quinta-feira, 12 de março de 2009

Quinta da entrevista: O tempo do perdão

Dom Fernando Panico

Dom Fernando Panico, bispo diocesano do Crato e pastor da Comissão de Estudos para a Reabilitação Histórico-Eclesial do Padre Cícero, revela a relação atual da Igreja com o padre já canonizado pelo povo. "Não há como negar a bênção à imagem de quem é, para eles (devotos), padrinho, com toda força simbólica que essa expressão tem na nossa cultura", diz, nesta entrevista.

Ana Mary C. Cavalcante
da Redação
Jornal O Povo
Devagar com o andor. Assim, a Santa Sé conduz o processo de reabilitação de padre Cícero. Quando dom Fernando Panico assumiu a Diocese do Crato, em 2001, o então cardeal Ratzinger - hoje, papa Beto XVI - lhe pediu que revolvesse os arquivos e garimpasse tudo sobre o sacerdote já canonizado pelo povo. Em 2006, dom Fernando entregou à Congregação para a Doutrina da Fé, em Roma, cerca de 2.500 páginas (11 volumes) e cinco anos de pesquisas. Desde então, com paciência, elemento fundamental da fé, e cautela, atributo dos sábios, dom Fernando (e milhares de devotos) espera uma resposta da Santa Sé.
"O processo de reabilitação do Padre Cícero é altamente complexo, possui muitas variáveis", considera, nesta entrevista realizada por e-mail. Ele sabe que o perdão tem seu tempo.
Enquanto isso, em Juazeiro do Norte, caminho de passagem de dois milhões de romeiros por ano, a Igreja, há muito, já fez as pazes com padre Cícero. "Não há como negar a bênção à imagem de quem é, para eles (devotos), padrinho, com toda força simbólica que essa expressão tem na nossa cultura", celebra dom Fernando.
O Povo - Há algo novo no processo de reabilitação de padre Cícero, alguma manifestação da Santa Sé, desde que os documentos foram entregues, em 2006?
Dom Fernando Panico - A Congregação para a Doutrina da Fé, órgão da Santa Sé encarregado da análise do processo de reabilitação, ainda não se manifestou sobre o andamento dos estudos. Roma é a "cidade eterna", portanto, o tempo, na Santa Sé, é diferente do nosso tempo aqui, nesta correria. Mas, deixando as alegorias de lado: o processo de reabilitação do Padre Cícero é altamente complexo, possui muitos aspectos a estudar. É preciso tempo... Muito tempo. Além disso, é preciso muito cuidado nessa fase dos estudos porque há que se compreender que é uma situação muito delicada. Com toda transparência, a Congregação pediu a reabertura do processo, pediu que encaminhássemos toda documentação concernente ao padre Cícero arquivada na Diocese de Crato. A Comissão de Estudos para a Reabilitação Histórico-Eclesial do Padre Cícero, instituída por mim, trabalhou durante cinco anos na preparação e elaboração do documento que contém 11 volumes e por volta de 2.500 páginas. A Congregação sabia que corria o risco, com esse pedido, de ter que assumir que houve um engano no julgamento do padre Cícero. Ou que não houve engano. Muitas vezes, a certeza imediata não é a verdade. A verdade se constrói com muito estudo e dedicação. A situação é delicada, pelos dois lados. Todos nós - inclusive os da Congregação para a Doutrina da Fé - temos consciência de que estamos tratando de um assunto muito especial para milhões de pessoas, devotas do padre Cícero. É preciso, portanto, um estudo muito acurado, para que se faça, definitivamente, justiça. Sabemos que a justiça tem que ser cega e apresentar a verdade, doa a quem doer. Por isso, se nós levamos cinco anos na preparação dos documentos, imagino que eles levarão muitos anos para estudá-los e apresentar um parecer.
OP - Qual a expectativa em relação à resposta da Santa Sé sobre a reabilitação? Não falo somente do tempo de resposta, mas se a Igreja deste século pode reconhecer que errou em 1889...
