domingo, 21 de outubro de 2007

Continuando a publicação da AUTOBIOGRAFIA E REMINISCÊNCIAS, de José Macedo, trataremos do período de 1921 a 1950. Através dos registros, temos importantes observações sobre o período. A vida tangenciada pelas secas periódicas, a migração em busca de melhores condições de vida, a rotina produtiva do sertão semi-árido, o detalhamento de técnicas agrícolas utilizadas, a dificuldade em educar os filhos, este texto nos traz, além da memória da família e do espírito empreendedor de Zé Macedo, significativos registros de uma época que não poderiam deixar de ser publicados.
Tudo isso me faz lembrar um verso de Pablo Neruda que inclusive já publicamos neste blog mas vale a pena repetir:

De onde nasce a chuva
Não sei quando chegamos a Temuco.
Foi impreciso nascer e foi tardio
Nascer de verdade, lento
E apalpar, conhecer, odiar, amar,
Tudo isto tem flor e tem espinhos.”
(Pablo Neruda)

(Foto de Zé Macedo, aos 90 anos)

Os anos de 1921 e 1923 passaram-se sem acontecimentos dignos de menção, apenas que neste último ano resolvemos acabar com a casa de negócios. Meu irmão Isaías retirou-se para Fortaleza e eu, dos lucros que me coube como sócio , uns 18.000,00, ficaram em folhas da Estrada de Ferro aguardando pagamento.
De 1923 a 1924, o algodão, a principal fonte de renda do Estado , que os preços anteriores oscilaram de 10,00 a 15,00 por arroba de 20 quilos em caroço, subiu para 40,00. Neste ano, resolvi casar-me com Dona Soledade Macedo, filha de meu primo Vicente Macedo, falecido recentemente a 3 de julho de 1963.
Antes de casar-me, fui a Fortaleza, troquei a importância que tinha em folha da Estrada de Ferro estabeleci-me em Alagoinha – atual Ipaumirim onde fixei residência. Além das compras de tecido que fiz em trocas de folhas, comprei outra parte á crédito.
Porém as coisas não ocorreram como eu esperava, no ano seguinte o algodão caiu de preço e os tecidos foram baixando, até que em 1926 para 1927, caiu para 10,00 a arroba, na proporção que o algodão baixava, assim era também o tecido. Em tal situação, fui obrigado a deixar o comércio e retirar-me para Olho d’Água, lugarejo perto de Ipaumirim, fui tomar conta de uma
propriedade de Felizardo Vieira. Comprei um velho locomóvel de beneficiar algodão (1) e fui
comerciar com este produto, neste negócio posso dizer que a emenda foi pior que o soneto. Como o maquinismo só vivia desmantelado e continuamente em conserto, resolvi vende-lo pela metade do preço indo depois tratar da agricultura.
Os terrenos do Sr. Felizardo que estavam abandonados, tratei de cultivá-los, mandei fazer cerca e plantio de cana, roçado para cereais e algodão. Eu até aquela data nunca havia pegado em enxada, foice ou machado para trabalhar porém tudo isto eu enfrentei, muitas vezes quando faltavam as chuvas do inverno, eu com farol aceso aguava arroz até 9 horas da noite. Estávamos no ano de 1929, ano este que nasceu-me o terceiro filho e foi batizado com o nome de Evandro, os anteriores eram mulheres por nome Gesielda e Gesilda. Em virtude do proprietário querer receber o terreno fui obrigado a entregar, então retirei-me para um pequeno terreno que comprei no município de Aurora (2), por nome Mané, onde fui morar com a família numa velha casa de taipa, toda esburacada. No primeiro ano, botei um roçado de 20 tarefas (3), o inverno foi bastante fraco e a colheita não deu para as necessidades. Enquanto isso, em 1930, nascia um filho – Juarez. Aguardei o próximo ano com outro roçado que teve sorte igual ao primeiro. Esperávamos um bonançoso inverno em 1932, deu-se justamente o contrário, foi uma seca quase igual a 1919 com a diferença de ter havido alguma pastagem e ter escapado parte do gado. Naquele ano, nasceu Gesilda.
