quinta-feira, 20 de março de 2008

Intolerância e tortura: o poder jamais esquece de sacrificar seus Cristos

Frei Tito de Alencar

UM HOMEM TORTURADO: TITO DE ALENCAR


Eu me autorizo falar psicanaliticamente da tortura por ter, como jovem psiquiatra, acolhido Tito de Alencar no hospital. Este intelectual, duplamente comprometido, religiosamente como dominicano, e politicamente como líder de um dos movimentos de liberação nacional que emergiram no Brasil depois do golpe de l964, foi preso em 1969, em decorrência do assassinato do líder comunista Marighela. Este assassinato foi a obra secreta do delegado Fleury e dos esquadrões da morte. Na mente dos autores dele, cumpria um duplo objetivo: liquidar Marighela e comprometer definitivamente os religiosos engajados na luta revolucionária. Durante um encarceramento de vários meses, Tito de Alencar foi submetido a interrogatórios policiais e a torturas, por este mesmo comissário Fleury. Daquela experiência da tortura que definitivamente o deixou alquebrado, nós possuímos um duplo testemunho: por um lado, são escritas que ele teve a coragem de escrever na prisão (isso foi publicado em uma compilação que foi dedicada a ele: " Então as pedras gritarão ", e por outro lado, a restituição desta experiência, como ele mesmo a transmitiu por meio de um estado melancólico e delirante apresentado nos meses que precederam sua morte.

Talvez porque, pela sua origem, pertencia à classe média, tradicionalmente favorável ao regime político da situação, mas também porque ele era religioso, parece que Fleury e os torturadores dele obstinaram-se sobre o Tito de Alencar com uma crueldade particular. Para escapar disto, ele teve recurso, na própria prisão, a uma tentativa de suicídio, seccionando a artéria do braço, e só escapou graças à vigilância dos executores dele, receiosos em ter que assumir a responsabilidade por este gesto. Tito evoca nas escritas dele a frase que ele ouviu no seu meio-coma: 'Doutor, aquele é absolutamente necessário salvá-lo, caso contrário nós estamos perdidos.' [1] É inclusive graças a este suicídio que a Igreja, em primeiro lugar e depois outras instâncias da sociedade, foram alertadas a respeito da prática da tortura nas prisões brasileiras.
Porque, como nós o veremos com mais detalhes, uma das condições da prática da tortura é a de poder se beneficiar com uma clandestinidade de fato.

Graças às circunstâncias excepcionais - o rapto do embaixador de Suíça pelos revolucionários brasileiros seguido pela liberação dele em troca de um certo número de presos políticos - Tito de Alencar pôde deixar a prisão em 1970, e foi expulso imediatamente. Depois de uma breve permanência no Chile e na Itália, ele foi acolhido na França.

Mas esta real liberdade só fez dramatizar a alienação interior para a qual a experiência da tortura o tinha definitivamente empurrado. De fato, desde as primeiras vezes, Tito mal conseguia iniciar, e logo os abandonava, estudos, psicoterapia e até mesmo psicanálise. Durante a sua longa permanência em Paris, de acordo com seus amigos, ele era um homem completamente aboulique, retomando sem parar um questionamento político, religioso, duvidando profundamente de si mesmo, e convencido de ter traído a causa dominicana como também a causa revolucionária. Ele passava horas escrevendo, como que para tentar reconstruir uma verdade interior, e é certo que foi neste exato ponto que a tortura teve pleno êxito contra ele.

Frente a este desespero, seus superiores religiosos tiveram a idéia de confiá-lo a uma outra comunidade dominicana, particularmente carinhosa, a de Éveux, neste convento bonito construído por Le Corbusier, em meio às colinas do país Lyonense. Depois de um período onde Tito se achava obviamente melhor, explodiram, ruidosamente e dramaticamente, as demonstrações delirantes que não iam deixá-lo jamais, até seu suicídio alguns meses mais tarde. Começou com as fugas inexplicadas, cada vez mais freqüentes, e mais longas. Inexplicadas até que um dos Irmãos dele, mais próximo, descobrisse a razão delas: O Fleury falava a Tito e lhe dava ordens – para não entrar, não deitar, para não comer... O Tito foi se redobrando cada vez mais em si mesmo, cada vez mais mutique, cada vez mais triste. Na seqüência de uma destas fugas, ele foi levado para o hospital.

Foi uma cena trágica aquela que presenciamos então: um homem como que encurralado, entregando-se a nós como se fôssemos seus executores. Quando foi para o quarto, ele logo se jogou na parede, braços para cima, como que para ser executado na hora. Depois quando foi para administrar-lhe um remédio para alívio, tomou-o como se fosse o veneno que devia acabar com ele. Cena dramática porque ali era reconstituída completamente, literalmente, a situação exata da tortura, situação que neste momento nós não tínhamos meio de entender, mas que, pouco a pouco, graças à cooperação com seus Irmãos Dominicanos, com os amigos dele, nós conseguimos levar à luz do dia.

Adquirimos rapidamente a convicção de que não estávamos na frente de uma patologia psiquiátrica habitual, nem de um ponto de vista semiológico nem num plano que eu chamarei ético. Os sintomas apresentados por este paciente, embora pudessem ser os de uma melancolia habitual, tomavam lugar em um mesmo contexto de exibição bastante particular. Eu falei de «cena» porque o painel clínico incluía uma dimensão muito intencionalmente teatral; apesar do mutismo quase total deste homem, apesar da força de sua crença delirante de que éramos algozes, pressentíamos também que sua consciência não tinha realmente virado para uma convicção delirante, e que o que o paciente nos expunha era mais um testemunho do que uma patologia. A intensidade do sofrimento psíquico - mais que da dor moral – ia no mesmo sentido.
Eu percebo agora que a aposta que nós fizemos naquele momento – a equipe de enfermagem e Irmãos Dominicanos – a de considerar este estado menos como uma patologia do que como um testemunho, ia no sentido da intenção de Tito de Alencar expressar por este "delírio" (ou talvez por esta exibição histérica, mas não importa...) os tipos de crueldade que ele tinha sofrido durante sua tortura, muito melhor e muito mais precisamente do que o que ele poderia escrever a respeito. Tocamos aqui ao limite da linguagem que só pode dar conta daquilo que não escapa à consciência, enquanto o delírio dele transmitia tudo o que pudera ser trocado inconscientemente entre a vítima e seu carrasco. Mas também, esta aposta queria proteger o Tito de uma decadência apontada pelo torturador. O projeto do torturador era exatamente "tornar louca" a sua vítima, mas em um pós-golpe distante, em um tempo onde a relação de causa a efeito com a tortura não seria mais óbvia. A loucura assim instalada denunciaria simplesmente uma constituição doentia do paciente e também geradora, por que não?, de seus equívocos na luta e no compromisso político. Um diagnóstico psiquiátrico de loucura teria definitivamente difamado Tito de Alencar.

Apesar de várias remissões onde os sintomas desapareceram, onde seu relacionamento com os outros melhorava, nada mudou verdadeiramente em Tito desta tendência em reviver, e fazer reviver, compulsivamente, a situação da tortura, como que testemunhando com isso a força e a qualidade particular – digamos logo erótico – do vínculo que o tinha amarrado indelevelmente e apesar dele mesmo a seus torturadores. Suas relações com os Irmãos de sua comunidade, aparentemente simples e calorosas de novo, arranhava-se com crises interpretativas onde Tito os suspeitava de ser os cúmplices do Fleury. De uma maneira permanente, porém subterrânea na maioria do tempo, a sobrevivência nele da situação da tortura seguia seu curso.

É provavelmente para escapar novamente da tortura que Tito de Alencar cometeu suicídio, em um momento em que estava aparentemente melhor e tinha aceitado a idéia de se inscrever socialmente assumindo um trabalho na periferia de Lyon. Não se pode evitar de ver neste suicídio exitoso a retomada do seu gesto fracassado nas prisões de São Paulo, gesto do qual tinha sido desapropriado por seus algozes, como da última liberdade à qual o homem pode pretender. E sentimo-nos autorizados a interpretar as circunstâncias do seu suicídio, já que se enforcou ao topo de um álamo, em uma descarga pública: assim o pássaro migratório se deixa pegar pelos fios elétricos... Poetizamos os fatos, em reação exatamente a este movimento de despoetização que a tortura realiza no ser? Se a própria linguagem é impotente em prestar conta dos acontecimentos, isto resulta na sua desqualificação como meio de expressão poética; daí a busca de meios substitutivos, como a patologia, tanto o delírio quanto o suicídio.

