo Mota teve um papel importantíssimo na minha formação, li na infância. Por dois motivos, primeiro porque já tinha ouvido cantadores, já tinha visto mamulengo, mas você sabe, a gente é criado de tal maneira que não dava, talvez, a importância que dou hoje à literatura popular, e à cultura popular de um modo geral. Se eu não tivesse visto através de Leonardo Mota que aquilo era uma coisa importante, tanto assim que uma pessoa que era um escritor - para mim era a coisa mais importante do mundo - se detinha em escrever um livro sobre aquilo. Passei a respeitar além de amar, que eu amava, eu gostava, passei a respeitar a literatura popular porque ela era objeto de… porque sempre fui um grande leitor, assim que aprendi a ler, comecei a ler muito, para mim era uma felicidade enorme, que você não pode nem avaliar. Vocês que são da geração da televisão, acho que não podem nem avaliar a sensação de encanto que eu tinha no Taperoá, quando depois do almoço me deitava numa cama, botava um bocado de bolacha junto de mim e ficava lendo, mordendo as bolachas e lendo. Li Leonardo Mota nesse tempo. Pois bem, se você tiver curiosidade de ver o livro “Cantadores” vai encontrar lá “O Enterro do Cachorro” e a “História do Cavalo que Defecava Dinheiro”, dois folhetos populares citados por ele. “O Enterro do Cachorro” foi que deu origem ao primeiro ato do “Auto da Compadecida”, e a “História do Cavalo que Defecava Dinheiro” foi a que deu origem ao segundo ato do “Auto da Compadecida”, eu nem decorei e depois aprendi a cantar, mas vi pela primeira vez em Leonardo Mota.
Entrevista - Na peça o cavalo virou gato.
Ariano - Eu virei gato por questões cênicas, se a gente botasse um cavalo em cena no teatro era uma dificuldade, não é? Ia dá uma dificuldade para as companhias, botei um gato que é um animalzinho menor.
Entrevista - Ariano, a gente poderia afirmar que o seu despertar para a literatura foi graças a seu pai?
Ariano - Pode. Pode. Por conta de meu pai, desse tio e por conta dos livros que comecei a ler na biblioteca dele e alguns que meus irmãos mais velhos levavam para casa. Olhe, nesse tempo, eu era menino, li um livro que ainda hoje leio e releio com encanto, tá certo? Acho que os outros escritores se acanham, às vezes, de, talvez, confessar isso, mas eu não, é um livro considerado de segunda ordem, mas para mim, não tenho como pagar as horas de felicidade que devo a esse cidadão e, ainda hoje, porque eu sou de poucas leituras, mas sou um homem de ler e reler o mesmo livro não sei quantas vezes - já li “Guerra e Paz” de Tolstoi não foi menos de trinta vezes não, e ainda essa semana morri de inveja de uma pessoa que me pediu emprestado. Eu digo “ah, meu Deus, quem me dera voltar de novo pela a primeira vez a ler ‘Guerra e Paz’”. Pois bem, é um livro chamado “Escaramuche”, de um escritor chamado Rafael Sabatini. Vocês por acaso viram o filme recente que passou chamado - aliás o título em português não sei porque botaram esse título - “A Viagem do Capitão Tornado”? Vocês viram, por acaso? Pois bem, aquele filme é baseado entre outras coisas em “Escaramuche”. Veja bem, o livro é baseado… o filme é baseado num romance de um escritor francês chamado Teófilo Gautier, chama-se “A Viagem do Capitão Fracasso”. Mas acontece que com o “Escaramouche”, Rafael Sabatini também recebeu influência do Teófilo Gautier, entendeu? Como é o nome dele? É Scola, né? É Ettore Scola, não é? Pois bem, quando Scola foi fazer, tenho certeza porque é mais aproximado do “Escaramouche” do que da “Viagem do Capitão Fracasso”. Então, é um livro… Pois bem. Vocês não imaginam a felicidade. Desde que eu comecei a ler esse romance, imediatamente comecei a querer ser escritor. Eu queria ser um daqueles camaradas que me causavam uma alegria tão grande. Então, desde os 12 anos que eu queria ser escritor.
Entrevista - Em que a cultura oral do Nordeste lhe influenciou?
Ariano - Sim, influenciou. Eu não acabei de dizer? Quer dizer, eu mesmo reparei numa peça de mamulengo muito menino. Com sete, oito anos, vi uma peça de mamulengo e também com essa idade ouvi uma cantoria pela primeira vez. Então, desde aí que o teatro popular de bonecos, que é o mamulengo… Vocês chamam lá [no Ceará] mamulengo ou casimiro?
Entrevista - Mamulengo.
Ariano - Chamam mamulengo também. É porque no sul do Ceará, chamam Casimiro Côco. Acho um nome ótimo Casimiro Côco. Em alguns lugares chamam João Redondo. Na Paraíba chamam muito João Redondo e Mamulengo. Pois bem, então, quando vi essa peça de mamulengo, tinha um negro Benedito e que dá uma surra na Polícia. Se você pegar uma peça minha chamada “A Pena e a Lei” vai lá encontrar… o primeiro ato é encenado como os atores que trabalham com boneco. E tem um personagem Benedito, que é negro e dá uma surra na polícia, quer dizer, ele dá uma surra de inteligência, ele ganha pela astúcia.
Entrevista - Ariano, é isso que o faz mais homem do teatro do que da poesia?
Ariano - Eu não sou mais do teatro que do romance ou da poesia. Comecei a escrever pela poesia. Fui levado para o teatro por influência de um amigo chamado Hermilo Borba Filho. Nós fundamos juntos o Teatro dos Estudantes de Pernambuco e foi por influência dele que fui para o teatro, mas comecei pela poesia e pelo conto, entendeu?
Entrevista - Mas você é mais conhecido pelo teatro.
Ariano - Não, agora o problema é esse. Eu sou mais conhecido… Mas eu não sou… Pessoalmente, não tenho mais apego ao teatro que ao resto. A dedicação que tenho pelo teatro, tenho pela poesia e pelo romance.