Eu e meu irmão Joel tínhamos uma parte de gado e como vaqueiro Sr.Nesinho Saraiva que era muito zeloso, fomos escapar esse gado no município de São Pedro (4), distante umas 18 léguas de minha residência.
Marchamos para o ano de 1933, houve um inverno regular, porém a praga da lagarta disseminou grande parte da lavoura. Mais um filho nasceu naquele ano, o José.
Eu e Dona Soledade, se bem que não gozássemos saúde, trabalhávamos sem parar, ela como um dínamo, cuidava da luta doméstica cozinhando para trabalhadores, costurando para crianças e, às vezes, ia ajudar-me na colheita do feijão e minhas outras coisas que deixo de enumerar.Graças a Deus, não faltava o necessário para manutenção da família, sempre havia fartura em minha casa.
Como a colheita de 1933 tinha sido pequena, achei que devia aproveitar a represa de um pequeno açude de meu terreno fazendo vazante de arroz, mandei um caboclo que morava comigo, por nome Antonio Cândido, procurar comprar as sementes para semear e depois mudar para a água. Encontrou um arroz vermelho debulhador, como não havia outro, resolvi encanteirar as sementes para depois de nascidas mandar para a água rasa das represas, era um serviço que eu nunca havia feito. Junto com Antonio Cândido, demos início ao trabalho, com um espeque furamos o chão colocando as mudas. Muitos dias decorreram naquele serviço até que conseguimos fazer uma grande vazante.
O arroz prosperava com vantagem mas na proporção que a água afastava a terra, ia secando e era preciso aguar, era um serviço penoso e pesado. Fazia-se regos em torno da vazante e com o auxílio de latas íamos botando água para irrigação, isto durava muito tempo. Ao terminar o dia, sentíamos-nos muito cansados daquele trabalho estafante. Finalmente, o arroz florava, granava e começava a amadurecer, porém uma onda de passarinhos invadia o arrozal e por mais que procurasse afugentá-los, o estrago era muito grande.
Por último, achei que devia desprezar a vazante se bem que tenha colhido umas quartas de 80 litros.
Nos dias de sábado que era data das feiras em Aurora, Antonio Cândido levava um burro carregado, eram duas quartas, vendia ao preço de 18,00 apurava Cr$ 36,00. Com esse dinheiro comprava as utilidades necessárias para passar a semana.
A safra de algodão de 1933 produziu 40 arrobas que vendi ao preço de 12,00 por unidade.
Preparei-me para o ano de 1934, mandei botar um roçado de 20 tarefas. Plantei a semente no seco e aguardei o inverno. Ele não tardou e antes de terminar o 33 caíram as primeiras chuvas, nasceram as sementes, que foram semeadas, continuando um copioso inverno que tudo criou com abundância. Eu e Dona Soledade éramos incansáveis na luta pela vida, às 4 horas da madrugada, com chuva ou sem chuva, eu já estava no curral com a lama pela canela, desleitando as vacas. Quando chegava em casa com o balde de leite, a patroa estava com o café feito que bebia-o com pão de milho; depois, fumava um cigarro feito de fumo bruto e ia para o moinho moer o milho para o angu dos trabalhadores. Enquanto isto, Dona Soledade colocava o coalho no leite para coagulação e preparava o queijo que era também uma das fontes de renda que tínhamos, vendíamos o quilo ao preço de Cr$ 2,00. Convém notar que tínhamos outros rendimentos, como criávamos muitas galinhas elas produziam muitos ovos, quando aparecia comprador eram vendidos a Cr$ 5,00 o cento. Quero falar também na venda de frutas. No Sítio Bordão de Velho, morava o velho João Procópio, o nosso terreno produzia grandes e saborosas bananas, Procópio que negociava com o artigo sempre nos comprava ao preço de Cr$ 1,20, o cento.