E neste suicídio, e sua cena particular, não estaríamos ouvindo seu infortúnio de exilado, sua erradicação, seu país obviamente de onde tinha sido expulso mas também a erradicação bem mais profunda que a tortura tinha provocado em relação a ele mesmo, à sua identidade, aos seus ideais...

O suicídio de Tito de Alencar desvela claramente a natureza destrutiva da tortura. Entre os significados que podem ser apurados deste suicídio – bem como da precedente tentativa - há essa vontade de dramatizar que ele tinha morrido, em um certo sentido, digamos espiritualmente, durante a prova da tortura, que não passava mais, de lá para cá, de um sobrevivente.

Certamente a tortura não inclui sempre um resultado tão destruidor, e, em particular, companheiros de Tito, igualmente torturados, não sofreram as mesmas conseqüências. O caso de Tito nos leva a nos interrogar sobre o que foi que tornou tão assassina essa experiência para ele. Se confrontarmos o que tivemos oportunidade de observar do seu delírio e as vicissitudes de sua sobrevivência, com os testemunhos escritos que ele deixou, precisamos admitir ou que o efeito psicológico que vem com qualquer tortura física foi particularmente agudo no caso dele, ou que, ao lado das crueldades meramente físicas, Tito sofreu uma forma particular de tortura psicológica. Isso é tanto mais provável que, por conta de seu status social de padre e intelectual, Tito de Alencar representava para seus algozes, e em particular para o delegado Fleury, um símbolo. Símbolo de uma nova aliança da fé e da revolução, opondo-se à aliança tradicional da Igreja e do Estado, e que era necessário desqualificá-la absolutamente para evitar sua propagação. Esta aliança, pela sua ambigüidade, pela sua novidade, representava uma déviance, suscetível de encontrar uma saída positiva, e da qual era necessário demonstrar a negatividade, absolutamente. A ambigüidade da aliança será o exato lugar onde o torturador agirá, e agirá psicologicamente, por meio de um duplo movimento de desqualificação da dialética que está em jogo aí, e de evidenciamento da incoerência que nela está também presente.

No testemunho que Tito de Alencar escreveu no cárcere em 1970, acha-se uma descrição muito literal dos fatos sofridos. Seu primeiro contato com a tortura é o «pau de arara », tortura que consiste em ajoelhar o preso nu, enfiar uma barra de ferro na dobra dos joelhos, prender por trás seus pulsos com seus calcanhares, e em seguida suspendê-lo de cabeça para baixo. «Assim suspendido, despido, eu recebi descargas elétricas de corrente contínua nos tendões dos pés e na cabeça. Os torturadores eram seis. Eles me aplicaram o "telefone" (bater as duas orelhas com a palma da mão ao mesmo tempo para fazer explodir os tímpanos) e eles me gritavam injúrias.» [2]

Identifica-se aqui, por parte dos torturadores, a busca de um efeito de estimulação (sommation) das diversas fontes de excitação: físicas, elétricas, sonoras e também verbais, e a nudez traz consigo uma excitação muito diretamente sexual. Mas reencontraremos essa estimulação de outro modo. De fato, os torturadores não vacilam acumular crueldades nas distintas partes do corpo. «Eles lançaram algumas descargas elétricas em minhas mãos, em meus pés, em minhas orelhas e em minha cabeça. A cada descarga todo meu corpo passava a tremer como se fosse despedaçar[3]» Por meio desta estimulação, além da brutalidade, busca-se provocar uma mutação psíquica do sujeito. Mas se podemos, nós, decifrar esta situação assim, Tito, ele, não podia discernir a estimulação que estava em jogo, nem a intenção que a ela presidia. O testemunho posterior do delírio é muito mais autêntico que o testemunho escrito porque nos mostra que Tito podia ter consciência somente de uma parte da situação; acontece desde o começo da tortura uma dissociação muito clara entre a consciência imediata dos fatos, e uma interiorização mais inconsciente onde não importa mais a diferença entre sevícias sofridas e sevícias desejadas. «Era eu impossível saber que parte do corpo era mais doída. Eu tinha a impressão de ser esmagado por toda parte. Minha mente não era mais coordenada, eu só tinha o desejo de perder os sentidos[4]”.

A estimulação visa de fato engajar, sem o conhecimento da vítima, seu desejo, e solicitar assim mesmo uma cumplicidade. Pois, pelo sofrimento, o corpo é solicitado eroticamente até o ponto onde uma auto-excitação interna é capaz de dar continuidade, de modo quase autônomo, à excitação externa. Confusão e culpabilidade virão como conseqüências de uma certa dissolução de categorias do interior e do exterior: não é o torturador que faz perder os sentidos, é ele mesmo que passa a sentir o desejo disso. Reencontramos, claro, o desejo à obra, de modo grotesco, na reconstrução delirante da tortura.

Um passo a mais na mutação psíquica secreta da vítima é perceptível no seguinte evento relatado por Tito: ele cai nas mãos de um novo torturador, o capitão AIbernaz. «Quando eu venho na Operação-Bandeirante, eu deixo o coração em casa. Eu tenho horror dos curas... Você conhece Fulano e Beltrano? (menciona os nomes de dois presos políticos torturados, com muita selvageria por ele), você vai ter direito ao mesmo tratamento: descargas elétricas o dia todo. Para cada um de seus NÃO, você receberá uma descarga mais importante. Havia três militares na sala. Um deles gritou: "Eu quero nomes de homens e de organizações clandestinas ". Quando eu respondi: "Eu não sei, eu recebi uma descarga elétrica tão forte, daquelas diretamente plugadas na tomada, que eu perdi o controle de minhas funções fisiológicas [5].»

É difícil superarmos o pathos desta situação, e o espanto onde é deixado o leitor. Medimos a decadência onde é levado o verbo nesta experiência, tanto pela nossa tendência em ficar sem voz perante este relato quanto pelo fato de que o torturador parece não esperar por outra resposta a não ser exatamente o NÃO. O desespero na tortura passa pela decadência da linguagem. Há algo realmente infame nesta estratégia que usa, com aparente objetivo de fazer falar, de um constrangimento que organicamente castra a pessoa de seus meios de expressão, a tal ponto que o leitor é submetido à convicção, nesta passagem, que a tortura não é usada como um método de interrogatório policial, mas que ela tem um objetivo autônomo que é o de uma compromissão.

De fato, as descargas elétricas visam precisamente aqui a levar a vítima a se sujar. Ainda em sua narração, Tito alude a alguns as várias pessoas presentes ao lado do torturador: uma multidão de olhares que, portanto, concorrem, através de voyeurismo, para erotizar o relaxamento dos esfíncteres e os afectos múltiplos que o sujeito passa a sentir. Insistimos no exibicionismo presente em seu delírio e pode-se ver neste exibicionismo delirante a retomada de um afecto sofrido na tortura, o qual Tito não tinha meios de controlar, ao escrever.

O horror continua para ele: «Ele (o torturador) entrou nos ataques morais: Quais os padres que têm amantes? Por que a Igreja não expulsou vocês todos? Quem são os padres terroristas? Disse que a Igreja é corrupta, que pratica malversações financeiras, que o Vaticano é o proprietário das maiores empresas. A todas minhas respostas negativas, eles me davam descargas, socos, pontapés, e golpes de vara no tórax. Num determinado momento, o capitão Albernaz ordenou que eu abrisse a boca para receber "a hóstia sagrada ". Ele introduziu um fio elétrico. Eu permaneci de boca inchada, sem poder falar adequadamente. Eles gritavam contra a Igreja. Eles gritavam que os padres são uns homossexuais porque eles não são casados... Eles só pararam às quatorze horas» (nota-se que tinham começado de manhã às oito horas)[6].