Entrevista - Ariano, agora eu queria saber a influência da religião, você mudou de religião, do protestantismo para o catolicismo…
Ariano - Não. O pessoal diz muito isso. Não cheguei a mudar não porque nunca fui protestante, certo? Na minha família, havia uma divisão. Minha mãe era católica a princípio e o meu pai também. E casaram na igreja e tudo. Mas acontece que a minha mãe era profundamente apegada à mãe, minha avó materna, e ela, essa minha avó, adoeceu, teve uma doença grave, um tumor, qualquer coisa do tipo, eu não sei… imagino hoje que seria câncer, não é? Mas na época não… E ela veio se operar aqui em Pernambuco. E o cirurgião que operou minha avó era um missionário protestante chamado Buttler, Samuel Blutler. E ele operou e minha avó ficou de tal maneira grata a ele, que por influência dele, minha avó se converteu ao protestantismo. Minha mãe então acompanhou, já depois de casada. Então minha mãe era protestante, meu pai não. Então mamãe nos colocou no colégio Americano Batista, que era um colégio evangélico, protestante. Mas nunca fui não. Recebi uma instrução religiosa no colégio Americano, mas com a rebeldia natural da adolescência, da juventude, não aceitei. Então, houve um tempo em que neguei tudo. Eu não aceitava coisa nenhuma. Quando, depois daí, voltei, recebi uma influência muito grande quando jovem de um pensador espanhol chamado Miguel de Unamuno, um basco, uma figura ótima, viu? Uma figura de primeira ordem. Ele tem histórias ótimas. Era professor em Salamanca e os alunos eram doidos por ele. Era uma figura ótima, era basco e, neste momento, quando estava no auge, no fim da década de 20, houve um grande movimento para separar… Ainda hoje, tem essa briga lá. Os bascos lutam contra o poder de Madri, contra os castelhanos. Pois bem, aí ele, que era basco, era a grande esperança da cultura basca. Houve um congresso separatista basco em Bilbao, que é a capital dos países bascos. Mandaram chamar o Unamuno que era o grande representante da cultura basca para fazer a conferência de abertura do congresso. Ele chegou lá e sustentou que a cultura basca só tinha sentido enquanto fosse pertencente à Espanha. Os bascos, danados, deram-lhe uma surra, quebraram a cabeça dele. Ele disse que deram uma cadeirada no dia da conferência. Deram uma cadeirada na cabeça dele, abriu aqui (faz o gesto significando um golpe na cabeça, movendo a mão direita em posição lateral, com um movimento que vai de trás do crânio à testa), levaram ele pro hospital, deram não sei quantos pontos na cabeça dele e ele voltou pra Madri, onde de lá ele ia voltar pra Salamanca. Quando chegou em Madri, ferido desse jeito por causa dessa posição, os castelhanos, que Madri é o centro dos castelhanos, prestaram uma homenagem a ele, uma homenagem extraordinária, tá entendido? Receberam ele de braços abertos e flores e preparam uma conferência. Na conferência, ele sustentou a superioridade da cultura basca sobre os castelhanos. Deram outra pancada nele, outra surra. Quando chegou em Salamanca, tava todo quebrado, sabe? Chegou lá e uma aluna, que gostava dele, disse: “mas mestre, porque é que o senhor, uma pessoa como o senhor, vai se expor assim desse jeito? Esse pessoal não compreende o senhor. Não estão à sua altura. Não vá se expor desse jeito. Por que que o senhor faz isso?”. Ele disse: “é porque o destino do escritor é suscitar polêmicas e contradições”. É uma figura ótima! Pois bem. E o Unamuno nesse tempo… recebi duas grandes influências dessa época, do grande romancista russo Dostoiévski e de Unamuno. Porque, veja bem, nunca fui protestante, mas fui criado num ambiente de profunda simpatia à Igreja Católica. E outra coisa, as pessoas de quem eu gostava, minha mãe, minha tia, que ajudou mamãe a nos criar, era protestante. Eu tenho uma simpatia à Igreja. É por isso que essa época foi fundamental pra mim estar em contato com Unamuno e Dostoiévski, porque nenhum dos dois era católico ortodoxo, tá entendendo? Eles não simpatizavam com a Igreja Romana. Ao mesmo tempo que todos dois eram profundamente fascinados pela figura do Cristo. Havia uma personagem de Dostoiévski , em que dizia que se um dia descobrisse que a verdade era uma coisa e Cristo outra, preferia ficar com Cristo, entendeu? Então eles desempenharam um papel muito importante pra eu deixar… porque eu estava deixando as negações que havia na adolescência, da juventude e encontrei uma frase de Dostoiévski que me impressionou profundamente. Tem um personagem dele nos “Irmãos Karamázov” que diz uma frase que nunca esqueci, nessa época foi um choque. Ele disse assim: “Se Deus não existe, tudo é permitido”. Tá entendendo? Repare bem: “Se Deus não existe, tudo é permitido”. E é mesmo. Porque se Deus não existe a gente vai ficar… não existiria mais regra moral nenhuma. Existe somente a opinião pessoal de cada um. Então se eu, por exemplo, tenho vontade de matar gente, você não pode dizer a mim “não, não mate não porque eu acho errado, com isso aí eu não concordo”. Aí eu digo, você acha mas eu não acho, tá certo? Se não tiver uma regra absoluta como regulador. Nessa época, descobri que… Quando li essa frase do personagem de Dostoiévski, Ivan Karamazov, imediatamente… costumo muito fazer um exame interior pra ver no que é que acredito, no que é que tô pensando ou se estou me portando de acordo. Eu digo: bom, não acho que tudo seja permitido, logo, Deus existe, tá entendendo? Pois bem. Agora, às vezes as pessoas tiram conclusões diferentes. Sartre, por exemplo… Sartre, ele tira até a dúvida que o personagem de Dostoiéivski lança. Porque o personagem de Dostoiévski diz: “se Deus não existe, tudo é permitido”. Sartre então diz: “Deus não existe, portanto tudo é permitido”. Eu diria ao contrário, eu digo: eu vejo que tudo não é permitido, então Deus existe. Foi muito importante pra mim isso? Então, nessa época assei a ter… isso não foi do dia $para a noite, eu via uma coisa dessa então refletia, pensava, procurava, lia. Então passei a aceitar que Deus existe e portanto, tenho que tomar algumas decisões que são decorrentes disso aí. Nessa época, não aceitava ainda a Igreja. Passei a aceitar o Cristianismo, mas não a Igreja. Agora, aí vem a segunda parte, que é a parte que minha mulher desempenhou, porque como tava dizendo a você, até eu encontrar minha mulher, todas as pessoas de que gostava, as pessoas a que era excessivamente ligado eram hostis à mim, ela era a primeira pessoa a que fui profundamente ligado que olhava a Igreja de outra maneira. Ela então desempenhou um papel muito importante no sentido de me tirar dessa hostilidade e a partir daí omecei a ver que… Porque eu via o padre safado, aí ficava com raiva da Igreja toda. Cheguei à conclusão de que não era assim, não é? Ele era safado porque queria. Não era culpa da Igreja não.
Entrevista - O Movimento Armorial, quarta-feira (18 de setembro), está fazendo 18 anos…
Ariano - É mesmo? É verdade, 18, é verdade.
Entrevista - Eu gostaria de saber o seguinte, que contribuição o Sr. acha que o movimento deu à cultura brasileira? [pergunta feita por uma repórter do Diário de Pernambuco, chamada Ivana]
Ariano - Para a cultura brasileira? Eu não sei se é tanto assim. Não vou dizer para a cultura brasileira, vamos dizer para a cultura pernambucana. Eu acho que a contribuição principal, Ivana, foi essa contra o processo de vulgarização e descaracterização da cultura brasileira. Porque no meu entender, infelizmente, esse processo continua, talvez até mais violento. Eu outro dia estava até dizendo que às vezes as pessoas falam do Regime Militar, mas infelizmente, por esse ponto de vista, não houve anistia, quer dizer, as pessoas que se dedicam à cultura brasileira continuam marginalizadas e caçadas e colocadas de lado. Consideradas arcaicas. Então, no meu entender, essa foi a principal contribuição do Movimento Armorial. Foi e continua sendo. Quer dizer, a luta contra o processo de descaracterização e vulgarização da cultura brasileira.
Entrevista - O Movimento Armorial, enquanto movimento, ainda sobrevive até hoje, 1995, 18 anos depois?
Ariano - Não é da natureza do movimento durar tanto tempo. Você vê, a Semana de Arte Moderna foram três dias de duração. Nem os sete dias da semana teve. Mas, me diga uma coisa, você não acha que o efeito da Semana de Arte Moderna ainda é forte? Não é, sem dúvida, não é? A mesma coisa acho que aconteceu em relação ao Movimento Armorial. Quer dizer, em primeiro lugar, acho que a influência do Movimento é absolutamente clara, não é? Você veja, você mesma trouxe Chico Ciência [Ariano nunca aceitou o Science do cantor Chico Science] aqui. E ele declarou… Aliás saiu um engano… ele não disse “meu coração é sereno”, não, como saiu, ele disse “meu coração é cerâmico”. Ele disse “meu coração é cerâmico e Armorial”. Quer dizer, o Movimento Armorial está aí abrindo caminhos para os mais jovens. Isso em um setor que não é do Movimento Armorial. O Chico Ciência não é do Movimento Armorial. Mas o próprio movimento tem a terceira geração. Você tem os mais velhos, como eu e Samico, Capiba e Zé Aleixo, depois você tem uma geração intermediária com Antônio José Madureira, o Antônio Wallace, Arnaldo Barbosa, que são mais novos que eu e Samico. E você já tem agora Deodato e Dantas Suassuna [filhos de Ariano]. Sem falar nessas influências indiretas. Outro dia vi um cabra lá mesmo, no Rio de Janeiro, que deu uma entrevista e perguntaram a ele: “você faz parte do movimento ou não é mais do movimento? Sua obra é semelhante a de…”, aí ele disse: “não, ele é mais Armorial que eu”. E eu digo, o pessoal tá sabendo o que é Armorial. Quer dizer, é uma corrente erudita brasileira de raízes populares, que se empenha nessa luta contra o processo de descaracterização e vulgarização da cultura brasileira. Não faz duas semanas que li uma entrevista de uma coisa que não tem nem muita ligação com a gente, de um figurino de moda, e ele apontou o Movimento Armorial como influência.