Durante o tempo que trabalhei na lavoura, o 34 foi o ano mais bonançoso, ainda hoje guardo gratas recordações. Naquele ano, colhi muito milho e muito feijão e a safra de algodão foram 250 arrobas, como deu um bom dinheiro, vendi ao preço de Cr$ 14,00 a arroba.
Fato é que ao terminar o ano, eu tinha saldado a elevada importância de dois mil e quinhantos cruzeiros, Cr$2.500,00.
Depois de 10 anos de revezes, as coisas começavam a melhorar. Penetrávamos no ano de 1935 quando nasceu Giseldina, tivemos mais um bom inverno e boa safra de algodão, saldei mais um pouco de dinheiro que ia acumulando.
Isolados do mundo civilizado vivíamos naquele pé de serra convivendo com gente rude e ignorante, não se ouvia um rádio e nem se lia um jornal, algum acontecimento importante sabia-se por ouvir dizer.
Ainda no Mané, nasceram mais dois filhos, Genilda e Antonio, a primeira em 1938 e o segundo em 1940.
A meninada ia crescendo e os mais velhos precisavam estudar, então eu conseguia mocinhas pobres que passavam alguns tempos em nossa casa ensinando-os, eu mesmo auxiliava. Nunca pensei em formar um filho, minha maior aspiração era que todos fizessem o curso primário.
Depois de muito trabalho, sacrifícios e economias, juntei um pequeno capital, entendi de residir em uma cidade afim de ensinar a meninada. Como conhecia bastante o comércio de Ipaumirim era lá que eu queria estabelecer-me porém Dona Soledade não concordou, e, para não contrariar-lhe a vontade, tive que ir para Aurora. Foi um verdadeiro fracasso, toda família adoeceu a ponto de morrer a filha mais velha Gesielda e Dona Soledade escapou por milagre, minhas despesas com médicos e farmácia eram grandes, nada fiz no comércio. Neste mesmo ano, estiveram em Aurora uns padres beneditinos vindo de Garanhuns no Estado de Pernambuco que andavam angariando crianças para estudarem por conta da congregação afim de se ordenarem. Com eles, foi o meu filho mais velho, Evandro. Convém notar que na ocasião que viajou eu não me encontrava em casa; Giselda que passou uns tempos estudando, em Aurora, hospedada em casa de Vicente Tavares e havia feito exame de admissão, internei-a no Ginásio das Dorotéias em Cajazeiras, no estado da Paraíba. Desta maneira, os dois primeiros filhos davam os primeiros passos no caminho das letras.
No ano de 1941, resolvi mudar-me para Ipaumirim (antiga Alagoinha) para onde transferi minha casa comercial, ali um raio de luz passou sobre mim e novos horizontes descortinaram-se em minha presença, fazia bastante negócio e, dentro de pouco tempo, tornei-me o maior comerciante de tecidos da localidade. A meninada, em idade escolar, estudava e assim tudo marchava bem.
Como no Ceará existem as secas periódicas, eis que surge uma em 1942 (5), como o comércio de tecido fracassava, resolvi fornecer à Estrada de Rodagem que marchava em direção a Milagres. Para mim, foi um período de grande, grande sacrifício em virtude do meu estado de saúde um tanto abalado; por felicidade, minha irmã, Juventude, veio internar-se no fornecimento e grande serviço prestou-me.Não me recordo bem a data mas parece ter sido em junho que os meus vizinhos de terra do Mané, os Cassianos, desejavam retirar-se para São Paulo e assim, comprei-lhe os terrenos pelo valor de seis mil cruzeiros – Cr$6.000,00. Para conseguir essa importância, fui obrigado a vender sessenta reses. Terminado o 42, dei balanço e verifiquei um lucro satisfatório. Naquele ano, nasceu João Bosco que é o mais moço dos filhos