A densidade patética da narração vem da pressa com que foi escrito, como em uma luta contra o esquecimento, contra o recalque benfazejo a curto prazo, mas que o alienará posteriormente, ao ter que rememorar pelo viés do delírio.

Tito, como foi falado, nunca mais conseguiu habitar sua identidade de religioso, e uma parte grande de seus escritos expressará a busca dolorosa de uma espiritualidade nova, impossível porquanto a procurava exclusivamente na reconciliação de ideais contraditórios: Freud e Marx, Marx e Cristo, etc.

Neste último fragmento da narração, percebe-se melhor por que procedimento a tortura consegue a mutação psicológica do sujeito. Consiste na destruição de auto-representações idealizantes do eu. Mais justamente aqui, o que especificamente é contestado é a representação a mais espiritual, a mais especular também, a do padre. Destruição seguida pela imposição de uma nova identidade, como a negativa da anterior,: «Você é um falso padre», em contradição: “A Igreja é corrupta », e na sensação de uma decadência: «Os padres são uns homossexuais.»

Da maneira que o Tito consegue evocá-lo, o procedimento torturador parece desenvolver-se como um drama do qual a cena paródica da comunhão seria o ápice. Com uma malignidade estratégica que só uma relação muito apaixonada pode inspirar, a manipulação pelo torturador do simbolismo religioso visa desacreditar, tornar em derrisão um setor da identidade da vítima, aquele do qual pode-se dizer que ele é o lugar de todas as sublimações e todas as transcendências. Ele é desacreditado porque é reduzido a um gestual quase pornográfica, neste contexto de excitação corporal, depois de tantas horas de sevícias.

Imagina-se que foi neste momento preciso que Tito de Alencar perdeu toda possibilidade de se reconhecer como o padre que ele era. A razão pela qual deve ter aderido a esta paródia está em relação com o ardil que consiste, não tanto em denunciar ex-abrupto a religião, mas em fazer ressaltar o embasamento pulsional, a partir do qual a sublimação religiosa pôde desenvolver-se. De fato, o torturador só faz virar de sua vertente solar, sublimatória, para uma vertente sombria pulsional. A tortura se revela como uma operação de sublimação.

Também é uma operação de despoetização. Porque se prestamos atenção, neste fragmento de narração, à importância das palavras que são expressadas pelos carrascos, nota-se vários pontos. Como provavelmente em outros momentos, o carrasco não deixa de insultar a vítima, mas, notemo-lo, de um modo relativamente sincronizado com as crueldades físicas. Como se cada interjeição fosse lançada e fosse introduzida no sujeito após um trauma físico. De fato, esta linguagem diz coisas das quais não é possível evitar a falsidade, já que contém, apesar de tudo, sua parte de verdade. E é sobre a ambigüidade do verdadeiro e do falso que está jogando: sobre a palavra homossexual, por exemplo, verdadeira de uma verdade que, latente, concerne todo ser humano, verdadeira também de uma verdade de fato, na situação do ser Tito que está sofrendo passivamente uma paródia de felação em um contexto de exibicionismo-voyeurismo. Na realidade, não somente a linguagem se introduz no rasto das sevícias corporais, mas, bem mais, ela as acompanha e vem lhes dar um sentido que por si só não poderiam ter. A linguagem funciona aqui como um veredicto, melhor, como uma interpretação selvagem que vem estigmatizar de modo absolutamente irreversível a ressonância emocional que as sevícias tentam provocar no sujeito.

Pode-se dizer que com o insulto, o carrasco completa sua estratégia e encerra a experiência. A linguagem assumiria assim um papel análogo aos olhares das pessoas que assistem à cena. Pois como Tito poderá, para sempre, repensar este momento da experiência onde, despido, humilhado, constrangido, está apanhando, sendo passivamente estuprado, sem que seja através do veredicto das vozes e dos olhares: «Você é um homossexual», «Você se entrega e se expõe como uma mulher»?

Esta palavra que diz ao mesmo tempo o verdadeiro e o falso, que se impõe do exterior e acha sua ressonância dentro, não poderá mais ser objeto de uma elaboração espontânea. Caída de seu estatuto semântico, sofreu uma despoetização que a reduziu a um mero corpo estranho, uma coisa que habitará duravelmente o sujeito e que reencontraremos à obra, novamente, na hora das fases menos subterrâneas do seu delírio, quando a voz do torturador lhe ditará cada ato de sua vida.

Não há duvida que Tito de Alencar morreu no decorrer de suas torturas. Mesmo incorrendo no risco do pathos, estou inclinado a afirmar essa proposição na medida em que o que Tito era, o religioso, o lutador, mas também o homem inscrito numa história privada, doméstica, o filho, o irmão, não o era mais. Tito se tornou alguém outro, aquele que seu torturador teria querido que fosse. É neste sentido que pode-se dizer que era um sobrevivente do qual era talvez impossível, a nós que não havíamos passado por essa provas, entendermos o que dele sobrevivia.

Tudo aconteceu como se a tortura tivesse substituído um homem novo ao homem velho que ele era, o que só faz retomar o espírito da tortura onde o torturador focaliza seu olhar num só ângulo, o ser enquanto vítima, menosprezando absolutamente a realidade existencial do sujeito. Nos chamou muito a atenção ver que, quando uma de suas irmãs fez uma longa e cara viagem do Brasil para a França para ajudá-lo, mal a reconheceu, aceitou nenhuma familiaridade com ela, ficando impermeável a todas as tentativas para fazer reviver seu passado.

Ele era o novo personagem criado por Fleury, e isto é exatamente aquilo que a tortura visava. Pois anota-se um estreito parentesco entre a maneira com que o carrasco manipula as sevícias físicas e o modo com que manipula o insulto verbal. Nos dois casos, trata-se menos de ferir o exterior do que provocar um movimento interno de autodestruição e um movimento de autocrítica que devem continuar agindo por conta própria. É o que Tito de Alencar demonstrou em seu delírio quando impôs a si mesmo todas as privações que sabemos, mas também nesta atividade incessantemente repetida de auto-acusação. Seu caso poderia ser considerado como uma tortura exitosa, ou seja é possível que o ideal do torturador esteja em por a caminho o que, na pessoa humana, está disponível para uma auto-tortura (como conhecemos com freqüência na patologia): auto-desvalorização, autocrítica, autopunição. É talvez desta agudez psicológica que se vangloriou o Albernaz quando Tito lhe ouviu dizer: "Nós sabemos fazer coisas sem deixar rastros. Se sobreviver, nunca esquecerá do preço de sua audácia"[7].

Em um momento bem preciso, Tito teve o sentimento de ter traído, dando nomes. Ele se acusará precisamente por muito tempo, de modo melancólico, embora todos os testemunhos contrariam essa convicção: ele não teria entregado nenhum nome sob a tortura. Vê-se aí, nesta auto-acusação, um meio cômodo, imediato, para racionalizar sua culpabilidade, mas também, sobre esta culpa clássica de torturado, vem deslocando um sentimento mais escuro e expansivo da traição. Nas escritas, este sentimento de traição assume a forma de uma preocupação nascente para com o destino dos seus Irmãos Dominicanos. "Em minha cela eu não conseguia dormir. A dor aumentava cada vez mais. Eu tinha a impressão que minha cabeça era três vezes mais grossa que meu corpo. Era preciso acabar com isso uma vez por todas. Eu sentia que não poderia agüentar tamanho sofrimento por muito tempo. Eu estava angustiado à idéia que meus Irmãos Dominicanos pudessem sofrer a mesma coisa".