Entrevista - Você poderia indicar alguma orientação teórica para o Movimento?
Ariano - Bom. Eu vou dizer o núcleo que a gente escolheu como sendo a bandeira de luta do Movimento Armorial. Nós escolhemos o folheto. A gente escolheu o folheto porque o folheto tem três tipos de arte ligadas a ele. Você tem em primeiro lugar as artes plásticas, a gravura da capa. Então, por aqui a gente pretendia, a gente achava, que a gravura popular fornecia o caminho para a pintura, para a talha, para a gravura, para a cerâmica, para a tapeçaria… para todas as artes ligadas ao elemento plástico. Então era o primeiro tipo de arte. Depois dele, no interior, você tinha a poesia narrativa, que veio abrir caminho para a literatura. As artes narrativas como o cinema e o teatro. Eu estava acabando de ver, me baseei no “Enterro do Cachorro” que era um poemeto, entendeu? Então achava que - nós todos achávamos - que o folheto… Ainda tinha outro que era a música, porque o folheto é cantado. E por aí isso me liga à tradição do violeiro, do repentista, que nem sempre toca viola, é chamado de violeiro mas nem sempre toca viola. O Cego Aderaldo tocava era rabeca. Tocava rabeca e ele cantava. Eu tenho um retrato de Leonardo Mota rodeado por dois cantadores. Ele está no centro e de um lado está o Cego Aderaldo com a rabeca e do outro um outro cantador chamado Jacó Passarim com a viola. Esse tipo de música é que também é adotada para cantar o soneto. Eu menino tinha sido criado cantando soneto e folhetos. De alguns desses sonetos meu pai era personagem, me deixava muito orgulhoso. Pois bem, então o… Nós partimos então disso. A gente queria criar uma arte brasileira erudita, que se fundamentasse no popular. Esse era o ponto de partida estético do Movimento Armorial. E de todas as artes populares a gente privilegiava o folheto como sendo a grande bandeira de luta da gente. Você veja, por exemplo, quando fundei o Quinteto Armorial… Desses instrumentos fundamentais para o Movimento eram a viola, que Antônio José Madureira tocava, e a rabeca que Nóbrega tocava. Iam diretamente no folheto. Porque eu procurava um conjunto de câmara que expressasse o país e o povo. Nosso país e nosso povo. Agora, veja bem, às vezes, acusavam o Movimento Armorial de não ter uma política, mas sempre teve, tá entendendo? Agora, eu sempre fui contra a arte engajada, a arte excessivamente engajada. No meu entender, prejudica profundamente a própria essência da arte. Porque a arte não nasceu para ser educativa, não é isso! Ela sendo bem feita, por natureza é educativa. Você querer fazer uma arte didática daria um desastre do ponto de vista estético. Então eu achava isso, que a gente não deve dar uma conotação engajada à arte, porque o resultado disso vai ser a arte propaganda, que para mim é a pior coisa que existe. Pois bem, então, torno novamente ao folheto, é por isso que digo, acho que o Movimento Armorial não é apolítico. Quando Samico, por exemplo, olhou a gravura popular e partiu daí para recriar essa gravura erudita brasileira, baseada na gravura popular, está buscando um caminho inclusive político. Quando escolho o folheto para fazer o “Auto da Compadecida”, estou indicando um caminho político. A grande importância do folheto, no meu entender, é que o folheto é o único espaço em que o povo brasileiro se expressou sem influências e sem deformações que lhe viessem de cima, de fora. Aqui ele se expressou como ele é. Aqui ele não imitou a França, não imitou a Inglaterra nem aos Estados Unidos. O povo brasileiro aqui se expressou como ele é. Então essa é a grande lição, do folheto em feira. Pois bem, então é por isso que digo que o Movimento Armorial não é apolítico. Ele é contra a arte política, mas ele não é apolítico. Porque no momento em que ele escolhe esse caminho, está se baseando no espaço cultural, no único espaço cultural onde o povo brasileiro se expressou como ele é, sem deformações que lhe vieram de cima ou de fora. E ao fazer isso ele indicou um caminho político. Porque, no meu entender, o que corresponde no campo político e social ao folheto, para mim é o arraial de Canudos. O movimento de Canudos, para mim, foi o único lugar onde o povo brasileiro se expressou como ele é. Ao invés de imitar qualquer coisa que fosse de fora, fosse capitalista, ele lá se organizou com um grande líder - que por acaso é conterrâneo de vocês também (risos) -, que foi Antônio Conselheiro, que foi uma figura profundamente injustiçada na história. Eu acho ele de uma importância enorme. Para mim o Brasil só encontrará o caminho político correto no dia em que fizerem uma reavaliação de Antônio Conselheiro e for adiante. Porque ele organizou o povo e todo aquele movimento foi organizado de baixo para cima. O arraial de Canudos, no campo social e político equivale ao folheto no campo da cultura, entendeu? É por isso que digo que o Movimento Armorial não é apolítico quando a gente escolhe isso, a gente está indicando que os políticos tem que fazer com o arraial de Canudos a mesma coisa que a gente fez aqui.
Entrevista - Você já repensou o Movimento Armorial?
Ariano - Não. Eu acho até que falei disso alguma vez. No meu entender minha luta não estava errada. O Movimento Armorial para mim, as idéias que estavam contidas no Movimento Armorial, não estavam erradas. Já fiz uma reavaliação de muita coisa em que acreditava, mas o Movimento Armorial não estava aí. Eu errei muita coisa, mas não com o Movimento Armorial. Ainda sustento aquelas idéias. Isso não quer dizer que eu ache que o Movimento fique congelado. Mas a linha geral que foi traçada naquele tempo ainda aceito. E tudo o que a gente ainda está fazendo é desenvolvimento, aprofundamento, mas não no sentido de renegar nada.
Entrevista - Eu queria retomar a questão da religião. Você disse que não concorda com arte política, mas existe muita religiosidade na sua obra.
Ariano - Veja bem, como estava acabando de dizer, sou contra a arte política, também sou contra a arte religiosa ou contra a arte filosófica. Acho que as idéias políticas, religiosas e filosóficas do autor podem sair e devem sair no que eles fazem, mas não que ele coloque a sua obra a serviço de nenhum pensamento, seja religioso, seja filosófico ou seja político. Desde o momento que passei a adotar uma visão religiosa do mundo tenho a impressão de que isso começou a aparecer. Nas minhas peças, por exemplo.
Entrevista - Em alguma em especial?
Ariano - Na “A Pena e a Lei” você ver essa visão religiosa do mundo, no “Auto da Compadecida” também está. “Casamento Suspeitoso”, “O Santo e a Porca”, a primeira figura é o Santo, não é? Eu acho que no meu teatro todo está presente, no próprio romance “A Pedra do Reino” essa visão religiosa também está presente. E na poesia também.
Entrevista - Você falou aqui que lia muito várias vezes o mesmo livro. Mas a gente estudando um pouco a sua obra achamos influências de diversos autores. Seu processo de criação é mais trabalho, pesquisa, ou é mais inspiração?