Dom Fernando - Desde que foi a própria Congregação para a Doutrina da Fé quem pediu a reabertura dos arquivos da Diocese de Crato, está claro que a Igreja está disposta a reconhecer que errou, como já tantas vezes fez, e, mais ainda, a pedir perdão. A Igreja Católica, como qualquer instituição composta por seres humanos, é passível de erro. Penso que, muitas vezes, o Espírito Santo tem que fazer um esforço grande para impedir que nós, membros da hierarquia eclesiástica, erremos. Mas é assim, somos humanos, podemos errar. Mas confiamos sempre que o Espírito Santo nos ajude e, se necessário, nos obrigue a pedir perdão quando o erro acontece. Não vejo qualquer dificuldade em que a Igreja reconheça, se isso se verificar - segundo os novos estudos realizados, que errou no caso do padre Cícero.
OP - Na sua avaliação, o que levou o então cardeal, hoje papa Bento XVI, a solicitar ao senhor esse estudo para a reabilitação de padre Cícero?
Dom Fernando - Não é segredo para ninguém a quantidade de pedidos que chegavam à Congregação para a Doutrina da Fé, para que o processo sobre padre Cícero fosse revisto. E pedidos que chegavam de todos os segmentos da sociedade: civil e eclesiástica. O então cardeal Ratzinger, com toda inteligência que Deus lhe deu e com toda responsabilidade que seu cargo como Prefeito da Congregação exigia, ao menos deve ter se inteirado do antigo processo levado a efeito pelo Santo Ofício, nome antigo da atual Congregação. E deve ter percebido que faltavam muitas informações contidas nos arquivos da Diocese de Crato, considerando que a referência oficial eclesiástica de um último trabalho de pesquisa era da década de 70 do século passado. Por isso, o pedido de abertura dos nossos arquivos. Não só abrimos os arquivos, como disponibilizamos todos os documentos encontrados para o estudo em Roma. Outro dado que deve ter influenciado o pedido do cardeal Ratzinger foi saber do imenso número de romeiros e romeiras que vêem à cidade de Juazeiro do Norte "visitar" padre Cícero e Nossa Senhora das Dores. Essas romarias estão documentadas nos relatórios quinquenais que a Diocese enviava à Santa Sé. A Igreja não pode, absolutamente, ficar indiferente a tal movimentação para um santuário, hoje Basílica Menor de Nossa Senhora das Dores.
OP - Monsenhor Murilo de Sá Barreto, que foi pastor de Juazeiro por quase meio século, compreendia a "maior reabilitação do padre Cícero" pelo "novo olhar dos novos tempos sobre sua figura". A percepção da Igreja é outra, em relação a padre Cícero? O que mudou?
Dom Fernando - Depois do Vaticano II, a Igreja tem um novo olhar para as grandes manifestações religiosas populares. Haja vista a profusão de documentos eclesiais publicados para que se compreenda e valorize mais a religiosidade do povo. Isto não aconteceu apenas na Igreja. Também as universidades nos ajudaram a entender melhor essa forma de expressão popular. Enquanto antes, nos meios acadêmicos, o pobre, o analfabeto, o povo da roça era considerado inculto, ou fanático, hoje, se pode separar os diversos tipos de conhecimento, de comportamento, de sentimento e se descobrir o verdadeiro valor que há nessas manifestações antes criticadas como alienadas. São modos diferentes de agir no mundo, de ver a realidade, mas não são mais excludentes, não há um melhor do que outro. Nesse sentido, apesar de toda manipulação feita em torno da figura do padre Cícero, tanto a Igreja como a academia podem se aproximar mais dele e, ao vê-lo de perto, compreender o seu imenso valor como ser humano e, especialmente, como sacerdote que, como poucos, iluminou e ilumina a vida do povo brasileiro.