O desejo de morrer permanece indissociável deste sentimento de traição que representa a essência mesma da auto-tortura , tanto quanto é a meta suprema da tortura, pois é o grupo ao qual pertence a vítima que o algoz tenta alcançar por meio dela. Ora ao mesmo momento, uma campanha de imprensa é orquestrada publicamente contra o grupo dos Dominicanos. O jornal O Globo publicou o seguinte: «Eles (os Dominicanos) traíram a fé ao aderir ao comunismo, e traíram o comunismo ao entregar Marighela. São os novos Judas [8]» É impressionante como as mesmas acusações difamatórias, as mesmas calúnias, circulam aqui, no século, e ali, no espaço fechado, clandestino, inter-individual, da tortura. Sentimo-nos autorizados a considerar que é a mesma guerra que um certo grupo ideológico realiza contra um outro, aqui e ali. Daí a idéia de que a tortura poderia ser entendida como um tipo de microcosmo da guerra mais geral, oficial, uma guerra de «laboratório», onde os obstáculos, os fracassos que o poder enfrenta na realidade seriam como magicamente eliminados. Um microcosmo onde o poder se dá a ilusão de que a realidade é complacente com seu desejo: a tortura seria um campo de utopia. Ao esmagar Tito de Alencar fisicamente e espiritualmente, o torturador, e o grupo do qual ele é o representante, visavam talvez nada mais que reforçar-se na convicção de que eles poderiam acabar, sem dificuldade, com uma oposição de idéias, que ameaçava sua própria convicção.

A busca desta ilusão de vitória responde muito melhor pela crueldade das sevícias do que uma suposta busca de informações, já que, como se viu, estas sevícias quase sempre colocavam o Tito na impossibilidade de falar.

Tito, pessoa bem real, no entanto é torturado enquanto efígie do grupo dominicano do qual ele é o símbolo. Há na tortura um fundo de exorcismo que fica preso ao não-dito, ao não-sabido, de um lado e do outro, mas que traz sua própria confusão ao mistério da experiência. Freud, em Totem e Tabu, explica: "Um dos processos mágicos do qual se usa mais comumente para prejudicar um inimigo, consiste em fabricar sua efígie com materiais quaisquer. Poderá ainda se demonstrar que tal ou tal objeto representa sua imagem. Tudo o que se inflige a esta efígie atinge o modelo odiado. É suficiente ferir qualquer parte daquela, para que a parte correspondente do corpo deste fique doente”[9]. O material qualquer está aqui sendo Tito de Alencar, e o objeto que representa a imagem, é seu corpo.

Fiquemos com esta hipótese da tortura como prática exorcista, enquanto nos permite acompanhar a decadência da palavra e da linguagem tal qual acontece na tortura, até conduzir a esta forma semiótica particular que é a confissão. É de fato numa progressão experta que Tito de Alencar será despojado da sua palavra de homem, desde que a clandestinidade e a ilegalidade da tortura tiram toda referência ética. Despojado em seguida de sua palavra de homem, na medida em que a dominação sexual almejada pelo carrasco conduz a vítima a identificar-se a um corpo erógeno que só fala de excitação e compulsão à repetição. E enfim, com esta fase que a imagem de efígie ajuda a figurar, entendemos que a palavra chamada pelo torturador é não a palavra de Tito de Alencar, sobre Tito de Alencar, mas a palavra do representante de um certo grupo sobre o grupo em questão. É portanto uma palavra que, longe de ser ao serviço de uma verdade qualquer, não tem outra razão de ser senão tentar responder a uma expectativa bem precisa do torturador. Esta expectativa seria evidentemente a entrega de nomes, a prova de uma compromissão, de um erro, de uma traição, tanto faz. Porque, qualquer coisa que a vítima diz ou não diz,, esta será uma palavra que o executor ouvirá do jeito que ele esperava: eis a confissão.

Tudo fala em favor do torturador, como tudo concorre para provar à vítima que ela falou, porque a confissão nunca corresponde a uma declaração qualquer, mas a uma certa forma de decadência da linguagem onde o sinal verbal só se interpreta através do desejo daquele que o está escutando.

A ausência de terceiro, o livre desenvolvimento da onipotência do desejo do carrasco, caracterizam suficientemente o caráter furioso, psicótico, desta situação de tortura, que a decadência do verbo vem cristalizar.

Já há um século, um autor como Jules Michelet tinha percebido a dimensão delirante disto: «Uma bruxa confessa ter puxado ultimamente do cemitério o corpo de uma criança morta, para usar este corpo em suas composições mágicas. Seu marido diz: " Vá para o cemitério. A criança está ali". O corpo é exumado, encontrado exatamente no seu lençol. Mas o juiz decide, contra o testemunho de seus olhos, que é uma "aparência", uma ilusão do Diabo. Ele prefere a confissão da mulher ao fato em si. A mulher é queimada[10].»

Esta decadência da palavra, Tito a denunciará no longo mutismo que pudemos observar, bem como no automatismo mental, onde uma voz que não era mais a sua falava dentro dele.

A prática do torturador é louca, e, frente a esta loucura passional, a denúncia e a luta política têm que se fazer, no mesmo grau, passionais e impiedosas. Mas ela é também louca no sentido psiquiátrico do termo. Sem que isso em nada contamina a luta política, devemos clarear isto porque esta loucura situacional exerce por si só um efeito psíquico destrutivo sobre a vítima; mas existe também um interesse antropológico em entender este fato realmente misterioso de que homens civilizados possam endossar a responsabilidade de tal prática.

Pierre Vidal-Naquet[11], a propósito de torturas praticadas na Argélia antes da independência, nos convence da idéia de que a tortura só foi possível porque políticos deixaram seriamente de cumprir com sua função de controle das instituições e autorizaram um vazio legal que só permitiu a instalação de práticas torturadoras. Abandonado pelo jurista, dispensado, não sem complacência, pela lei, o soldado se torna torturador e, se assim pode-se dizer, ele se torna também louco, autorizando-se de uma conduta exorcista e mágica que lhe serve no lugar de pensamento.

Realmente só uma loucura, ou digamos um enlouquecimento, permite entender a crueldade extraordinária demonstrada nestas situações, a implacabilidade sádica que amarra literalmente o carrasco à sua vítima e do qual a narração de Tito de Alencar dá uma descrição de um realismo comovente e uma grande agudez psicológica. De fato, é de uma certa face do torturador, com sua estarrecedora inumanidade, que, constantemente, este texto nos fala.

Imagina-se a revelação que constitui para a vítima o encontro com este rosto do homem que desvela brutalmente, sardonicamente, o torturador,: Tito terá que se debater com essa imagem, ao mesmo tempo para nela se reconhecer a si mesmo enquanto homem, e para dela se livrar numa contra-identificação às vezes próxima ao angelismo.

Aludimos, na história de Tito de Alencar, ao exibicionismo um pouco histérico que demonstrava. Em sua indiferença para com os outros, não estava ausente uma certa arrogância, até mesmo a convicção secreta de ser um herói, por ter passado por uma prova conhecida de nenhum outro, de ser de certo modo um iniciado. Ao lado do que tirava para o sentimento de decadência, uma patologia do «Eu grandioso» presidia ao seu isolamento. A mesma talvez tinha achado sua justificação na estranheza da experiência que, na confusão onde ele se encontrava, ele elaborou nos termos de uma iniciação sacrificatória da qual teria sido o único depositário, igual ao Cristo ao qual lhe ocorreu repetidamente se comparar.

Por nossa vez, fomos fascinados pela experiência que viveu, porquanto nela nos tocamos com este encontro inédito do homem, em sua crueldade virtual, da qual a civilização nos protege e nos separa. Eu vejo, pessoalmente, na multidão de escritos que esta vida suscitou, uma vontade de transmitir - não sem a idéia de uma possível redenção - esta revelação, em um movimento quase angélico. Mas estes atos de palavra têm no entanto uma função autônoma: livrar a palavra de Tito da subversão que a tortura lhe teria infligido.

É sempre por ocasião de causas religiosas, espirituais, ideológicas, que a tortura se desenvolveu. Não podemos desconhecer que neste contexto de idealidade - e de predisposição mágica que o próprio ideal proporciona - a tortura é tanto mais tentadora quanto lhe é atribuída uma eficácia que não tem a ver com a objetividade, mas com o poder de anulação que ela sabe implementar. Os processos de feitiçaria, a Inquisição, as dragonadas, os recentes genocídios que intentavam destruir como representante do mal o que era da ordem da diferença, todos convidaram a tortura para este fim.

