quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

O alerta da Islândia para o mundo

Operários
(Tarsila do Amaral)

Ralf Hoppe
Da Der Spiegel

Primeiro veio a crise financeira, depois o alvoroço: a Islândia é o primeiro país europeu a sofrer os efeitos plenos da crise financeira global. Isto é uma amostra do que está reservado para o restante do mundo?
Está nevando e em breve escurecerá de novo. A noite começa aqui por volta das 4 horas da tarde, seguida por uma longa, longa noite - uma noite islandesa aqui em Reykjavík, latitude 64 graus norte, bem ao sul do Círculo Polar Ártico. Se os países pudessem exportar escuridão, então a Islândia não teria com que se preocupar.
Kristin Gunnarsdottir estaciona seu pequeno carro diante de sua casa modesta no distrito de Garbabae da cidade, caminha cuidadosamente pelo caminho escorregadio até sua porta da frente e bate suas botas no chão para tirar a neve. Ela está com vontade de tomar café quente e se sentar diante da lareira. Ela acaba de retornar de seu novo e exaustivo passatempo - realizar manifestações "Nós temos que salvar a Islândia", ela diz.
Nos últimos três meses, Kristin Gunnarsdottir passou seus dias no centro de Reykjavík. Armada com uma panela e uma colher, ela e outros manifestantes assumiram posição diante do Parlamento islandês, o Althing, acompanhados por entre poucas centenas ou -como costuma ser o caso- dois mil outros manifestantes. Recentemente, ela diz, a ira das pessoas era tamanha que a multidão esteve prestes a invadir o Althing, arrastar para fora os membros do governo e enforcá-los na imensa árvore de Natal. A árvore não está mais lá.
"Alguns manifestantes a incendiaram", ela diz. "Foi uma fogueira e tanto."
As coisas estão esquentando na Islândia em consequência da crise financeira.
Kristin Gunnarsdottir pega uma garrafa térmica cheia de café, liga a TV e está prestes a se sentar ao lado da lareira quando algo a detém.
Ela fica parada lá, atônita, e aponta para a tela.Ela tem mais de 40 anos, é ruiva e alegre. Ela era jornalista de TV, mas agora é escritora. Desde o início da crise financeira, ela está entre os líderes de uma revolta como a Islândia nunca viu antes, uma revolução vinda de baixo que visa varrer tudo o que existiu antes.
"Incrível", ela diz, apontando para a televisão.
A ministra das Relações Exteriores, Ingibjörg Solrun Gisladottir, está sendo entrevistada. Ela é da Aliança Social Democrática de esquerda, o menor dos dois partidos da coalizão, e parece exausta enquanto olha para a câmera e explica que só continuará apoiando o governo caso uma série de exigências seja atendida. Então aparecem políticos que dizem que as exigências não serão atendidas.
"É isso", diz Kristin, "eu acho que não teremos um governo em breve - é melhor assim".
