Seu Lunga
A fama de zangado fez de seu Lunga uma celebridade. Mas ele faz questão de negar a autoria das piadas grosseiras atribuídas a ele. Em conversa com O POVO, seu Lunga falou sobre sua devoção a Padre Cícero, distribuiu sorrisos e até recitou poesias
Thiago Cafardo e Cláudio Ribeiro
Thiago Cafardo e Cláudio Ribeiro
A rotina do senhor Joaquim dos Santos Rodrigues, de 81 anos, é comum a tantos outros comerciantes da rua Santa Luzia, no Centro de Juazeiro do Norte. Acorda cedo, por volta das 5 horas, toma café e sai de casa para abrir sua sucata. Lá, vende de “tudo um pouco”. Ventiladores, televisores, pregos, parafusos, borrachas, espelhos e uma infinidade de produtos antigos. Joaquim poderia ser apenas mais um comerciante anônimo da cidade. Poderia, não fosse o imaginário popular, alimentado principalmente pela literatura de cordel. Seu Lunga, como é conhecido desde “menino novo”, já ganhou status de “celebridade” em todo o Estado. Ou melhor, no País. As piadas sobre suas respostas grosseiras permeiam as mesas de bares nas conversas entre amigos ou nos programas de humor. Impossível não achar graça. Menos para o próprio Lunga. A fama de “zangado, ignorante” o incomoda. Chega a ficar com os olhos marejados ao falar sobre as piadas atribuídas a ele. “Nenhuma dessas histórias é verdade. É tudo inventado”, diz. Cada volume do cordel escrito em “homenagem” a seu Lunga tem 157 histórias. E já está na sexta edição. O título: “O homem mais ignorante do mundo”. Os cordelistas são, inclusive, o principal alvo da mágoa de seu Lunga. “Eles ficam falando da minha pessoa, dizendo o que eu não sou”, lamenta. A conversa com os repórteres do O POVO durou pouco mais de 40 minutos. No começo, ao perceber que se tratava de uma equipe de imprensa, seu Lunga relutou. Pensou que os jornalistas quisessem apenas tripudiar sobre sua fama de zangado. “Olhe, eu não tenho o que dizer. Tem um camarada aqui perto que é professor, dentista. Ele dá uma entrevista bem bacana a vocês”, sugeriu. Aos poucos, seu Lunga foi se soltando e transformou a conversa num agradável bate-papo. Falou sobre sua devoção a Padre Cícero, riu, e fez questão de mostrar seu lado poeta. “Minhas poesias são mais sobre mulher”, disse ele, às gargalhadas.
Veja abaixo, na íntegra, como foi o papo com o homem mais popular de Juazeiro do Norte (depois do padim, claro), desde a chegada da equipe do O POVO à sua loja.
O POVO - Boa tarde, seu Lunga. Como vai?
Seu Lunga - Pois não.
OP - Somos do jornal O POVO, de Fortaleza. Podemos conversar com o senhor? São só algumas perguntas...
Seu Lunga - Às vezes, muita gente vem com umas perguntas, umas conversas tão bestas aqui. Que prejudica a gente.
OP - Que tipo de conversa besta o pessoal tem com o senhor?
Seu Lunga - Olha, muita gente chega aqui (no comércio) e diz: “Isso aqui é para vender?”. É pergunta besta. Aí querem que eu dê uma resposta grosseira. Isso faz mal à gente. Você está ocupado e o camarada chega perguntando bobagem...
OP - Mas a nossa intenção não é essa, não...
Seu Lunga - Tem um camarada aqui, que se vocês forem lá ele dá uma entrevista bacana. O nome dele é Geraldo Menezes. Ele é um professor, um dentista...
OP - A nossa intenção é conhecer um pouco mais sobre o senhor, seu Lunga. O senhor é nascido onde, em qual município?
Seu Lunga - Eu nasci aqui mesmo (Juazeiro do Norte).
OP - Qual a idade do senhor?
Seu Lunga - Completei 81 anos. Já estou dentro do 82. Nasci em 1927, no dia 18 de agosto.
OP - O senhor está muito bem...
Seu Lunga - É. Pra quem já tem 81...
OP - O senhor já trabalhou com o que, além de vender (tem uma loja no Centro de Juazeiro que vende de tudo)?