JEAN-CLAUDE ROLLAND

Eu me autorizo falar psicanaliticamente da tortura por ter, como jovem psiquiatra, acolhido Tito de Alencar no hospital. Este intelectual, duplamente comprometido, religiosamente como dominicano, e politicamente como líder de um dos movimentos de liberação nacional que emergiram no Brasil depois do golpe de l964, foi preso em 1969, em decorrência do assassinato do líder comunista Marighela. Este assassinato foi a obra secreta do delegado Fleury e dos esquadrões da morte. Na mente dos autores dele, cumpria um duplo objetivo: liquidar Marighela e comprometer definitivamente os religiosos engajados na luta revolucionária. Durante um encarceramento de vários meses, Tito de Alencar foi submetido a interrogatórios policiais e a torturas, por este mesmo comissário Fleury. Daquela experiência da tortura que definitivamente o deixou alquebrado, nós possuímos um duplo testemunho: por um lado, são escritas que ele teve a coragem de escrever na prisão (isso foi publicado em uma compilação que foi dedicada a ele: " Então as pedras gritarão ", e por outro lado, a restituição desta experiência, como ele mesmo a transmitiu por meio de um estado melancólico e delirante apresentado nos meses que precederam sua morte.
Talvez porque, pela sua origem, pertencia à classe média, tradicionalmente favorável ao regime político da situação, mas também porque ele era religioso, parece que Fleury e os torturadores dele obstinaram-se sobre o Tito de Alencar com uma crueldade particular. Para escapar disto, ele teve recurso, na própria prisão, a uma tentativa de suicídio, seccionando a artéria do braço, e só escapou graças à vigilância dos executores dele, receiosos em ter que assumir a responsabilidade por este gesto. Tito evoca nas escritas dele a frase que ele ouviu no seu meio-coma: 'Doutor, aquele é absolutamente necessário salvá-lo, caso contrário nós estamos perdidos.' [1] É inclusive graças a este suicídio que a Igreja, em primeiro lugar e depois outras instâncias da sociedade, foram alertadas a respeito da prática da tortura nas prisões brasileiras.
Porque, como nós o veremos com mais detalhes, uma das condições da prática da tortura é a de poder se beneficiar com uma clandestinidade de fato.
Graças às circunstâncias excepcionais - o rapto do embaixador de Suíça pelos revolucionários brasileiros seguido pela liberação dele em troca de um certo número de presos políticos - Tito de Alencar pôde deixar a prisão em 1970, e foi expulso imediatamente. Depois de uma breve permanência no Chile e na Itália, ele foi acolhido na França.
Mas esta real liberdade só fez dramatizar a alienação interior para a qual a experiência da tortura o tinha definitivamente empurrado. De fato, desde as primeiras vezes, Tito mal conseguia iniciar, e logo os abandonava, estudos, psicoterapia e até mesmo psicanálise. Durante a sua longa permanência em Paris, de acordo com seus amigos, ele era um homem completamente aboulique, retomando sem parar um questionamento político, religioso, duvidando profundamente de si mesmo, e convencido de ter traído a causa dominicana como também a causa revolucionária. Ele passava horas escrevendo, como que para tentar reconstruir uma verdade interior, e é certo que foi neste exato ponto que a tortura teve pleno êxito contra ele.
Frente a este desespero, seus superiores religiosos tiveram a idéia de confiá-lo a uma outra comunidade dominicana, particularmente carinhosa, a de Éveux, neste convento bonito construído por Le Corbusier, em meio às colinas do país Lyonense. Depois de um período onde Tito se achava obviamente melhor, explodiram, ruidosamente e dramaticamente, as demonstrações delirantes que não iam deixá-lo jamais, até seu suicídio alguns meses mais tarde. Começou com as fugas inexplicadas, cada vez mais freqüentes, e mais longas. Inexplicadas até que um dos Irmãos dele, mais próximo, descobrisse a razão delas: O Fleury falava a Tito e lhe dava ordens – para não entrar, não deitar, para não comer... O Tito foi se redobrando cada vez mais em si mesmo, cada vez mais mutique, cada vez mais triste. Na seqüência de uma destas fugas, ele foi levado para o hospital.
Foi uma cena trágica aquela que presenciamos então: um homem como que encurralado, entregando-se a nós como se fôssemos seus executores. Quando foi para o quarto, ele logo se jogou na parede, braços para cima, como que para ser executado na hora. Depois quando foi para administrar-lhe um remédio para alívio, tomou-o como se fosse o veneno que devia acabar com ele. Cena dramática porque ali era reconstituída completamente, literalmente, a situação exata da tortura, situação que neste momento nós não tínhamos meio de entender, mas que, pouco a pouco, graças à cooperação com seus Irmãos Dominicanos, com os amigos dele, nós conseguimos levar à luz do dia.
Adquirimos rapidamente a convicção de que não estávamos na frente de uma patologia psiquiátrica habitual, nem de um ponto de vista semiológico nem num plano que eu chamarei ético. Os sintomas apresentados por este paciente, embora pudessem ser os de uma melancolia habitual, tomavam lugar em um mesmo contexto de exibição bastante particular. Eu falei de «cena» porque o painel clínico incluía uma dimensão muito intencionalmente teatral; apesar do mutismo quase total deste homem, apesar da força de sua crença delirante de que éramos algozes, pressentíamos também que sua consciência não tinha realmente virado para uma convicção delirante, e que o que o paciente nos expunha era mais um testemunho do que uma patologia. A intensidade do sofrimento psíquico - mais que da dor moral – ia no mesmo sentido.
Eu percebo agora que a aposta que nós fizemos naquele momento – a equipe de enfermagem e Irmãos Dominicanos – a de considerar este estado menos como uma patologia do que como um testemunho, ia no sentido da intenção de Tito de Alencar expressar por este "delírio" (ou talvez por esta exibição histérica, mas não importa...) os tipos de crueldade que ele tinha sofrido durante sua tortura, muito melhor e muito mais precisamente do que o que ele poderia escrever a respeito. Tocamos aqui ao limite da linguagem que só pode dar conta daquilo que não escapa à consciência, enquanto o delírio dele transmitia tudo o que pudera ser trocado inconscientemente entre a vítima e seu carrasco. Mas também, esta aposta queria proteger o Tito de uma decadência apontada pelo torturador. O projeto do torturador era exatamente "tornar louca" a sua vítima, mas em um pós-golpe distante, em um tempo onde a relação de causa a efeito com a tortura não seria mais óbvia. A loucura assim instalada denunciaria simplesmente uma constituição doentia do paciente e também geradora, por que não?, de seus equívocos na luta e no compromisso político. Um diagnóstico psiquiátrico de loucura teria definitivamente difamado Tito de Alencar.
Apesar de várias remissões onde os sintomas desapareceram, onde seu relacionamento com os outros melhorava, nada mudou verdadeiramente em Tito desta tendência em reviver, e fazer reviver, compulsivamente, a situação da tortura, como que testemunhando com isso a força e a qualidade particular – digamos logo erótico – do vínculo que o tinha amarrado indelevelmente e apesar dele mesmo a seus torturadores. Suas relações com os Irmãos de sua comunidade, aparentemente simples e calorosas de novo, arranhava-se com crises interpretativas onde Tito os suspeitava de ser os cúmplices do Fleury. De uma maneira permanente, porém subterrânea na maioria do tempo, a sobrevivência nele da situação da tortura seguia seu curso.
É provavelmente para escapar novamente da tortura que Tito de Alencar cometeu suicídio, em um momento em que estava aparentemente melhor e tinha aceitado a idéia de se inscrever socialmente assumindo um trabalho na periferia de Lyon. Não se pode evitar de ver neste suicídio exitoso a retomada do seu gesto fracassado nas prisões de São Paulo, gesto do qual tinha sido desapropriado por seus algozes, como da última liberdade à qual o homem pode pretender. E sentimo-nos autorizados a interpretar as circunstâncias do seu suicídio, já que se enforcou ao topo de um álamo, em uma descarga pública: assim o pássaro migratório se deixa pegar pelos fios elétricos... Poetizamos os fatos, em reação exatamente a este movimento de despoetização que a tortura realiza no ser? Se a própria linguagem é impotente em prestar conta dos acontecimentos, isto resulta na sua desqualificação como meio de expressão poética; daí a busca de meios substitutivos, como a patologia, tanto o delírio quanto o suicídio.