Ariano - Eu acho… sei que tá muito em moda a pessoa pegar a existência da inspiração, não nego, acho que existe, o nome talvez não seja muito feliz. Parece que esse nome foi criado pelos romanos. Mas acho que a imaginação criadora, certos impulsos da criação, isso para mim existe e são indispensáveis. Para mim, o grande momento de alegria, é o da invenção, da criação. Em mim isso é muito presente e sou, talvez, até mais intuitivo do que reflexivo. Agora, isso não me leva a negar a outra parte. A função da razão é grande também. Mas é um segundo momento. A intuição criadora para mim está no começo. Quando fiz concurso para a universidade, um professor questionou o rigor científico da minha tese. Eu disse a ele uma coisa, porque acredito nisso. Disse a ele: “olhe, não leve isso muito a sério, porque separar o cientista do escritor, do artista, essa separação entre escritores e artistas de um lado e cientistas de outro, isso só existe na pequena ciência”. A grande ciência não tem nenhuma separação. Eu citei para ele um depoimento que eu li de Einstein e que foi uma das coisas mais importantes que á vi nesse ponto de vista. Ele conta nesse depoimento como nasceu dentro dele a idéia da relatividade. Ele diz que estava nos Alpes, estava de férias ou qualquer coisa, numa cabana, isolado e estava com uma vitrola daquelas antigas de corda ouvindo música de Bach, de quem ele gostava muito. Num dia, passou a manhã ouvindo Bach e aquilo provocou nele uma sensação de exaltação. Tinha nevado e ele, com aquela sensação, começou a andar na neve e, de repente, começou a ter uma idéia de como seria o Universo. Veja bem, motivado pela música de Bach, o que deu nele uma sensação de exaltação e ele começou a refletir sobre o Universo e repare a frase dele: “eu tinha aquela idéia e era tão bonita, era tão bela, que não podia deixar de ser verdadeira”. “Era uma coisa tão bela que não podia deixar de ser verdadeira”. Você veja, olhe, isso é a mesma coisa que acontece com qualquer pessoa no momento da invenção. É um momento de grande alegria, de grande exaltação. No campo da literatura e no campo das artes em geral. Pois bem, ele teve essa visão, digamos assim, do que seria o Universo e disse que a visão era tão bela que não poderia deixar de ser verdadeira. E só dezesseis anos depois, conseguiu reduzir aquela intuição, que teve uma momento de iluminação, só nesse momento, dezesseis anos depois, foi que ele conseguiu reduzir a fórmulas inteligíveis e racionais aquilo que ele tinha visto. Então, um pequeno cientista vem, lê aquilo que ele vislumbrou, sai assim para chegar lá, mas o caminho dele foi contrário. O pequeno cientista talvez tenha dificuldades de entender, mas o grande não tem. Porque tanto eles, tanto os grandes cientistas quanto os escritores e os artistas, partem da noite criadora da vida pré-consciente do intelecto. É aí que se dá a revelação, a criação, a invenção. Agora, depois, o trabalho de reduzir isso a fórmulas compreensíveis e aceitáveis pelos outros, aí a parte mais racional do espírito desempenha o papel dela.
Entrevista - Você demora muito para escrever um livro. Você se considera um perfeccionista?
Ariano - Capaz de ser (Risos). Olhe, tenho uma amiga que diz uma coisa muito engraçada: “olhe, Ariano, eu já descobri que você não está querendo escrever esse livro, não. Você gosta de estar escrevendo”. (Risos) É um pouco disso também. Há um pouco de perfeccionismo. Eu pretendo, sinto a necessidade de dar o melhor de mim. E enquanto não atingir o mais que posso, fico louco. Eu tinha uma frase de São Tomaz de Aquino que por um lado me criou um problema mas por outro também me ajudou um pouco. Ele disse: “o que é digno de ser feito, é digno de ser bem feito”. Não sei se faço bem feito, mas o mais bem feito que posso, isso eu procuro fazer.
Entrevista - Você se considera uma espécie de grande cientista?
Ariano - Não, não sou um grande cientista, sou um não-cientista. Mas o que digo é o seguinte, para mim, essa parte do trabalho tem alguma coisa a ver com essa segunda parte do trabalho… no momento que invento, parece mais com aquele depoimento de exaltação que ele falou. Agora, veja bem, quando vou escrever, o que tenho que fazer é encontrar palavras eficazes para despertar nos outros aquilo que senti. Tem muita gente que pensa, diz assim, às vezes fico com um medo danado, às vezes chega gente pra mim e diz: “Ariano, eu queria que você lesse alguma coisa que escrevi”. Aí “filho, meu filho querido, foi escrito com o coração, portanto para mim isso é sensibilidade”. Aí fico com um medo danado, porque sensibilidade todo mundo tem (Risos). Todo mundo tem. Agora, o artista, o escritor, é aquele que é capaz de reduzir aquele momento de sensibilidade, de iluminação, de revelação que todo mundo tem. Com o seu namorado, com uma pessoa que você gosta, você pode acreditar que aquele momento de felicidade que você tem junto com ele seja melhor que os outros. É a mesma coisa, a sua afetividade, a sua imaginação, está sendo movida por um sentimento muito forte no momento. Pois bem, agora, se você, além de sentir isso com grande intensidade, é capaz de reduzir esse teu sentimento a palavras eficazes, capazes de despertar em outra pessoa… se você não tem isso, você não é escritor, mas se você tem, é escritor. Outra coisa. Às vezes, as pessoas pensam que pelo simples fato de comunicar um sentimento forte que eles tiveram, isso é escrever… Escreveram não, tá certo? Uma vez, um aluno meu chegou para mim e disse: “Ariano, eu queria que você lesse isso para mim”. Aí eu li: “Era uma manhã de sol e eu estava muito alegre”. Eu digo, olhe, você só está comunicando que você estava numa manhã de sol e estava alegre. Começa pela palavra “alegre”, a palavra “alegre” não é alegre. A palavra “alegria” não é eficaz para despertar um sentimento de alegria, porque é uma palavra abstrata inclusive. Por acaso, eu estava com um livro de um grande poeta pernambucano, Joaquim Cardoso, era meu amigo, eu gostava muito dele e era um grande poeta. Por acaso, eu sabia que nesse livro tinha um poema que começava assim, mais ou menos o que ele queria fazer: “Numa manhã de domingo o sol incendiava os cachos amarelos das acácias”. Repare que diferença: “Era de manhã e eu estava alegre”, você não dá alegria nenhuma a quem lê. (Risos) Mas o outro, olhe, ele pega logo imagens concretas, a gente vê logo um cacho de acácia amarelo e o sol incendiando o cacho. Essas palavras e essa imagem concreta fazem com que quando a gente lê, entre logo no estado de espírito com que o escritor estava quando screveu. Entendeu qual é a diferença? No momento em que Joaquim Cardoso vê essas acácias amarelas, com o sol em cima, ele teve um momento de revelação, de iluminação, igual ao que o meu aluno teve, agora, para transformar essa sensação em imagens e palavras eficazes, capazes de despertar nos outros, aí trabalha-se racionalmente. Aí é que ele se parece com o cientista no segundo momento.
Entrevista - Ariano, você é da Academia Brasileira de Letras, cadeira 24, que pertenceu a Euclides da Cunha…
Ariano - Não, infelizmente não. Fui até muito criticado por causa disso, porque passei o mês todinho só falando do Euclides da Cunha. E não é a minha cadeira. Porque é uma certa obrigação do acadêmico fazer um elogio dos seus… eu fiz, eu educadamente fiz à força, num sabe? Porque eu queria falar mesmo era de Euclides da Cunha, aí falei. Mas ele não era da minha cadeira.
Entrevista - A qual cadeira você pertence?
Ariano - Rapaz, deixa disso. Eu vou dizer, deixa me lembrar. Os meus antecessores, o patrono, é um poeta chamado Manuel de Araújo Porto-alegre, Barão de Santo Ângelo, é um famoso poeta, não grande coisa, mas é famoso, é autor de um livro chamado “Colombo”. Eu lia muito, é engraçado, lia muito na infância, acho que hoje vocês não lêem mais. Ele começava assim: “Troca a idéia e os hinos da vitória de Fernando Isabel do Mourogel”. [Aqui, Ariano erra, o poema começa, na verdade, assim: “Troam na Ibéria os hinos da vitória /Que Fernando e Isabel do Mouro houveram.”] Eu achava estranho esse “gel”. Pois bem, é Manuel de Araújo Porto-alegre, era um gaúcho que até recebeu o título de Barão de Santo Ângelo, esse é o patrono. O fundador da cadeira foi Carlos de Laet, que foi um publicista, um polemista católico, era uma figura muito curiosa. Ele tem uma história ótima. Ele era católico enquadrado, um dia começaram as primeiras notícias da evolução, do evolucionismo de Darwin, e era nos primeiros dias da República, e Benjamin Constant era o general, o homem todo poderoso da República. Benjamin Constant Boteiro de Magalhães era o general e Carlos de Laert era professor do Colégio Pedro II e um filho de Benjamin Constant, todo adolescente, que era um sujeito antipático, estava lá na aula e Carlos de Laet começou a falar mal, falar contra o evolucionismo, aí de repente o rapaz virou-se para ele e disse: “O Sr. sabe quem é meu pai?”. Aí Carlos de Laet disse: “Sei”. “Pois meu pai lá em casa vive dizendo que a gente descende do macaco”. Aí Carlos de Laet disse: “Bom, mas isso aí é questão de família” (Risos). Ele pensou que ia intimidá-lo. “Não, aí não, aí já é questão de família, nisso eu não me meto”. Bom, esse é o segundo, Carlos de Laet. O terceiro foi um camarada curioso chamado Ramiz Galvão, esse camarada tinha duas coisas que me tocaram como pessoa, primeiro era do mesmo dia que eu, só que no dia que nasci ele estava completando 81 anos, sou de 16 de junho de 1927. A outra coisa é que ele era bibliotecário como meu personagem da “Pedra do Reino”. Então, Manuel de Araújo Porto-alegre, Carlos de Laerte, Ramiz Galvão, aí veio Viriato Corrêa, Joracy Camargo, Genolino Amado e eu sou o sétimo.