(Família Macedo, foto sem indicação de data)

Depois de três anos de ausência, Evandro veio passar férias em casa e não quis voltar ao Mosteiro de Garanhuns. Então internei com Juarez, que nasceu em 1930, no Ginásio Salesiano, em Cajazeiras. Naquele tempo, Evandro, que contava 14 anos de idade, havia mudado de vocação, queria ser médico. Ao terminar o ginásio, botei-o para fazer o primeiro ano científico no Colégio Cearense. Grande surpresa foi a minha quando recebi uma carta do rapaz pedindo permissão para cursar a escola preparatória de Cadetes, em Fortaleza. Como sempre respeitei a vocação de todos os filhos, não hesitei em dar permissão, hoje o rapaz coloca sobre os ombros os galões de capitão do Exército Brasileiro.
Juarez estudou o primeiro ano e fez a primeira série, no segundo foi reprovado em História, seria preciso fazer a segunda época porém o garoto não queria mais estudar, insistia para que fizesse a prova de segunda época, depois deixaria o estudo. Como não quisesse, atender o meu apelo, fui forçado a ameaçá-lo caso não fizesse a segunda época. Eu que de História não sabia patavinas, fui bancar o professor do rapaz, pegava um livro de História e um dicionário e ia estudar para depois ensinar. Assim foi durante o período de férias. Finalmente, na época, Juarez que necessitava de uma nota alta para passar, tirou um 9,, foi aprovado, então no ano seguinte voltou a estudar.
Juarez cursava a terceira série ginasial., certa ocasião fui visitá-lo, em Cajazeiras, pedi ao diretor para deixar ele sair comigo a visitar os tios que lá moravam. Quando caminhávamos, ao passar sobre um pontilhão que tem no caminho, ele falou-me: - papai, queria que o senhor consentisse que eu fosse salesiano. Fiquei um tanto surpreso com aquele pedido, não permiti no momento mas vendo que persistia, consenti, hoje é sacerdote servindo no Ginásio Salesiano, em Recife.
Foi, talvez, em 1945, que internei Gesilda no Ginásio das Dorotéias. Giselda que lá estudava tinha saído apenas com o segundo ano normal.
Depois que Gesilda concluiu o ginásio, internei-a no Colégio Imaculada Conceição, em Fortaleza, onde fez o curso científico. No ano seguinte, foi aprovada no vestibular de Odontologia e hoje é cirurgiã dentista com mais o curso de especialização na policlínica do Rio de Janeiro, onde reside.
Seguiu-se o José Filho que estudou no ginásio de Cajazeiras e Patos, o científico no Colégio Castelo, em Fortaleza. Terminando o científico, iria fazer o vestibular para Farmácia, porém o rapaz, naquela época, entregou-se a diversões pouco recomendáveis, desprezou os estudos e foi reprovado. Cerca de três anos passou sem estudar e causando-me certo desgosto, finalmente o Juarez que naquela época ainda estudava Teologia em São Paulo, pediu-me que o mandasse para lá., o que providenciei. Arranjou emprego pra ele no S.E... (???), auxiliou-o no vestibular, hoje é economista residente naquela capital.
Giseldina estudou no ginásio de Cajazeiras e diplomou-se professora em Catolé do Rocha, na Paraíba, foi nomeada professora pública e lecionou em Ipaumirim cerca de oito anos, hoje, é funcionária federal, residente no Rio de Janeiro.
Genilda cursou o ginásio em Cajazeiras e diplomou-se pelo Colégio Santa Isabel, em fortaleza, atualmente morando nos Estados Unidos.
Antonio, o penúltimo filho, fez o ginásio em Cajazeiras e concluiu o científico no Colégio São João, era desejo dele seguir Medicina mas imitou o José, da mesma maneira não passou no vestibular e certas contrariedades causou-me. Porém, como o Juarez é sempre o Cirineu que me ajuda a carregar a cruz, mandei-o para Recife e hoje é funcionário do Banco da Indústria de São Paulo.
João Bosco, não tendo gosto pelos estudos, limitou-se ao diploma de perito contador, exercendo atualmente atividades comerciais.

(Família Macedo, foto sem indicação de data)

(continua no próximo Domingo Memorioso quando concluiremos a publicação do documento)

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