E neste suicídio, e sua cena particular, não estaríamos ouvindo seu infortúnio de exilado, sua erradicação, seu país obviamente de onde tinha sido expulso mas também a erradicação bem mais profunda que a tortura tinha provocado em relação a ele mesmo, à sua identidade, aos seus ideais...
O suicídio de Tito de Alencar desvela claramente a natureza destrutiva da tortura. Entre os significados que podem ser apurados deste suicídio – bem como da precedente tentativa - há essa vontade de dramatizar que ele tinha morrido, em um certo sentido, digamos espiritualmente, durante a prova da tortura, que não passava mais, de lá para cá, de um sobrevivente.
Certamente a tortura não inclui sempre um resultado tão destruidor, e, em particular, companheiros de Tito, igualmente torturados, não sofreram as mesmas conseqüências. O caso de Tito nos leva a nos interrogar sobre o que foi que tornou tão assassina essa experiência para ele. Se confrontarmos o que tivemos oportunidade de observar do seu delírio e as vicissitudes de sua sobrevivência, com os testemunhos escritos que ele deixou, precisamos admitir ou que o efeito psicológico que vem com qualquer tortura física foi particularmente agudo no caso dele, ou que, ao lado das crueldades meramente físicas, Tito sofreu uma forma particular de tortura psicológica. Isso é tanto mais provável que, por conta de seu status social de padre e intelectual, Tito de Alencar representava para seus algozes, e em particular para o delegado Fleury, um símbolo. Símbolo de uma nova aliança da fé e da revolução, opondo-se à aliança tradicional da Igreja e do Estado, e que era necessário desqualificá-la absolutamente para evitar sua propagação. Esta aliança, pela sua ambigüidade, pela sua novidade, representava uma déviance, suscetível de encontrar uma saída positiva, e da qual era necessário demonstrar a negatividade, absolutamente. A ambigüidade da aliança será o exato lugar onde o torturador agirá, e agirá psicologicamente, por meio de um duplo movimento de desqualificação da dialética que está em jogo aí, e de evidenciamento da incoerência que nela está também presente.
No testemunho que Tito de Alencar escreveu no cárcere em 1970, acha-se uma descrição muito literal dos fatos sofridos. Seu primeiro contato com a tortura é o «pau de arara », tortura que consiste em ajoelhar o preso nu, enfiar uma barra de ferro na dobra dos joelhos, prender por trás seus pulsos com seus calcanhares, e em seguida suspendê-lo de cabeça para baixo. «Assim suspendido, despido, eu recebi descargas elétricas de corrente contínua nos tendões dos pés e na cabeça. Os torturadores eram seis. Eles me aplicaram o "telefone" (bater as duas orelhas com a palma da mão ao mesmo tempo para fazer explodir os tímpanos) e eles me gritavam injúrias.» [2]
Identifica-se aqui, por parte dos torturadores, a busca de um efeito de estimulação (sommation) das diversas fontes de excitação: físicas, elétricas, sonoras e também verbais, e a nudez traz consigo uma excitação muito diretamente sexual. Mas reencontraremos essa estimulação de outro modo. De fato, os torturadores não vacilam acumular crueldades nas distintas partes do corpo. «Eles lançaram algumas descargas elétricas em minhas mãos, em meus pés, em minhas orelhas e em minha cabeça. A cada descarga todo meu corpo passava a tremer como se fosse despedaçar[3]» Por meio desta estimulação, além da brutalidade, busca-se provocar uma mutação psíquica do sujeito. Mas se podemos, nós, decifrar esta situação assim, Tito, ele, não podia discernir a estimulação que estava em jogo, nem a intenção que a ela presidia. O testemunho posterior do delírio é muito mais autêntico que o testemunho escrito porque nos mostra que Tito podia ter consciência somente de uma parte da situação; acontece desde o começo da tortura uma dissociação muito clara entre a consciência imediata dos fatos, e uma interiorização mais inconsciente onde não importa mais a diferença entre sevícias sofridas e sevícias desejadas. «Era eu impossível saber que parte do corpo era mais doída. Eu tinha a impressão de ser esmagado por toda parte. Minha mente não era mais coordenada, eu só tinha o desejo de perder os sentidos[4]”.
A estimulação visa de fato engajar, sem o conhecimento da vítima, seu desejo, e solicitar assim mesmo uma cumplicidade. Pois, pelo sofrimento, o corpo é solicitado eroticamente até o ponto onde uma auto-excitação interna é capaz de dar continuidade, de modo quase autônomo, à excitação externa. Confusão e culpabilidade virão como conseqüências de uma certa dissolução de categorias do interior e do exterior: não é o torturador que faz perder os sentidos, é ele mesmo que passa a sentir o desejo disso. Reencontramos, claro, o desejo à obra, de modo grotesco, na reconstrução delirante da tortura.
Um passo a mais na mutação psíquica secreta da vítima é perceptível no seguinte evento relatado por Tito: ele cai nas mãos de um novo torturador, o capitão AIbernaz. «Quando eu venho na Operação-Bandeirante, eu deixo o coração em casa. Eu tenho horror dos curas... Você conhece Fulano e Beltrano? (menciona os nomes de dois presos políticos torturados, com muita selvageria por ele), você vai ter direito ao mesmo tratamento: descargas elétricas o dia todo. Para cada um de seus NÃO, você receberá uma descarga mais importante. Havia três militares na sala. Um deles gritou: "Eu quero nomes de homens e de organizações clandestinas ".
Quando eu respondi: "Eu não sei, eu recebi uma descarga elétrica tão forte, daquelas diretamente plugadas na tomada, que eu perdi o controle de minhas funções fisiológicas [5].»
É difícil superarmos o pathos desta situação, e o espanto onde é deixado o leitor. Medimos a decadência onde é levado o verbo nesta experiência, tanto pela nossa tendência em ficar sem voz perante este relato quanto pelo fato de que o torturador parece não esperar por outra resposta a não ser exatamente o NÃO. O desespero na tortura passa pela decadência da linguagem. Há algo realmente infame nesta estratégia que usa, com aparente objetivo de fazer falar, de um constrangimento que organicamente castra a pessoa de seus meios de expressão, a tal ponto que o leitor é submetido à convicção, nesta passagem, que a tortura não é usada como um método de interrogatório policial, mas que ela tem um objetivo autônomo que é o de uma compromissão.
De fato, as descargas elétricas visam precisamente aqui a levar a vítima a se sujar. Ainda em sua narração, Tito alude a alguns as várias pessoas presentes ao lado do torturador: uma multidão de olhares que, portanto, concorrem, através de voyeurismo, para erotizar o relaxamento dos esfíncteres e os afectos múltiplos que o sujeito passa a sentir. Insistimos no exibicionismo presente em seu delírio e pode-se ver neste exibicionismo delirante a retomada de um afecto sofrido na tortura, o qual Tito não tinha meios de controlar, ao escrever.
O horror continua para ele: «Ele (o torturador) entrou nos ataques morais: Quais os padres que têm amantes? Por que a Igreja não expulsou vocês todos? Quem são os padres terroristas? Disse que a Igreja é corrupta, que pratica malversações financeiras, que o Vaticano é o proprietário das maiores empresas. A todas minhas respostas negativas, eles me davam descargas, socos, pontapés, e golpes de vara no tórax. Num determinado momento, o capitão Albernaz ordenou que eu abrisse a boca para receber "a hóstia sagrada ". Ele introduziu um fio elétrico. Eu permaneci de boca inchada, sem poder falar adequadamente. Eles gritavam contra a Igreja. Eles gritavam que os padres são uns homossexuais porque eles não são casados... Eles só pararam às quatorze horas» (nota-se que tinham começado de manhã às oito horas)[6].
A densidade patética da narração vem da pressa com que foi escrito, como em uma luta contra o esquecimento, contra o recalque benfazejo a curto prazo, mas que o alienará posteriormente, ao ter que rememorar pelo viés do delírio.