Entrevista - Eu queria saber o que foi que levou o senhor a se candidatar se o senhor aparece tão pouco lá.
Ariano - Eu não me candidatei, me candidataram (Risos). Não, é verdade, me candidataram, é verdade, é verdade, é verdade. Vou explicar. Nunca me candidatei. Acho até que - não sei os outros, mas nunca quis me candidatar. Acho que aquilo ali é uma honraria e honraria não se reinvidica. Se quiser me dar aceito ou não aceito. Eu não queria. Nunca reinvidiquei. Bom, e já tinha outra experiência minha muito ruim com a Academia antes de entrar lá. Um dia estava na minha casa e fui procurado por uma delegação da Academia Paraibana de Letras. Foram me dizer que queriam que eu fosse para a Academia Paraibana de Letras, e… aí disseram. Eu disse: “olhe, eu não sei se eu dou para isso”. Aí disseram: “olhe, é o seguinte, você vai ser eleito por unanimidade e não recuse, porque o Estado é um Estado pobre, um Estado pequeno e você e tal e cosia e etc, etc, etc…”. Aí eu disse: “tá certo, vocês estão usando um argumento que eu vou aceitar. Vocês estão usando esse argumento da Paraíba ser um estado pequeno e eu sou paraibano, eu vou aceitar. Mas me diga uma coisa, você estão sabendo quem vocês estão convidando?”. Aí disseram: “Sabemos”. Aí eu digo: “olhe, eu não vou mudar meu jeito de ser não. Vocês estão esperando que eu mude meu modo de ser? Eu não vou mudar não. Vou continuar do mesmo jeito que eu sou. Depois não venham chiar”. Falar em decoro acadêmico, não sei o quê. Eu não vou mudar meu jeito de ser. “Nós queremos você do jeito que você é mesmo”. Tá certo, tudo bem. Aí eu fui. Fui eleito por unanimidade para a Academia Paraibana de Letras. Aí chegou lá uma outra delegação, para me comunicar que eu tinha sido eleito, pedindo para eu marcar a posse, a data da posse. Aí disseram: “olhe, Ariano, agora, lá nós temos uma práxis, o acadêmico no discurso de posse, porque a gente edita uma plaqueta e distribui no dia”. Aí eu… tá certo, tudo bem. Ficou combinado, o genro do presidente ia passar lá na minha casa, marcamos a data, 24 de setembro, que era o dia que eu concluía o “Auto da Compadecida”. Escrevi o discurso, o genro dele passou lá e levou para a Paraíba, voltou de noite e disse: “olhe, mandaram disser que a posse tá adiada”. Que diabo é isso, que é que tá havendo? Aí passaram seis meses, oito meses, um ano ou mais depois, chegou outra delegação para dizer: “nós viemos falar com você que aquele discurso tá muito brabo”. Era no tempo do Regime Militar. “Rapaz, um comandante de um regimento lá vai assistir a todas as posses e nós estamos lhe dizendo isso para o seu bem porque aquilo vai lhe trazer problema”. Eu digo: “vai trazer problema?”. “Vai”. “Eu topo!”. Aí um deles: “mas eu não tenho coragem de ficar junto de você ouvindo aquele discurso” (Risos). “Você não pode mudar?”. Eu digo: “não, mudar não mudo não. Eu avisei a vocês desde o começo. Eu não mudo o discurso”. Aí eles dizem: “como é que vai ser?”. Eu digo: “Não vou (Risos). Vocês que resolvam”.
Entrevista - O Sr. lembra do discurso?
Ariano - Me lembro, me lembro. Depois lhe digo, era um discurso até grande. Aí eles alegaram até isso: “rapaz, Ariano, aquilo tá muito grande, corte uns pedaços da coisa”. O motivo que ele tava com medo mesmo era por que eu dizia… vou contar a história. Começaram a me dá medalha e tenho um medo dessas coisas danado, porque vão dando essas medalhas para a gente… Quando comecei nisso, a dar entrevista, dei uma dizendo que ninguém me desse mais medalha, porque quem andava de medalha no sertão era burra de cigano (Risos). E aí eu disse isso, depois de burra de cigano, eu só tinha mais medalha do que Duque de Caxias (Risos). Aí ele disse: “como é que vai ser?”. Aí eu disse: “Sei não. Vocês que resolvam. Vocês me tirem!”. Aí ele disse: “Mas assim vai muito mal. Muito ruim para a gente”. Aí eu disse: “Então não tire”. Aí ficou feito a sogra de São Pedro. Fui eleito por unanimidade e expulso antes de entrar (Risos). Mas a função nunca se configurou, ficou assim, porque para eles elegerem alguém tinham que dizer que eu não tinha entrado. Aí ficou assim. Depois que passou o Regime Militar, foi outra delegação, já com outro presidente. Foi falar comigo. “Agora passou, agora você já pode ir”. Aí eu disse: “Agora eu não”. Aí ele disse: “Mas rapaz, tá lá a cadeira”. Aí eu digo: “Então elejam outro”. Aí elegeram outro. Então eu estava com essa experiência muito ruim. Quando foi uma vez, Rachel de Queiroz e Adonias Filho resolveram fazer um movimento para me candidatar. Aí eu disse: “olhe, minha posição é a seguinte, aceito, mas não disputo. Eu não disputo nem faço campanha, não faço zoada”. Nesse momento, soube que Otto Lara Resende ia se candidatar; depois parei e: “Não aceito de jeito nenhum, não disputo com ninguém”. Depois recebi uma carta de Jorge Amado e João Cabral de Melo Neto fazendo um apelo para eu ir para a Academia. Mas nem aí aceitei. Quando foi em 87, chegou aqui um acadêmico que é pernambucano. “Ariano, vim aqui falar para você entrar para a Academia Brasileira de Letras”. Eu disse: “olhe, rapaz, as minhas experiências com a Academia não são boas”. “Não, rapaz, lá o negócio vai ser bom”. “Mas não quero disputar”. “Ninguém vai disputar com você, não sei o quê”. “Não quero disputar inclusive porque sou muito ruim de voto. Minha família é péssima de voto. A última eleição que a gente ganhou na Paraíba foi em 1928. Eu nunca vi uma família pior de voto que a minha, rapaz (Risos). É uma desgraça. Eu me candidato para uma desgraça dessa, um negócio que nem quero e ainda vou passar pelo dissabor de perder uma eleição (Risos). Um negócio que não tá no meu projeto de vida”. “Não, rapaz, não vai haver isso não. Ninguém vai se candidatar contra você”. Aí eu disse: “Olhe, outra coisa, sou um candidato muito ruim, não faço campanha”.. Aí ele disse: “Não se incomode, o presidente mandou dizer a você que ninguém vai se candidatar além de você”. Realmente ninguém se candidatou. De repente me bateu um medo. “A única coisa que eu quero é que você assine essa carta”. Eu assinei a carta me inscrevendo. Assinei, ele levou. Não fui nem lá. Por isso que eu digo, não me candidatei, me candidataram. De repente me veio uma idéia. Telefonei para ele: “me diga uma coisa, Marcos, cadê o número que se a gente não conseguir, a gente não se elege?”. “Você tem que ter 19 votos”. Aí eu disse: “Eu não quero mais.” (Risos). “Agora que vou ser desmoralizado, perder pra outro ainda vai, mas perder pra ninguém, rapaz, hem? (Risos)”. Aí ele disse: “Não, rapaz, deixa de ser besta”. Mas fui escolhido. Tinham 37 acadêmicos e eu tive 37 votos. Nem abstenção houve. Nesse caso seria um orgulho, uma pretensão muito grande, recusar. Mas, eu fui, tomei posse. Mas não vou é porque não gosto de viajar. Não é desatenção com a Academia não. Eu tenho horror a viajar.