OP - A Igreja ainda não reconheceu padre Cícero como santo, sequer concedeu a reabilitação, mas não mais reprime, como já quis reprimir, as práticas religiosas dos romeiros. Não há o reconhecimento de sua imagem como fonte de milagre, mas, nas missas, em Juazeiro, as imagens de padre Cícero são abençoadas. Que relação a Igreja mantém com padre Cícero, atualmente? Dom Fernando - Por tudo que nós, nesses últimos anos, aprendemos sobre padre Cícero, do que ele representa para os fiéis, de como constitui parte da identidade do povo nordestino, não há como negar a esse mesmo povo que todos tenham, em suas casas, a imagem que representa para eles a profunda relação com Deus, com Nossa Senhora, com a Igreja Católica; o que ele representa de força, de luz, de alegria, de conforto, de esperança. Não há como negar a bênção à imagem de quem é, para eles, padrinho, com toda força simbólica que essa expressão tem na nossa cultura. Em minha carta pastoral "Romarias e Reconciliação", afirmo a importância de Padre Cícero: "Seguindo os passos do padre-mestre Ibiapina, padre Cícero foi, no seio do Nordeste, um incansável apóstolo da devoção à Virgem Maria e do seguimento fiel ao Jesus de Nazaré, o homem das Dores, a luz do mundo, coração aberto para todos. Fruto de sua formação no seminário e da espiritualidade do seu tempo, três foram os grandes eixos da ação pastoral de padre Cícero e da sua vida de fé: a dimensão eucarístico-sacramental por meio da Eucaristia e da Reconciliação, cuja fonte está no Sagrado Coração de Jesus; a vivência da compaixão e solicitude para com os sofredores - tradução do amor filial à Virgem Maria, invocada sob o título de Nossa Senhora das Dores; e, finalmente, o amor ao Santo Padre, como expressão de fidelidade à Igreja, apesar de todas as dificuldades que experimentou em sua relação com a Igreja Local. Padre Cícero preocupava-se em incentivar o povo a compreender que a vivência da fé havia de ser realizada também nos lares, transformando-os em verdadeiros santuários e oficinas, tendo a oração - especialmente o rosário da Mãe de Deus - e o trabalho como referências fundamentais para a vida cristã. Esses conselhos foram acolhidos pelos romeiros que os assumiram como orientação fundante em suas vidas de peregrinos. Desta forma, no silêncio de sua espiritualidade, este mesmo povo eleva um clamor a Deus para que possa viver com dignidade e justiça, como povo de Deus, livre do mal do egoísmo que gera miséria e exclusão. Não podemos fechar nossos olhos nem tapar nossos ouvidos para este clamor."
OP - Retomando o milagre: a transformação da hóstia em sangue aconteceu uma centena de vezes. Qual o destino dos panos que Maria de Araújo usava para limpar o sangue? Que provas ainda restam, hoje, do milagre? Há novas provas?
Dom Fernando - É verdade que o sangramento da hóstia aconteceu mais de uma centena de vezes, no espaço de cinco anos, 1889 a 1893, pelo que os documentos recém descobertos nos apontam. Em geral, acontecia no tempo litúrgico da Quaresma, tempo propício, especialmente naquela época, para se meditar sobre a Paixão de Jesus Cristo. Maria de Araújo dizia que sofria, junto com Nosso Senhor, as suas dores, para redimir o mundo dos pecados. Esse sangue que vertia da hóstia consagrada e escorria pela boca da beata era recolhido nas toalhas, nos sanguíneos, panos litúrgicos usados na celebração da eucaristia. Por ordem do bispo do Ceará, dom Joaquim José Vieira, obedecendo ao Decreto de abril de 1894, mandou que os panos fossem queimados assim que encontrados. Durante muito tempo, ficaram escondidos, principalmente, em mãos das pessoas que acreditavam, piamente, que o sangue da hóstia consagrada era o sangue de Jesus. Até que, encontrados, foram queimados - não na totalidade - no Seminário São José, na cidade de Crato. Os panos que nos chegam hoje estão, em sua maioria, lavados (porque era assim que se procedia. Era necessário purificá-los do sangue de Cristo) e, portanto, sem matéria para uma possível análise de laboratório. De qualquer forma, sem negar a importância do exame científico, a Igreja deve ocupar-se, pastoralmente, com os frutos desse possível milagre: nossos romeiros e romeiras que, a cada dia, nos ensinam a amar a Deus, a Nossa Senhora e ao padre Cícero.