Tito, como foi falado, nunca mais conseguiu habitar sua identidade de religioso, e uma parte grande de seus escritos expressará a busca dolorosa de uma espiritualidade nova, impossível porquanto a procurava exclusivamente na reconciliação de ideais contraditórios: Freud e Marx, Marx e Cristo, etc.
Neste último fragmento da narração, percebe-se melhor por que procedimento a tortura consegue a mutação psicológica do sujeito. Consiste na destruição de auto-representações idealizantes do eu. Mais justamente aqui, o que especificamente é contestado é a representação a mais espiritual, a mais especular também, a do padre. Destruição seguida pela imposição de uma nova identidade, como a negativa da anterior,: «Você é um falso padre», em contradição: “A Igreja é corrupta », e na sensação de uma decadência: «Os padres são uns homossexuais.»
Da maneira que o Tito consegue evocá-lo, o procedimento torturador parece desenvolver-se como um drama do qual a cena paródica da comunhão seria o ápice. Com uma malignidade estratégica que só uma relação muito apaixonada pode inspirar, a manipulação pelo torturador do simbolismo religioso visa desacreditar, tornar em derrisão um setor da identidade da vítima, aquele do qual pode-se dizer que ele é o lugar de todas as sublimações e todas as transcendências. Ele é desacreditado porque é reduzido a um gestual quase pornográfica, neste contexto de excitação corporal, depois de tantas horas de sevícias.
Imagina-se que foi neste momento preciso que Tito de Alencar perdeu toda possibilidade de se reconhecer como o padre que ele era. A razão pela qual deve ter aderido a esta paródia está em relação com o ardil que consiste, não tanto em denunciar ex-abrupto a religião, mas em fazer ressaltar o embasamento pulsional, a partir do qual a sublimação religiosa pôde desenvolver-se. De fato, o torturador só faz virar de sua vertente solar, sublimatória, para uma vertente sombria pulsional. A tortura se revela como uma operação de sublimação.
Também é uma operação de despoetização. Porque se prestamos atenção, neste fragmento de narração, à importância das palavras que são expressadas pelos carrascos, nota-se vários pontos. Como provavelmente em outros momentos, o carrasco não deixa de insultar a vítima, mas, notemo-lo, de um modo relativamente sincronizado com as crueldades físicas. Como se cada interjeição fosse lançada e fosse introduzida no sujeito após um trauma físico. De fato, esta linguagem diz coisas das quais não é possível evitar a falsidade, já que contém, apesar de tudo, sua parte de verdade. E é sobre a ambigüidade do verdadeiro e do falso que está jogando: sobre a palavra homossexual, por exemplo, verdadeira de uma verdade que, latente, concerne todo ser humano, verdadeira também de uma verdade de fato, na situação do ser Tito que está sofrendo passivamente uma paródia de felação em um contexto de exibicionismo-voyeurismo. Na realidade, não somente a linguagem se introduz no rasto das sevícias corporais, mas, bem mais, ela as acompanha e vem lhes dar um sentido que por si só não poderiam ter. A linguagem funciona aqui como um veredicto, melhor, como uma interpretação selvagem que vem estigmatizar de modo absolutamente irreversível a ressonância emocional que as sevícias tentam provocar no sujeito.
Pode-se dizer que com o insulto, o carrasco completa sua estratégia e encerra a experiência. A linguagem assumiria assim um papel análogo aos olhares das pessoas que assistem à cena. Pois como Tito poderá, para sempre, repensar este momento da experiência onde, despido, humilhado, constrangido, está apanhando, sendo passivamente estuprado, sem que seja através do veredicto das vozes e dos olhares: «Você é um homossexual», «Você se entrega e se expõe como uma mulher»?
Esta palavra que diz ao mesmo tempo o verdadeiro e o falso, que se impõe do exterior e acha sua ressonância dentro, não poderá mais ser objeto de uma elaboração espontânea. Caída de seu estatuto semântico, sofreu uma despoetização que a reduziu a um mero corpo estranho, uma coisa que habitará duravelmente o sujeito e que reencontraremos à obra, novamente, na hora das fases menos subterrâneas do seu delírio, quando a voz do torturador lhe ditará cada ato de sua vida.
Não há duvida que Tito de Alencar morreu no decorrer de suas torturas. Mesmo incorrendo no risco do pathos, estou inclinado a afirmar essa proposição na medida em que o que Tito era, o religioso, o lutador, mas também o homem inscrito numa história privada, doméstica, o filho, o irmão, não o era mais. Tito se tornou alguém outro, aquele que seu torturador teria querido que fosse. É neste sentido que pode-se dizer que era um sobrevivente do qual era talvez impossível, a nós que não havíamos passado por essa provas, entendermos o que dele sobrevivia.
Tudo aconteceu como se a tortura tivesse substituído um homem novo ao homem velho que ele era, o que só faz retomar o espírito da tortura onde o torturador focaliza seu olhar num só ângulo, o ser enquanto vítima, menosprezando absolutamente a realidade existencial do sujeito. Nos chamou muito a atenção ver que, quando uma de suas irmãs fez uma longa e cara viagem do Brasil para a França para ajudá-lo, mal a reconheceu, aceitou nenhuma familiaridade com ela, ficando impermeável a todas as tentativas para fazer reviver seu passado.
Ele era o novo personagem criado por Fleury, e isto é exatamente aquilo que a tortura visava. Pois anota-se um estreito parentesco entre a maneira com que o carrasco manipula as sevícias físicas e o modo com que manipula o insulto verbal. Nos dois casos, trata-se menos de ferir o exterior do que provocar um movimento interno de autodestruição e um movimento de autocrítica que devem continuar agindo por conta própria. É o que Tito de Alencar demonstrou em seu delírio quando impôs a si mesmo todas as privações que sabemos, mas também nesta atividade incessantemente repetida de auto-acusação. Seu caso poderia ser considerado como uma tortura exitosa, ou seja é possível que o ideal do torturador esteja em por a caminho o que, na pessoa humana, está disponível para uma auto-tortura (como conhecemos com freqüência na patologia): auto-desvalorização, autocrítica, autopunição. É talvez desta agudez psicológica que se vangloriou o Albernaz quando Tito lhe ouviu dizer: "Nós sabemos fazer coisas sem deixar rastros. Se sobreviver, nunca esquecerá do preço de sua audácia"[7].
Em um momento bem preciso, Tito teve o sentimento de ter traído, dando nomes. Ele se acusará precisamente por muito tempo, de modo melancólico, embora todos os testemunhos contrariam essa convicção: ele não teria entregado nenhum nome sob a tortura. Vê-se aí, nesta auto-acusação, um meio cômodo, imediato, para racionalizar sua culpabilidade, mas também, sobre esta culpa clássica de torturado, vem deslocando um sentimento mais escuro e expansivo da traição. Nas escritas, este sentimento de traição assume a forma de uma preocupação nascente para com o destino dos seus Irmãos Dominicanos. "Em minha cela eu não conseguia dormir. A dor aumentava cada vez mais. Eu tinha a impressão que minha cabeça era três vezes mais grossa que meu corpo. Era preciso acabar com isso uma vez por todas. Eu sentia que não poderia agüentar tamanho sofrimento por muito tempo. Eu estava angustiado à idéia que meus Irmãos Dominicanos pudessem sofrer a mesma coisa".
O desejo de morrer permanece indissociável deste sentimento de traição que representa a essência mesma da auto-tortura , tanto quanto é a meta suprema da tortura, pois é o grupo ao qual pertence a vítima que o algoz tenta alcançar por meio dela. Ora ao mesmo momento, uma campanha de imprensa é orquestrada publicamente contra o grupo dos Dominicanos. O jornal O Globo publicou o seguinte: «Eles (os Dominicanos) traíram a fé ao aderir ao comunismo, e traíram o comunismo ao entregar Marighela. São os novos Judas [8]» É impressionante como as mesmas acusações difamatórias, as mesmas calúnias, circulam aqui, no século, e ali, no espaço fechado, clandestino, inter-individual, da tortura. Sentimo-nos autorizados a considerar que é a mesma guerra que um certo grupo ideológico realiza contra um outro, aqui e ali. Daí a idéia de que a tortura poderia ser entendida como um tipo de microcosmo da guerra mais geral, oficial, uma guerra de «laboratório», onde os obstáculos, os fracassos que o poder enfrenta na realidade seriam como magicamente eliminados. Um microcosmo onde o poder se dá a ilusão de que a realidade é complacente com seu desejo: a tortura seria um campo de utopia. Ao esmagar Tito de Alencar fisicamente e espiritualmente, o torturador, e o grupo do qual ele é o representante, visavam talvez nada mais que reforçar-se na convicção de que eles poderiam acabar, sem dificuldade, com uma oposição de idéias, que ameaçava sua própria convicção.