Entrevista - A gente pegou um material da Folha de São Paulo, numa matéria recente você dizia que a Secretaria de Cultura de Pernambuco iria beneficiar tudo que fosse popular ou ligado ao povo, mesmo não sendo popular, mas fosse ligado ao popular. Eu queria que você desse uma definição para cultura popular.
Ariano - Pois não. Vou lhe dar. Passei muito tempo procurando isso, nunca encontrei. Li vários livros de sociologia da cultura inclusive e não encontrava em lugar nenhum. Eu tive que descobrir sozinho. Mas acho que descobri e vou passar… Olhe, no meu entender, esse problema da cultura popular só existe e tem importância nos países onde uma domina outra, como é o caso do Brasil. Aqui, a cultura ibérica portuguesa dominou a cultura negra e a indígena. Normalmente, quando acontece isso, a cultura popular é a que resulta da cultura ou das culturas dominadas. E a cultura geral fica sendo do povo que dominou os outros. Na Idade Média aconteceu isso. O povo de língua latina dominou os chamados bárbaros no Império Romano pra se formar a Idade Média. Tô falando de antes da Idade Média. Como, por exemplo, Roma dominou Portugal e a Espanha, a Península Ibérica… Os romanos dominaram povos ibéricos e celtas e impuseram a cultura latina como cultura erudita. E a cultura desses povos, ibéricos e celtas, ficou sendo a cultura popular, quando a Península Ibérica foi romanizada. Depois houve uma fusão, inclusive uma cultura influenciava a outra. A cultura popular influenciou a erudita e vice-versa. Mas no primeiro momento da dominação era bem claro isso: a cultura dominante dos romanos e a cultura dominada dos povos ibéricos, as culturas dominadas dos povos celtas. Depois que a Península Ibérica se romanizou, ela veio romanizar aqui. Trouxe uma cultura de origem romântica. Não era mais romana, mas romântica, originária da cultura romana. Chegaram aqui os portugueses e estabeleceram a cultura européia, principalmente a ibérica, que era deles, como sendo a cultura erudita. Nisso, os negros, os índios e os descendentes mestiços. E os filhos de negros, índios e ibéricos pobres fizeram esse enorme lastro que hoje é a cultura popular. Ficou claro?
Entrevista - Ariano, no livro de James Joyce, Ulisses, tem um personagem chamado Stephen Dedalus que diz que um elemento permeia toda a cultura, a arte irlandesa, são os espelhos quebrados das empregadas.
Ariano - Olhe! Talvez ele esteja fazendo uma imagem. Uma imagem exatamente disto que estou dizendo. Enquanto os irlandeses queriam aquela cultura de elite, que seria a cultura mais erudita, os irlandeses da classe dominante; as empregadas estavam lá com seus espelhos quebrados. Acho que ele tá dizendo que o espelho quebrado é o reflexo da sua cultura popular.
Entrevista - O que eu queria saber de você, do seu ponto de vista, o que é que permeia nossa arte, principalmente a arte nordestina?
Ariano - Aqui está o espelho (indica um folheto de Patativa do Assaré). Esse é o espelho quebrado de primeiríssima ordem. Acho que é aí que deve caracterizar essa impressão. Aliás, os irlandeses tem uma visão muito parecida… Veja bem. Quando comecei a escrever pra teatro, sob a influência, a visão e a liderança de Hermílio Borba Filho, uma pessoa que era ligada ao teatro do sul, que era Paschoal Carlos Magno, não sei se já ouviu falar nele… Paschoal Carlos Magno veio aqui e me… Não sei se você sabe, mas houve um grande movimento de teatro na Irlanda que procurava exatamente se ligar a essa cultura popular irlandesa. Era de escritores como Synge, que tem uma grande peça chamada “Ginetes ao Mar”, Sean O’Casey, são dois grandes dramaturgos irlandeses que procuravam se basear nessa cultura popular e nacional. Pois bem. O movimento deles se chamava O Teatro da Irlanda [Abbey Theatre]. Paschoal Carlos Magno quando veio aqui tomou conhecimento de que a gente estava começando a fazer esse movimento, que ele batizou como Teatro do Nordeste, exatamente ligando a esse movimento do teatro… Achando uma coisa semelhante ao Teatro da Irlanda.
Entrevista - Ariano, me diga uma coisa. Você considera a sua obra popular?
Ariano - Não. Dentro dessa linha seria até uma impostura, porque o nome popular é muito difícil de falar sobre, existem várias acepções diferentes da mesma palavra. Tem gente que acha que o que é popular é o que tem uma divulgação muito grande. Se for dentro dessa linha, só existe uma forma de teatro popular que são as novelas de televisão. Nenhum teatro, nenhuma peça de teatro alcança nem um centésimo daquela audiência, daquele público. Mas não é nessa linha que uso a palavra popular. Meus livros… Eu sou um escritor de poucos livros e poucos leitores. Mas dentro… Pra mim, os escritores populares são os escritores do povo. Os escritores que pertencem àquilo que chamo de quarto Estado. Vocês se lembram que na Revolução Francesa havia três classes sociais? Chamavam-se os três Estados: Clero, Nobreza e Povo. Sendo que esse povo era uma ficção porque de fato havia duas classes ali. Havia a burguesia, o proletariado e os camponeses pobres. O operariado e os camponeses pobres eram o povo. A burguesia não tinha nada de povo, mas eles chamavam povo. É por isso que chamo o quarto Estado porque pra mim é: Clero, Nobreza, Burguesia e Povo. Eu chamo o quarto Estado, entendeu? Esse é que faz a arte popular, quer dizer, Patativa do Assaré é um poeta popular. Jota Borges, com seu grande conterrâneo, Damásio de Paula, um grande gravador cearense. Eles são gravadores populares porque nasceram no quarto Estado. Samico não. Samico é como eu. Ele é um gravador erudito que parte do popular para criar um outro tipo de arte. Bom… E você vê aí… Olhe aqui. Esses aqui são gravadores populare. Aliás, é um só. É Marcos Francisco. É uma gravura de grande qualidade, tá vendo? Mas o autor é popular porque é um homem do povo. Agora, Samico se baseia no popular, mas não é um gravador popular, partiu do popular, se inspirou no popular como eu no meu teatro. Mas ele não é um popular. Mas talvez gostasse de ser, como também eu gostaria de ser, mas não sou por circunstâncias de nascimento, de formação. Como posso ser um artista popular tendo uma formação universitária?
Entrevista - Mas pra se ter o caráter popular sempre tem que ter a origem popular?
Ariano - Eu acho que sim. O popular tem. Não vou mentir, não faço o popular porque não sei. Nem gosto de fingir porque vai numa postura que eu acho que tá errada. Agora, isso não quer dizer que eu me considere superior. Eu acho diferente. O grande pensamento aqui é exatamente porque não existe… Não é uma questão de superioridade, é uma questão de diferença… É um pouco diferente porque ele aqui é um grande gravador, mas a visão do mundo dele, a visão da arte é diferente da de Samico, entendeu? Samico não pode fazer arte popular. Não pode nem que ele queira. Como eu não posso.
Entrevista - Ariano, você acabou de falar que não entra nessa de massivo, do popular no sentido do massivo, de grandes transmissões para o povo geral. Então, como é que você não vê a adaptação de “Uma mulher vestida de sol” para televisão e agora “A farsa da boa preguiça”?