OP - A reabilitação ou reconciliação (como o senhor prefere dizer) do padre Cícero é um primeiro passo para se iniciar uma caminhada de canonização - até porque padre Cícero já é visto como santo popular por milhares de romeiros. Mas o que é necessário para, de fato, a Igreja reconhecê-lo santo? O milagre da hóstia seria suficiente ou seria necessária a manifestação de outros milagres? E já se tem notícia de outros milagres, a propósito?
Dom Fernando - Penso que seria bom esperarmos, pacientemente, pelas conclusões que a Congregação para a Doutrina da Fé vai apresentar sobre o processo do padre Cícero para só então começarmos a pensar em sua canonização. O primeiro passo será este. Depois se verá...
OP - A Igreja Católica traz inúmeras biografias de pessoas comuns que almejavam a santidade e, realmente, se tornaram santos venerados. Na sua opinião, padre Cícero queria ser santo?
Dom Fernando - Claro que sim. Todos somos chamados à santidade, pois nascemos e vivemos para isto. Pelo Batismo nos tornamos filhos de Deus e ser santo, como Deus é santo, é um imperativo. Não seríamos povo de Deus se não buscássemos viver uma vida santa, ou seja, honesta, justa, orientada para amar a Deus Pai sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos. Quem conhece, intimamente, a história do padre Cícero sabe que ele nunca procurou qualquer glória pessoal, nem usou nada em proveito pessoal. Tudo o que tinha e o que era colocou a serviço do povo pobre que, Jesus, num sonho, lhe recomendou que tomasse conta. Essa foi a grande missão da vida do Padre Cícero: cumprir a vontade de Deus, dedicando-se, dia e noite, corpo e alma, ao povo sofrido do Nordeste. Em seu testamento, dizia que nem político queria ser. Foi por necessidade da hora. E tanto é verdade que jamais saiu de Juazeiro para assumir os postos políticos para os quais era eleito. Certamente, para ele, a premência era querer servir segundo os princípios evangélicos. E serviu plenamente ao seu povo.
OP - E o conceito de santidade, para a Igreja Católica, mudou com as mudanças dos tempos? Qual o conceito de santidade, atualmente, para a Igreja Católica?
Dom Fernando - A santidade é a meta proposta a todo estado de vida. Santos são aqueles que, confessando Cristo, sua pessoa e sua doutrina através de sua existência, e permanecendo estreitamente unidos a Ele, são quase uma ilustração viva de um e outro aspecto da perfeição do Divino Mestre. Os santos são muitos irmãos e irmãs nossos que, em toda época, fizeram de si mesmos um oferecimento total a Deus pelo seu Reino. Apresentados adequadamente em seu dinamismo espiritual e em sua realidade histórica, contribuem para tornar mais confiável e atrativa a palavra do Evangelho e a missão da Igreja e o contato com eles abre o caminho a verdadeiras ressurreições espirituais, a conversões, ao surgimento de novos santos (cf. Discurso de Bento XVI aos membros da Congregação dos Santos, no dia 17 de dezembro de 2007). A santidade é o DNA da Igreja, Corpo de Cristo, é um dos seus elementos constitutivos, pois a Igreja é chamada a ser reflexo da santidade d'Aquele que é a própria santidade do Pai, tornada tempo e história: Jesus Cristo. Somos chamados a ser "imagem de Cristo", Igreja santa, apesar das nossas fraquezas e pecados, dos quais Jesus já nos libertou.