Poucas horas depois, um governo que antes parecia inabalável entra em colapso. O mais forte dos dois parceiros da coalizão, o conservador Partido da Independência, governou o país por quase 18 anos. Este partido liderou um governo que foi responsável por aproximadamente 315 mil islandeses que estão relacionados de uma forma ou de outra uns aos outros e que são, em sua maioria, um povo bem loiro, bem gentil, educado e agradável. Agora, a crise financeira e os escândalos que ela trouxe à tona jogaram a Islândia em turbulência e caos. Na superfície, a vida continua, mas todos estão abalados até as entranhas por um imenso sentimento de incerteza. De certa forma, a Islândia é uma bola de cristal que revela o futuro do restante da Europa.
A Islândia se tornou uma espécie de laboratório da crise de crédito: um país pequeno, compacto, estreitamente ligado à economia internacional, sem qualquer pára-choque de segurança. É um lugar onde os efeitos de uma crise são sentidos intensamente.
As primeiras ondas de demissões começaram a varrer o país. Todo mundo conhece alguém que já perdeu seu emprego ou que perderá em breve, todo mundo conhece alguém que conhece - e odeia - um banqueiro de investimento. Os bares mais bacanas no centro de Reykjavík estão visivelmente vazios, como o "101" e o "b5", onde os profissionais bem-sucedidos do setor financeiro ainda curtiam festas selvagens durante as noites da metade de verão de 2008. A imagem do país foi seriamente manchada. "Como parecemos agora aos olhos do mundo?" diz Kristin. "Como maníacos financeiros, os jogadores da Europa.
"Onde estão - e, mais importante, quem são - os culpados deste estrago? Ninguém sabe ao certo. Desde o colapso dos três maiores bancos do país ao longo dos últimos três meses, o governo não apresentou respostas e ainda não se deu ao trabalho de lançar uma investigação séria.
Isso espalhou rumores por todo o país. Segundo uma história, os islandeses mais ricos deixaram o país há meses, com suas malas cheias de dinheiro ao embarcarem em um jato particular com destino a Portugal. Supostamente eles retornarão em breve para cobrir seus rastros. A coroa islandesa perdeu um terço de seu valor frente ao euro em um ano e permanece volátil. Ninguém nas lojas sabe qual é atual taxa de câmbio. Um governo interino minoritário de esquerda, liderado pela recém-nomeada primeira-ministra Johanna Sigurdardottir, agora está encarregado do país até que novas eleições possam ser realizadas, e é muito possível que o Movimento Verde-Esquerda, com sua inclinação marxista, desponte como o partido mais forte.
Em nenhuma outra parte do mundo, ao que parece, a crise é tão visível quanto na Islândia, em nenhum outro lugar ela é tão concreta. O pequeno tamanho do país também permite que todo cidadão possa calcular facilmente quanta dívida foi acumulada em seu nome. Antes de serem nacionalizados, os três maiores bancos acumularam dívidas de US$ 166 bilhões, o equivalente a 10 vezes o produto interno bruto da Islândia. Isso representa um adicional de US$ 527 mil para cada homem, mulher e criança. Um encanador ou pescador islandês que tem esposa e dois filhos para alimentar, repentinamente se veria com uma dívida de mais US$ 2 milhões. Como a atual geração poderá pagar essa dívida? Os economistas antecipam inflação de dois dígitos e preveem que a economia encolherá 10%.