A busca desta ilusão de vitória responde muito melhor pela crueldade das sevícias do que uma suposta busca de informações, já que, como se viu, estas sevícias quase sempre colocavam o Tito na impossibilidade de falar.
Tito, pessoa bem real, no entanto é torturado enquanto efígie do grupo dominicano do qual ele é o símbolo. Há na tortura um fundo de exorcismo que fica preso ao não-dito, ao não-sabido, de um lado e do outro, mas que traz sua própria confusão ao mistério da experiência. Freud, em Totem e Tabu, explica: "Um dos processos mágicos do qual se usa mais comumente para prejudicar um inimigo, consiste em fabricar sua efígie com materiais quaisquer. Poderá ainda se demonstrar que tal ou tal objeto representa sua imagem. Tudo o que se inflige a esta efígie atinge o modelo odiado. É suficiente ferir qualquer parte daquela, para que a parte correspondente do corpo deste fique doente”[9]. O material qualquer está aqui sendo Tito de Alencar, e o objeto que representa a imagem, é seu corpo.
Fiquemos com esta hipótese da tortura como prática exorcista, enquanto nos permite acompanhar a decadência da palavra e da linguagem tal qual acontece na tortura, até conduzir a esta forma semiótica particular que é a confissão. É de fato numa progressão experta que Tito de Alencar será despojado da sua palavra de homem, desde que a clandestinidade e a ilegalidade da tortura tiram toda referência ética. Despojado em seguida de sua palavra de homem, na medida em que a dominação sexual almejada pelo carrasco conduz a vítima a identificar-se a um corpo erógeno que só fala de excitação e compulsão à repetição. E enfim, com esta fase que a imagem de efígie ajuda a figurar, entendemos que a palavra chamada pelo torturador é não a palavra de Tito de Alencar, sobre Tito de Alencar, mas a palavra do representante de um certo grupo sobre o grupo em questão. É portanto uma palavra que, longe de ser ao serviço de uma verdade qualquer, não tem outra razão de ser senão tentar responder a uma expectativa bem precisa do torturador. Esta expectativa seria evidentemente a entrega de nomes, a prova de uma compromissão, de um erro, de uma traição, tanto faz. Porque, qualquer coisa que a vítima diz ou não diz,, esta será uma palavra que o executor ouvirá do jeito que ele esperava: eis a confissão.
Tudo fala em favor do torturador, como tudo concorre para provar à vítima que ela falou, porque a confissão nunca corresponde a uma declaração qualquer, mas a uma certa forma de decadência da linguagem onde o sinal verbal só se interpreta através do desejo daquele que o está escutando.
A ausência de terceiro, o livre desenvolvimento da onipotência do desejo do carrasco, caracterizam suficientemente o caráter furioso, psicótico, desta situação de tortura, que a decadência do verbo vem cristalizar.
Já há um século, um autor como Jules Michelet tinha percebido a dimensão delirante disto: «Uma bruxa confessa ter puxado ultimamente do cemitério o corpo de uma criança morta, para usar este corpo em suas composições mágicas. Seu marido diz: " Vá para o cemitério. A criança está ali". O corpo é exumado, encontrado exatamente no seu lençol. Mas o juiz decide, contra o testemunho de seus olhos, que é uma "aparência", uma ilusão do Diabo. Ele prefere a confissão da mulher ao fato em si. A mulher é queimada[10].»
Esta decadência da palavra, Tito a denunciará no longo mutismo que pudemos observar, bem como no automatismo mental, onde uma voz que não era mais a sua falava dentro dele.
A prática do torturador é louca, e, frente a esta loucura passional, a denúncia e a luta política têm que se fazer, no mesmo grau, passionais e impiedosas. Mas ela é também louca no sentido psiquiátrico do termo. Sem que isso em nada contamina a luta política, devemos clarear isto porque esta loucura situacional exerce por si só um efeito psíquico destrutivo sobre a vítima; mas existe também um interesse antropológico em entender este fato realmente misterioso de que homens civilizados possam endossar a responsabilidade de tal prática.
Pierre Vidal-Naquet[11], a propósito de torturas praticadas na Argélia antes da independência, nos convence da idéia de que a tortura só foi possível porque políticos deixaram seriamente de cumprir com sua função de controle das instituições e autorizaram um vazio legal que só permitiu a instalação de práticas torturadoras. Abandonado pelo jurista, dispensado, não sem complacência, pela lei, o soldado se torna torturador e, se assim pode-se dizer, ele se torna também louco, autorizando-se de uma conduta exorcista e mágica que lhe serve no lugar de pensamento.
Realmente só uma loucura, ou digamos um enlouquecimento, permite entender a crueldade extraordinária demonstrada nestas situações, a implacabilidade sádica que amarra literalmente o carrasco à sua vítima e do qual a narração de Tito de Alencar dá uma descrição de um realismo comovente e uma grande agudez psicológica. De fato, é de uma certa face do torturador, com sua estarrecedora inumanidade, que, constantemente, este texto nos fala.
Imagina-se a revelação que constitui para a vítima o encontro com este rosto do homem que desvela brutalmente, sardonicamente, o torturador,:
Tito terá que se debater com essa imagem, ao mesmo tempo para nela se reconhecer a si mesmo enquanto homem, e para dela se livrar numa contra-identificação às vezes próxima ao angelismo.
Aludimos, na história de Tito de Alencar, ao exibicionismo um pouco histérico que demonstrava. Em sua indiferença para com os outros, não estava ausente uma certa arrogância, até mesmo a convicção secreta de ser um herói, por ter passado por uma prova conhecida de nenhum outro, de ser de certo modo um iniciado. Ao lado do que tirava para o sentimento de decadência, uma patologia do «Eu grandioso» presidia ao seu isolamento. A mesma talvez tinha achado sua justificação na estranheza da experiência que, na confusão onde ele se encontrava, ele elaborou nos termos de uma iniciação sacrificatória da qual teria sido o único depositário, igual ao Cristo ao qual lhe ocorreu repetidamente se comparar.
Por nossa vez, fomos fascinados pela experiência que viveu, porquanto nela nos tocamos com este encontro inédito do homem, em sua crueldade virtual, da qual a civilização nos protege e nos separa. Eu vejo, pessoalmente, na multidão de escritos que esta vida suscitou, uma vontade de transmitir - não sem a idéia de uma possível redenção - esta revelação, em um movimento quase angélico. Mas estes atos de palavra têm no entanto uma função autônoma: livrar a palavra de Tito da subversão que a tortura lhe teria infligido.
É sempre por ocasião de causas religiosas, espirituais, ideológicas, que a tortura se desenvolveu. Não podemos desconhecer que neste contexto de idealidade - e de predisposição mágica que o próprio ideal proporciona - a tortura é tanto mais tentadora quanto lhe é atribuída uma eficácia que não tem a ver com a objetividade, mas com o poder de anulação que ela sabe implementar. Os processos de feitiçaria, a Inquisição, as dragonadas, os recentes genocídios que intentavam destruir como representante do mal o que era da ordem da diferença, todos convidaram a tortura para este fim.
JEAN-CLAUDE ROLLAND
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[1] Então as pedras gritarão, pág. 59, Ed. Cana, 1980.
[2] Então as pedras gritarão, op.cit., pág. 52.
[3] ibid., pág. 52.
[4] ibid., pág. 54
[5] Ibid., pág. 55
[6] Ibid., pp. 55-56
[7] ibid., pág. 57
[8] ibid., pág. 12
[9] Totem et Tabou, Petite Bibliothèque Payot, pág. 94
[10] J. Michelet, La Sorcière, Garnier-Flammanon, 1966, pág. 162
[11] P. Vidal-Naquet, La Torture dans la République, Maspero, 1972, pp. 101 a 114.

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