Seu Lunga - Eu nasci aqui, mas passei uns tempos morando no município de Assaré. Fui para lá menino. Tinha 20 anos. Minha origem de eu ter vindo para cá foi uma queda... Lá nós criávamos todo tipo de bicho: porco, carneiro, galinha, cavalo, burro, boi e vaca. Agora, sempre que era no fim das águas (época de seca), a lagoa de lá secava. A gente cavava um buraco para dar água aos bichos. Então eu escapolí da boca do buraco com 23 metros de fundura. Se eu tivesse caído de ponta, assim, tinha quebrado o pescoço. Mas eu caí de chapa (inteiro) no buraco. Porque a cacimba era com madeira, na boca. Aí escorreguei... Quando escorreguei, o corpo deu um balanço assim (mostra com as mãos o movimento do corpo) e caí de chapa.
OP - Aí o senhor veio a Juazeiro para se tratar?
Seu Lunga - Eu vim para me tratar. Vim com meu pai. Depois, eu fiquei e meu pai voltou. Fiquei trabalhando numa oficina de ourives. Passei uns tempos nessa oficina.
OP - Quanto tempo?
Seu Lunga - Eu vim para cá em 1947 já para 48. Passei até 1950 trabalhando de ourives. Olha aqui esse anel (mostra o anel no anelar da mão direita), fui eu que fiz. É de rubi. Aí, comecei a negociar cereais. Meu pai trouxe uma tia minha e uma irmã para ficar comigo. Fiquei numa casa lá no caminho do Horto. Aí entendi de me casar, me casei, e minha irmã voltou para lá com minha tia. E eu fiquei, negociando aqui no mercado. Passei uns anos negociando. Depois comprei um motor aqui na rua São Paulo. Naquele época não tinha energia elétrica. Aí comprei as máquinas com o motor. Eu pilava arroz, torrava café, vendia massa de milho, a palha do milho, do arroz... Em 1960, comprei esses dois prédios aqui (onde funciona sua oficina) e queria continuar, mas na época teve uma lero-lero (burocracia) danado. E eu não quis. Então, botei a oficina lá atrás e um camarada consertando televisão, rádio. Agora, de uns tempos desses para cá as coisas “fracaram” e tô só com essa bagaceira de coisas aqui.
OP - Por que as pessoas gostam de brincar com o senhor sobre sua zanga?
Seu Lunga - Olhe, nós estamos num Brasil sem moral. Num Brasil sem respeito. Num Brasil sem Justiça. Porque tem um senhor aqui que escreve uns folhetozinhos (cordel) falando da minha pessoa. Dizendo o que eu não sou, inventando histórias, inventando isso e aqui outro, dizendo que sou o homem mais ignorante do mundo. Mais zangado do mundo. E fica inventando cada vez mais histórias. E o povo compra esses folhetos.
OP - E o senhor fica chateado com isso? Essa fama incomoda?
Seu Lunga - Claro. Todo mundo fica. Você fica satisfeito com o cabra te chamando de fresco? De ladrão? Maconheiro? Sem vergonha? Então, eu não gosto dessa fama.
OP - O senhor se considera um homem feliz depois de tanto tempo aqui em Juazeiro?
Seu Lunga - A pessoa feliz é da pessoa. Agora, tem gente... Chegou aqui um povo vindo de Minas. O rapaz me perguntou: “Seu Lunga, por que o povo lhe chama de ignorante?”. Eu olhei pra ele e disse: “Rapaz, eu acho que o povo me chama de ignorante porque sei ler, sei escrever, sei as operações de conta. Aí, de minha teoria, eu criei um bocado de poesias...”
OP - O senhor faz poesias?
Seu Lunga - Não, eu não faço. Agora, eu faço um discurso, eu crio um discurso da criatura que morre, que deixa a vida material para a vida espiritual, fazendo uma despedida da vida eterna. OP - Como é isso? Recite umas para a gente, só um trecho.
Seu Lunga - Assim: “Meu amigos, eis aqui o destino / Nós estamos aqui reunidos, assistindo a separação dessa criatura que vai deixando a vida material para a vida espiritual / Nós aqui com o coração cheio de dor, de lembrança e de recordação / Dos dias felizes que nós passamos aqui na terra, junto a esta criatura e hoje ele dá um adeus deixando a recordação a seus irmãos, a seus filhos, a seus amigos, a seus parentes / Nós, aqui tristes, sentindo essa separação, mas lá está Jesus, de braços abertos, esperando a sua chegada com seus familiares / Pai, irmão, tio e mãe estão lá comemorando a sua chegada e nós, aqui, com o coração transportado de tristeza, de separação”. E por aí vai...
OP - Isso o senhor fez?
Seu Lunga - Eu crio. Criei uma poesia... Aliás, minhas poesias são mais sobre mulher (risos).
OP - Diz uma para a gente...