Ariano - Veja bem. Não tenho nada contra a televisão. Não acho que a televisão seja horrível, seja errada. Agora, nunca concordei e jamais concordaria em adotar… Veja bem, o que acho ruim na arte de lá é porque, ordinariamente, às vezes, as pessoas confundem a arte popular com a arte de massa. É muito diferente, não tem nada a ver. O que acho ruim na arte de massa é porque às vezes e, normalmente, eles fazem assim… Aliás, por definição, eles procuram baixar o nível na busca de um gosto médio, que para mim é uma coisa altamente perniciosa. Eu acho que o gosto médio… A ter gosto médio é melhor ter mau gosto, tá entendendo? Porque existem grandes escritores que têm mau gosto. Mas nunca vi um grande escritor ter gosto médio. Não pode, tá certo? Então, fico danado às vezes… As pessoas, às vezes, me vêem falando mal de certas coisas. Tem gente que vem perguntar a mim: “Você é contra a cultura americana?” Deus me livre. Não tenho nada contra a cultura americana, mas não tenho nada contra a cultura americana verdadeira. Não tenho nada contra Melville, grande escritor autor de Moby Dick, autor de uma obra prima da literatura universal. Agora, contra Michael Jackson e Madonna eu tenho, porque querem nivelar por ali. Deus me livre. Os próprios americanos que têm juízo são contra também. Não podem ser a favor de uma porcaria daquela. Não sou contra a televisão. Agora, nunca tinha concordado em deixar uma obra minha ir pra televisão porque eles queriam exatamente que eu mudasse minha maneira de ser. Nunca concordei. A única vez que concordei, no ano passado, deixei fazer uma peça na qual tomei parte, fiz a adaptação, como fiz agora. “Uma mulher vestida de sol”. E agora “A Farsa da Boa Preguiça”. Ele [Ariano refere-se ao diretor Luiz Fernando Carvalho] não exige que eu baixe o nível, ele faz de acordo com o que quero, como gosto e com o nível alto, com bons atores. Ele me ouve até para escolha dos atores. “Uma mulher vestida de sol”, por exemplo, que tinha indicado a Tereza Seiblitz, fui eu que escolhi porque a vi numa novela e gostado muito dela como atriz. Eu tinha visto ela fazer Renascer. Fiquei feliz dela fazer o meu personagem Rosa, fez e fez bem. Eu pedi Raul Cortez. Os outros ele me sugeriu e aceitei, não foi escolha minha. Raul faz o pai da moça, a Rosa. Pra fazer o pai de Francisco (namorado de Rosa), pedi um ator de quem gosto muito, o Carlos Vereza, mas ele não pôde porque estava trabalhando numa novela. Concordo que vá para televisão, mas não que baixe o nível a procura de um hipotético gosto médio que nem sei se existe.
Entrevista - No que você já viu em rádio, jornal e televisão, como é que os meios de comunicação tratam a cultura popular?
Ariano - Do que vi, tratam muito mal, ou diferente, ou com deturpação. Pelo que tenho visto na televisão, é muito raro… Não me lembro de exemplo nenhum. Veja bem, houve um tempo em que a Globo conseguiu produzir um programa chamado Som Brasil, que deu algumas vezes uma oportunidade ou outra a artistas populares. Eu me lembro que uma vez vi uma coisa muito boa que… Um camarada de Minas cantava cantigas ligadas à folia de reis. Quando botavam uma coisa popular, aí era bonito. Agora mesmo, no ano passado, vi uma coisa bonita que a Globo fez a propósito daquela comemoração ao Divino Espírito Santo que existe em Pirenópolis, em Goiás. Não sei se vocês viram isto, viram isto? Aliás, era uma coisa muito bonita porque o líder da cavalgada morreu no momento da cavalgada. Uma coisa triste, mas muito bonita, foi a coisa mais bonita que já vi. Os jovens violeiros que eram doidos por ele tocando viola no enterro e chorando. Foi uma coisa emocionante, muito bonita. Mas é muito raro. E logo depois, primeiro era uma vez ou outra que aparecia, logo depois, mesmo com isso, acharam que o programa estava tomando uma conotação, acho que arcaica, não sei o quê. Modificaram o programa e depois acabaram.
Entrevista - Antes secretário de cultura do município de Recife e agora como secretário de cultura do Estado de Pernambuco. São dois governos totalmente diferentes, um era do regime militar, um governo regido pela Arena, um partido que sustentava o regime militar e, hoje, no governo socialista de Miguel Arraes. Eu queria saber, a nível de experiência, quais as diferenças fundamentais entre as duas gestões, a sua relação com o poder e que você falava alguma coisa sobre as suas expectativas com relação ao próximo Ministério da Cultura do governo de Fernando Henrique?
Ariano - Bom. Vamos dividir. A pergunta tá grande. Em primeiro lugar, veja bem, faço uma distinção entre cargos públicos e cargos políticos. Se fosse político, não aceitaria, porque não tenho vocação política. Acho que para isso tem que haver vocação como em qualquer outra coisa. Não tenho as qualidades que são indispensáveis a um político. Por exemplo, astúcia. Mesmo um bom político e, principalmente, um bom político, precisa ser astucioso porque se não for, se não tiver astúcia, se não tem habilidade, pessoas que são contra ele e são ruins enrolam ele em dois minutos. Não tenho a menor capacitação nessa linha. Qualquer vereador da menor cidade de Pernambuco me engana em dois minutos e não tô sabendo direito o que é. Ele arma a arapuca e eu caio. Então, não tenho a menor capacidade política. Agora, tanto assim que recusei… Houve um movimento pra eu ser vice-governador do Dr. Arraes. Recusei e depois, por mais distante que pareça, cheguei a ser cogitado para vice da chapa de Lula. Houve uma renúncia daquele Bisol, lembra? Naquela época, o partido socialista de Minas… Eles começaram a ter problemas para saber quem botavam para ser o substituto do Bisol. Propuseram um jurista chamado Evandro Lins de Silva, fizeram colocações contra ele, que tinha defendido Doca Street. Por causa disso não deixaram Evandro ser o vice. Bom, quando tava nisso, recebi um telefonema de um amigo que é escritor também. Ele disse: “Ariano, olhe, Bisol renunciou agora. Parece que quem vai ser o substituto de Bisol é Roberto Freire”. Ex-senador daqui de Pernambuco. Eu disse: “Tá certo”. Bem, doutor Arraes mora na minha rua. Eu estava olhando umas esculturas que estavam acertando lá na minha casa, quando doutor Arraes abre o portão de casa e sai. Doutor Arraes foi chegando, chegou bem perto e eu disse: “Doutor Arraes, Bisol renunciou não foi?” Ele disse: “Foi. E você sabe quem é a pessoa que vai substituí-lo?”. “Sei. É Roberto Freire”. “É não. É você”. Pensei que ele tava brincando, caí na risada assim, do jeito que vocês estão rindo eu ri (risos). Ele disse: “Não. Não ria não, que tô falando sério”. Eu disse: “Que é isso?” Aí ele disse: “É. O pessoal do partido socialista de Minas me telefonou agora para que eu falasse com você, para você ser o candidato. Você nunca defendeu o Doca Street, depois, é uma pessoa aqui conhecida e tudo”. Eu disse: “De jeito nenhum”. Aí ele disse: “Bom. Eu achava… Eu disse a eles mesmo, que achava, do jeito que conheço você, que você não aceitaria, mas, de qualquer maneira, quem tinha que dar a resposta era você e não eu”. Então o senhor diga… E nesse momento, já chegaram jornalistas lá em casa do Diário de Pernambuco, tirando retrato. Aí eu disse: “olhe…” Me virei para o doutor Arraes e fiz uma brincadeira. “Olhe, doutor Arraes, o senhor diga que não vou aceitar inclusive porque já estou cansado com esse negócio de ser segundo. Já andaram me chamando pra ser vice-governador da sua chapa. Agora, vice de Lula. O senhor diga a Lula que eu só aceito se for o cabeça de chapa. (Risos) Ele retira, eu sou o presidente e o vice é ele”. Aí doutor Arraes: ”É uma boa resposta, é uma boa saída”. Chegaram uns jornalistas e eu disse: “Vocês acabem com isso. Eu não sou político. Passei a vida todinha me preparando pra ser escritor e não político”. E realmente não aceitei. Agora, durante o