'O trabalho de limpeza será um banho de sangue'

Novos nomes estão repentinamente nos lábios de todos, agora elogiados como heróis e salvadores diante do desastre, apesar de terem sido ignorados até recentemente.É um fim de tarde escuro e gelado enquanto Vilhjalmur Bjarnason segue de carro até seu escritório na universidade, em Saemundargata, para trabalhar um pouco mais. Ele está com um ar carrancudo apesar de ser um dos homens mais procurados do país - elogiado, entrevistado, citado em blogs, revistas e programas de televisão.
Vilhjalmur, um ex-banqueiro de 56 anos, trabalha como professor de macroeconomia da universidade, atua como presidente da Associação dos Pequenos Investidores e é um atleta amador dedicado. Ultimamente, ele anda extremamente irritado porque previu tudo o que está acontecendo agora. Ele sempre permaneceu politicamente neutro por acreditar que um economista deve preservar sua independência - apesar disso ter colocado freios em sua carreira. Agora ele está sendo considerado para se tornar o novo presidente do banco central ou conselheiro do ministro das finanças. "Nós colocamos nossa economia nas mãos de criminosos", ele diz, "e o trabalho de limpeza será um banho de sangue".
Ele conhece muito bem alguns dos perpetradores. "Eles foram meus alunos", ele diz. Após concluírem seus estudos, eles correram para o setor bancário, "e foi quando as coisas saíram do controle e saímos de um caminho sólido".
Por séculos, os islandeses viveram na pobreza e em dificuldades: casas de fardo de palha, miséria e epidemias eram fatos da vida. Então, diz Vilhjalmur, eles aprenderam a explorar seu ambiente natural singular, represando cachoeiras para gerar energia e usando a água quente dos gêiseres como fonte de calor. Segundo Vilhjalmur, as coisas poderiam ter continuado dessa forma -mas a Islândia foi infectada pela ganância.
Kristin Gunnarsdottir e muitos de seus companheiros de luta veem a decisão de lançar um dos maiores projetos hidrelétricos como o principal fator que promoveu a orgia de tomada de empréstimo. Ela diz que o início da construção da usina de força de Karahnjukar, que promoveria a produção de alumínio, foi espertamente divulgada ao redor do mundo. "De repente a Islândia era a dica quente para os investidores e estava recebendo altas classificações de crédito."
A coroa islandesa valorizou 20% e, apesar do banco central ter elevado as taxas de juros para esfriar o mercado, um crescente número e empresas e cidadãos islandeses prontamente tomaram empréstimos em moedas estrangeiras, em ienes, dólares e o que quer que os bancos pudessem arrumar para eles. Esses empréstimos eram relativamente baratos desde que o valor de sua própria moeda continuasse subindo. Pouco antes do crash, o banco central contava com reservas de apenas US$ 5,1 bilhões e era incapaz de exercer seu papel de supervisor dos bancos do país. O capital fluía para o país porque a Islândia parecia incrivelmente segura.
"Foi quando as holdings podiam ser encontradas em toda parte", diz Vilhjalmur. "E holdings são campos minados.
"Foi muito fácil, ele diz. Alguns poucos empresários ambiciosos se uniram a banqueiros e jovens recém-formados em administração e negócios para combinar seu dinheiro e contatos. Eles levantariam, digamos, 10 mil euros e era criada uma holding. Então eles iam até um dos três grandes bancos, que eram ex-bancos estatais que foram privatizados. Os magos financeiros eram amigos dos proprietários dos bancos, mas os bancos ainda eram considerados sólidos. Com um capital de 10 mil euros, eram tomados empréstimos 100 vezes maiores que esse valor, em outras palavras, teoricamente 1 milhão de euros. Depois, 990 mil euros eram pagos a eles e eles compravam ações desses mesmos bancos islandeses, que por sua vez também tomavam empréstimos e compravam ações de empresas e redes de varejo. "Foi quando a realidade entrou em ação", diz Vilhjalmur. "Antes disso tudo era virtual.
"Tudo o que os fundadores das holdings tinham que fazer era esperar, talvez um ano, até o preço de suas ações subirem, já que o modelo de negócios islandês era visto como uma dica quente. "Repentinamente suas ações valiam 1,5 milhão de euros, menos os juros de, digamos, 100 mil euros, o que os deixava com 400 mil euros em lucros", explica Vilhjalmur.
Vilhjalmur diz que esse frenesi de tomada de empréstimo tomou conta de pessoas de todas as classes da sociedade islandesa. Mas foram as pessoas comuns que ficaram com as dívidas, enquanto os magnatas mantiveram seus novos iates.
E quem são esses magnatas?
"Eu tenho uma lista de nomes aqui", diz Vilhjalmur, digitando em seu laptop. "Trinta homens e três mulheres. Eles foram os principais culpados. Eu posso provar. Nós poderíamos recuperar bastante dinheiro. Eles precisam ser levados a julgamento."
Isso acontecerá?
"Eu não sou um policial", ele diz com um olhar irritado em seu rosto. "E também não sou um otimista."
No microcosmo que é a Islândia, as dificuldades financeiras provavelmente podem ser rastreadas mais precisamente do que em qualquer outro lugar: como cresceu a ganância, quão facilmente meios de vida podem ser destruídos, como a revolta popular pode irromper - e quem é responsável, quem sofre com o fardo da crise e como uma sociedade pode encontrar lentamente seu caminho para uma nova fundação moral.
Kristin, a escritora, está sentada diante da lareira. "Nós acreditamos nos blefistas, nós depositamos confiança demais nas pessoas", ela diz, balançando seus cabelos ruivos. "Agora nós temos que desenvolver uma cultura de desconfiança saudável."

Tradução: George El Khouri Andolfato
Fonte:
http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/derspiegel/2009/02/03/ult2682u1071.jhtm