Seu Lunga - Peraí. Vou dizer mais de uma. Diz assim: “A mulher pra ser bonita, precisa ser alta e bela / Tendo um corpo desenhado, morena cor de canela / Mas os rapazes da Ribeira estão tudo loucos por ela”. E então?
OP - Ótima. O senhor tem alguma de Juazeiro, do Cariri?
Seu Lunga - Pera. Outra de mulher: “Se a beleza dessa jovem fosse numa Imperatriz / Se o homem do nosso Estado tivesse a sorte feliz / Tivesse ela como esposa seria o mais rico do País”. Então, é boa? Outra da mulher: “Quem me dera ser um pássaro, para no mundo voar / Eu ia para o oceano, depois podia voltar / Mas ia cair em teus braços somente para consolar”. E aí, boa?
OP - Boa sim. Então, o senhor tem sobre o Juazeiro, sobre o Cariri?
Seu Lunga - Não. Quero dizer, só assim algumas palavras. Tem uma que diz assim: “Terra boa o Cariri, tem mangaba e tem pequi / E ao redor de sete léguas, tem muito ‘fí duma égua’ que nega até um pequi”. (risos).
OP - (risos) O senhor tem outras de Juazeiro?
Seu Lunga - Olha, eu fiz uma poesia de caçador: “O pobre do caçador, com fome, descalço e nu, vai à noite pra caçada / Enquanto o tatu na dormida, pouco demora, dá um pulo e vai simbora por ter desgosto da vida”. É como o velho. Não queira ficar velho porque eu fiz uma poesia com velho.
OP - O senhor fez uma poesia com velho? Mas não é pensando no senhor não, né?
Seu Lunga - Não, mas é a mesma coisa (risos). Tanto faz como tanto fez. “Disse o pobre do velho mais a velha, quando vão se deitar, a colcha toda rompida / E um puxa e o outro puxa / E viver aquela sina dá desgosto na vida”. Agora eu fiz uma poesia que diz assim: “Quem não mora muito longe, morando perto é vizinho / Encostado a esta mata, mata que tem espinho / Cada pau tem o seu galho, cada galho tem um ninho / Não vou morar nessa mata por causa dos passarinhos”. Agora tem outra que diz assim: “Morava bem em Juazeiro / Me transportei daqui e fui morar em Salgueiro / Lá existe uma fazenda que só existe um mateiro / Existe também um boi, que é um grande boi madrugueiro / E eu montado em meu cavalo, cavalo muito ligeiro / E eu vou derribar o boi, cavalo, boi e vaqueiro”. Que tal?
OP - Boa demais. Seu Lunga, o senhor tem poesia sobre o Ceará?
Seu Lunga - Não...
OP - O senhor tem essa fama que lhe chateia, mas estamos desfazendo completamente a imagem que o pessoal fazia do senhor.
Seu Lunga - É... (suspira). Ainda bem.
OP - O senhor conta piada?
Seu Lunga - Não, não gosto de piada. Não gosto de piada e aí, tem muito desses camaradas que fazem os cordéis, que botam muita piada. Aí o cabra num vai gostar. Se você ler o cordel com as histórias, nenhuma é minha. Tem um (livro) aí que tem 157 histórias da minha pessoa. Nenhuma é verdade. Nem pensar em ser verdade.
OP - Tudo inventado?
Seu Lunga - Inventado. E histórias de vagabundo. Olha, eles contam aí que eu fui ao açougue. E cheguei lá e comprei uma cabeça de porco. Quando cheguei em casa a mulher disse: “Pra que é?” E eu disse: “Pra criar”. Escuta, eu nunca comprei cabeça de porco. Outros contam que eu estava arrumando as telhas e quebrei as telhas tudinho. Outro conta que eu vinha com um balde de leite, eu nunca carreguei balde de leite. Aí o cabra perguntou: “Seu Lunga, pra que é?”. E eu: “Pra lavar a calçada, e joguei o leite”. Histórias sem pé nem cabeça.
OP - Seu Lunga, como é o nome do senhor?
Seu Lunga - Meu nome mesmo é Joaquim Santos Rodrigues.
OP - O senhor é pai de quantos filhos?
Seu Lunga - Sou pai de 13 filhos.
OP - Treze? Todos ainda vivos?
Seu Lunga - Morreu um agora. São três homens e 10 mulheres.
OP - Seu filhos também não gostam dessas histórias que inventam do senhor, né?
Seu Lunga - Não, claro que não. Essas histórias que o povo conta... Meus filhos admiram a minha pessoa, gostam de mim. Mas eles não acham bom.