regime militar, aceitei duas coisas. Não foi só para secretário de cultura do Recife. Aceitei ser membro do Conselho Federal de Cultura. Foi uma coisa que me questionaram muito, mas na época eu não podia ser muito claro porque… Eu fui pra lá por recomendação de uma cearense, Rachel de Queiroz, que é muito minha amiga. Rachel, de quem politicamente discordo mas de quem gosto muito como pessoa. Rachel era parente de Castelo Branco, e Castelo Branco me nomeou para o primeiro Conselho Federal de Cultura. Bom, quando fui nomeado, fui a Dom Hélder, queria falar com Dom Hélder. E disse: “Dom Hélder, aceito ou não aceito esse negócio?” Nós estávamos vivendo numa época muito ruim, estava com meus amigos sendo presos. Sou muito amigo do Paulo Freire, o educador. Paulo Freire tava preso. Dom Hélder disse: “olhe, Ariano, você aceita e aí fica intercedendo por esse pessoal todo”. Eu tinha amigo militares. Por exemplo, o general Murici, que era o general comandante daqui, era irmão de um crítico literário e musical chamado Andrade Murici, grande especialista no movimento simbolista. Por causa disso, eu era amigo do general Murici e intercedi por muita gente, consegui… O governador da Paraíba que morreu agora, Antônio Mariz, foi uma pessoa por quem intercedi junto ao general Murici. O presidente do Partido Comunista aqui, Iran Pereira, ficou escondido na minha casa muito tempo. Depois ele saiu e mataram ele em São Paulo, coitado. Pois bem, aí Dom Hélder disse: “Aceite porque uma palavra sua como membro do Conselho Federal de Cultura tem mais força do que uma palavra só de um escritor”. Então aceitei. Mas depois arranjei uma briga com o conselho porque um partido de Recife, que era ligado ao regime militar, derrubou uma igreja, queria derrubar a Igreja dos Martins. Entrei num movimento para defender a igreja e o Conselho Federal de Cultura entrou comigo e depois se acovardou e correu. Eu disse que no dia em que a igreja for derrubada, eu saio, pois se um conselho de cultura não serve nem para defender uma igreja é porque não serve pra nada. E saí mesmo, pedi demissão e saí. Pois bem, no cargo de secretário de Cultura do Recife, um amigo pessoal, Antônio Farias e ele me chamava para ser secretário de Cultura. Eu estava exatamente, na época, com o Movimento Armorial sendo estruturado. Aceitei pra segurar o Movimento Armorial, porque nessa época tudo era praticamente proibido… bom, falar em cultura popular era proibido mesmo. Todo mundo que era ligado à cultura popular tava sendo perseguido. Fecharam os movimentos. O movimento de cultura popular tava fechado. Durante algum tempo só se falava de cultura brasileira e cultura popular no Brasil num canto. Era na Universidade Federal de Pernambuco e por minha causa. Eu era o diretor do departamento do Centro Cultural e comecei o movimento Armorial lá. Depois tive um desentendimento com o meu sucessor. Foi nessa época que o prefeito, meu amigo, me chamou pra ser secretário de Cultura de Recife. Aceitei pra defender o Movimento Armorial. Foi por isso e porque não era um cargo político. Agora, sempre tive, sempre exigi liberdade, não admiti interferência de ninguém. E mesmo ele sendo meu amigo, houve um momento em que tive que separar. Porque foi um momento em que a gente começou a tentar, fazendo o general candidato da oposição contra Figueiredo. Quem lançou a candidatura do general fui eu. Agora, justiça seja feita. Eu lancei, escrevi um artigo lançando a candidatura do general, mas não teria efeito nenhum se Severo Gomes, que era político, não tivesse adotado a minha idéia e levado adiante. Eu e ele juntos começamos a levar a candidatura do general. Depois, pedi demissão. Fui a esse meu amigo e disse: “Olhe, vou ter que pedir demissão, porque estou tomando uma posição política contrária à sua. Foi um prazer estar num cargo de confiança seu, gosto muito de você, você gosta muito de mim, mas não posso… Porque se um jornalista vier perguntar, vou dar uma declaração contra o general Figueiredo e aí vai ser contra tudo que você pensa”. Aí, ele disse: “tá certo”. Pedi demissão e saí, antes de terminar o mandato.
Entrevista - Pra gente finalizar, você poderia falar sobre os planos que você tem agora na Secretaria de Cultura e que você contasse pra gente uma história, um causo…
Ariano - Eu não sei contar um causo assim. Eu conversando a propósito de determinadas coisas, eu conto. Como acabei de contar um sobre Carlos de Laerte. Mas se dizer assim: “Conte uma coisa”, eu não me lembro de nada. Me baixa uma burrice (Risos)… Eu não sei não. Agora, quanto aos planos, vou dar a vocês, tá certo… (Ariano mostra um livro que conta o projeto cultural da Secretaria). Deixe eu corrigir aqui. (Silêncio) Como eu já tô cansado - é outra coisa ruim da velhice, a gente fala muito e cansa. (Silêncio) Pronto. Aqui está o projeto que eu fiz, vocês levam pra lá, tá certo? Como é o nome do grupo, da faculdade?
Ariano - Eu vou dedicar ao curso. Eu fui professor do curso de Comunicação daqui já. Eu já estou aposentado. É só Comunicação ou Comunicação…
Entrevista - Social.
Ariano - da UF…
Entrevista - da UFC.
Ariano - Outra coisa. Eu já estive lá, na UFC. Eu fui lá, levando o Quinteto Armorial. Eu tive um… E eu sempre apresentava os consertos. E a uma certa altura, eu disse qualquer coisa, não sei. E de repente começaram a fazer assim. (Estala os dedos) E eu disse? Que diabo é isso? (Risos) Tão me chamando de cachorro? Vou botar o nome de vocês todos. Ronaldo…
Entrevista - Salgado
Ariano - Vou pôr só o primeiro nome.
Entrevista - Paulo César.
Ariano - Agora de você eu quero saber o sobrenome.
Entrevista - Veras.
Ariano - Ah, não é Farias não. (Risos) Leonardo, Elizeu, Janary… O mesmo nome de um antigo diretor da Petrobrás, Janary Nunes. Kelly, Lucirene, Ariane. Ah, sim. Maurício e Jarbas. Eu fui… Já aconteceram duas coisas curiosas. Eu fui fazer um exame de sangue outro dia, aí chego lá no laboratório e tinha um bocado de gente, várias moças. Fui para lá com um filho meu. Várias moças operando computador. Aí uma delas olhou para mim assim (olha de cima a baixo) (Risos). Eu fiquei incabulado. Aí eu disse: “o que é que tá havendo?”. Aí ela disse: “como é o seu nome?” Aí eu disse: “Ariano”. Aí ela disse: “Ariano Suassuna, não é? Agora pergunta o meu”. “Qual é o seu nome”. Aí ela disse: “Ariana. E sabe porque o meu nome é Ariana? Por sua causa”. (Risos) “Minha mãe é uma grande admiradora sua e aí tava grávida de mim, aí disse se for menino é Ariano, se for menina é Ariana”. “Tá certo. Muito bem. Muito obrigado. Sua mãe tem muito bom gosto” (Risos). Aí passou. Até levei um livro para ela de presente quando fui buscar o exame. Aí eu viajei para um sertão aqui. Essa não se chamava nem Ariane nem Ariana. Aí fui lá num colégio do segundo grau, aí uma menina disse: “olhe, eu tenho de lhe contar uma história que aconteceu comigo. Eu passei um tempo que comecei a estudar a sua obra todinha. E eu fiquei de tal maneira obcecada, só pensava nisso, que passaram a chamar de Ariana Suassuna”. Coitada. (Risos) “Até aí tudo bem, mas o pior de tudo é que meu namorado se enciumou e acabou o namoro comigo (Risos). “Olhe, se esse camarada é tão idiota desse jeito, um sujeito da minha idade, morando fora, e ele ainda se enciumar, não merece você não. Você se livrou de boa”. (Risos)
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Informações sobre o autor: Jornalista formado pela Universidade Federal do Ceará, com experiência profissional em novas tecnologias e internet. Autor também do Prensa 3.0, Bang! e Zona Cyber, é também fundador e sócio do BlogueIsso! Blogs, uma rede que reúne blogueiros de todo o Brasil. Pai do Pedro, namorado da Emanuela.
Fonte: http://blog.blogueisso.com/2007/01/20/entrevista-com-ariano-suassuna/
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