OP - Seu Lunga, o senhor é nascido aqui em Juazeiro, saiu, mas já voltou há mais de 50 anos. O que o senhor mais gosta no Juazeiro.
Seu Lunga - Homi, eu gosto do Juazeiro mais por causa do Padre Cícero.
OP - O senhor é devoto dele também...
Seu Lunga - Sou, do Padre Cícero. Você tem muita história do Padre Cícero aqui. Eu ainda tenho fé que ele vai ser canonizado. Você pensando bem, a história do Padre Cícero que o povo contava tem muita coisa... Eu alcancei ele, mas quando ele morreu eu era muito pequeno. Ele morreu em 1934, eu tinha 6 anos.
OP - O senhor chegou a vê-lo alguma vez?
Seu Lunga - Cheguei, eu vi. Me lembro.
OP - Ele já trazia muita gente para cá mesmo?
Seu Lunga - O Padre Cícero tem muita história. O povo conta histórias dele ainda criança. Ele tinha seis anos, estudava no Crato. Aí, tinha uma escola lá e nesse tempo os meninos andavam de chapéu. Os meninos tinham inveja dele, porque ele era muito inteligente. Os professores gostavam muito dele, das conversas dele. Aí, os outros meninos compraram um outro chapéu e botaram no lugar do chapéu do Padre Cícero. E eles ficaram todos curiosos para saber o que o Padre Cícero ia fazer quando chegasse. Aí quando ele chegou, olhou, e não tinha mais graça de botar o chapéu. Não era o dele. Aí ele pegou o chapéu, colocou na parede e ficou sem...
OP - Era um chapéu igual ao que o senhor está usando?
Seu Lunga - Eu não sei como era o chapéu. Quando Padre Cícero era criança isso foi em 1870, por aí. Então, aí o chapéu ficou pregado na parede. E os meninos saíram dizendo que Padre Cícero era feiticeiro, isso e aquilo outro. Tem muitas histórias dele. Tinha um senhor aqui, o Aureliano (Pereira da Silva). Ele já morreu, mas tem um bocado de filhos vivos. Ele mesmo me contou uma história que se passou com ele. Era garoto e foi a Barbalha, a cavalo. Naquele tempo não havia carro. Aí, lá, por volta de 11 horas ele encontrou Padre Cícero. Ele já tinha resolvido o problema dele e ficou acompanhando o Padre Cícero. E quando o sol se enterrou, Padre Cícero disse: Vamo simbora!”. E o camarada pensou: “Meu Deus, como é que nós vamos de noite, de Barbalha pra casa”. Mas eles foram indo, indo e encontraram uma casa. O padre mandou parar. Quando chegaram no terreno da casa, a mulher gritou lá de dentro: “Padre, eu mandei lá, o rapaz já foi duas vezes lá no Juazeiro e não lhe encontrou. E coisa e tal”. E Padre Cícero respondeu: “o que foi que houve?”. “Fulano morreu”, disse ela. E entraram na casa para ver o morto. Padre Cícero disse: “Morreu não, minha senhora”. Puxou o braço dele, apertou a mão e gritou: “Compadre fulano”. Aí o homem, que não estava morto, respondeu: “Me levante e vamos conversar”. O Padre Cícero ajudou o homem a se levantar e deu a extrema unção a ele. Conversou com ele e disse para a senhora: “Agora traga um vela que ele agora vai morrer, mas ele não tinha morrido ainda”. Aí colocou as mãos nele e o ajudou a morrer. Aureliano ficou abismado porque Padre Cícero tinha sentido, lá na estrada, que o compadre dele tava para morrer. Bem, Aureliano, depois disso, ele se casou. A mulher morreu. Casou-se de novo, a mulher morreu de novo. E ele adoeceu. A mãe dele mandou chamar Padre Cícero. Aí a mãe dele perguntou: “Padre, será que ele vai morrer”. E Padre Cícero respondeu: “Vai nada. Ele vai ficar bom. E olhe: ele ainda vai ser pai de 36 filhos”. Aí a mãe dele: “Mas padre, 36 filhos?”. O que se sabe é que ele ficou bom, casou-se mais quatro vezes e foi pai de 36 filhos.
OP - Como era Juazeiro nessa época?
Seu Lunga - Daqui pra lá não tinha casa. Padre Cícero disse uma vez no sermão: “Juazeiro vai emendar com Crato e Barbalha”. E não é que está emendando mesmo?
OP - Tem razão... Tchau, seu Lunga. Foi um prazer.
Seu Lunga - Até logo. Boa viagem.
(Enviada por Flávio Lúcio)