No imaginário democrático, o Poder
Judiciário ocupa posição de destaque. Diante dos conflitos
intersubjetivos, de uma cultura narcísica e individualista que cria
obstáculos ao diálogo, de sujeitos que se demitem de sua posição de
sujeito (que se submetem sem resistência ao sistema que o comanda e não
se autorizam a pensar e solucionar seus problemas[1]), da inércia do
Executivo em assegurar o respeito aos direitos individuais, coletivos e
difusos, o Poder Judiciário apresenta-se como o ente estatal capaz de
atender às promessas descumpridas tanto pelo demais agentes estatais
quanto por particulares e de exercer a função de guardião da democracia e
dos direitos.[2]
A esperança depositada, porém, cede
rapidamente diante do indisfarçável fracasso do Sistema de Justiça[3] em
satisfazer os interesses daqueles que recorrem a ele. Torna-se gritante
a separação entre as expectativas geradas e os efeitos da atuação do
Poder Judiciário no ambiente democrático. Não raro, para dar respostas
(ainda que meramente formais) às crescentes demandas, o Poder Judiciário
recorre a uma concepção política pragmática que faz com que ora se
utilize de expedientes técnicos para descontextualizar conflitos e
sonegar direitos, ora recorra ao patrimônio[4] gestado nos períodos
autoritários da história do Brasil para manutenção da ordem.
Não obstante, na media em que cresce a
atuação do Poder Judiciário (ainda que essa atuação não atenda às
expectativas geradas), diminui a ação política, naquilo que se
convencionou chamar de ativismo judicial[5]. Esse quadro está a indicar
um aumento da influência dos juízes e tribunais nos rumos da vida
brasileira, fenômeno correlato à crise de legitimidade de todas as
agências estatais e ao crescimento do sentimento de desconfiança em
relação à Justiça.
Em outras palavras: hoje, percebe-se claramente que o Sistema de Justiça tornou-se um locus
privilegiado da luta política, o que torna a escolha dos Ministros dos
tribunais superiores (ou seja, dos tribunais com competência em todo
território nacional e que produzem as decisões que servem de
diretrizes/modelos para todos os órgãos do Poder Judiciário) um ponto
sensível (embora, constantemente negligenciado) no processo de
construção da democracia brasileira (democracia aqui entendida em seu
sentido material, como efetiva participação popular na produção das
decisões fundamentais à República somada ao respeito incondicional aos
direitos fundamentais).
Por
evidente, não se pode pensar a atuação do Poder Judiciário desassociada
da tradição em que os magistrados[6] estão inseridos. Adere-se,
portanto, à hipótese de que há uma relação histórica, teórica e
ideológica entre o processo de formação da sociedade brasileira (e do
próprio Poder Judiciário) e as práticas observadas na Justiça
brasileira[7]. Em apertada síntese, pode-se apontar que em razão de uma
tradição autoritária, marcada pelo colonialismo e a escravidão, na qual o
saber jurídico e os cargos no Poder Judiciário eram utilizados para que
os rebentos da classe dominante (aristocracia) pudessem se impor
perante a sociedade[8], sem que existisse qualquer forma de controle
democrático dessa casta, gerou-se um Poder Judiciário marcado por uma
ideologia patriarcal e patrimonialista (poder-se-ia dizer até
aristocrática), constituída de um conjunto de valores que se caracteriza
por definir lugares sociais e de poder, nos quais a exclusão do outro
(não só no que toca às relações homem-mulher ou étnicas) e a confusão
entre o público e o privado somam-se ao gosto pela ordem, ao apego às
formas e ao conservadorismo.[9]
De igual sorte, não se pode desconsiderar que o Poder Judiciário tornou-se uma máquina de burocratizar.[10] Esse
processo, que se inicia na seleção e treinamento dos magistrados, pode
ser explicado: em parte, porque assim os juízes dispensam a tarefa de
pensar (há nesses juízes um pouco de Eichmann) e, ao mesmo tempo, ao não
contrariar o sistema (ainda que arcaico), evitam a colisão com a
opinião daqueles que podem definir sua ascensão e promoção na carreira
(“comodismo crônico”);[11] em parte, porque há uma normalização
produzida pelo senso comum e internalizada pelo juiz (“neurose
conservadora”),[12] através da qual esse ator jurídico passa a acreditar
no papel de autoridade diferenciada, capaz de julgar despido de
ideologias e valores. Assume, enfim, a postura que o processo de
produção de subjetividades lhe outorgou, o que acaba por condicioná-lo a
adotar posturas conservadoras no exercício de suas funções com o
intuito de preservar a tradição.
Para além dessa tendência à conservação
da tradição que acompanha o Poder Judiciário desde sua origem, há
também o caráter ideológico do direito burguês, a serviço do
velamento da facticidade, em especial das contradições existentes na
sociedade. Conforme a crítica marxista ajuda a compreender[13], os
textos legais, com suas abstrações generalizantes, são capazes de
produzir uma alienação mundana que favorece a manutenção do status quo.
Assim, se o texto legal, potencialmente conservador, é um evento que
não pode ser ignorado pelo juiz, intérprete privilegiado que irá criar a
norma para o caso concreto[14], reforça-se, ainda mais, o caráter
conservador da atuação do Poder Judiciário.
A burocratização, marcada por decisões
conservadoras em um contexto de desigualdade e insatisfação, e o
distanciamento da população fazem com que o Judiciário seja visto como
uma agência seletiva a serviço daqueles capazes de deter poder e
riqueza. Se por um lado, pessoas dotadas de sensibilidade democrática
são incapazes de identificar no Poder Judiciário um instrumento de
construção da democracia; por outro, pessoas que acreditam em posturas
fascistas (na crença da força em detrimento do conhecimento, na negação
da diferença, etc.) aplaudem juízes que atuam a partir de uma
epistemologia autoritária.
Não
causa surpresa, portanto, que considerável parcela dos meios de
comunicação de massa, a mesma que propaga discursos de ódio e
ressentimento, procure construir a representação do “bom juiz” a partir
dos seus preconceitos e de sua visão descomprometida com a democracia.
Não se pode esquecer que “o sistema midiático tem a capacidade de fixar
sentidos e ideologias, o que interfere na formação da opinião pública e
na construção do imaginário social” (Dênis de Moraes). Assim, o “bom
juiz”, construído/vendido por essas empresas de comunicação e percebido
por parcela da população como herói, passa a ser aquele que considera os
direitos fundamentais como óbices à eficiência do Estado (ou do
mercado). Para muitos, alguns por ignorância das regras do jogo
democrático, outros por compromisso com posturas autoritárias, o “bom
juiz” é justamente aquele que, ao afastar direitos fundamentais, nega a
concepção material de democracia.
Note-se que o distanciamento em relação
à população gerou em setores do Poder Judiciário, mesmo entre aqueles
que acreditam na democracia, uma reação que se caracteriza pela
tentativa de produzir decisões judiciais que atendam à opinião pública
(ou, ao menos, aos anseios externados através dos meios de comunicação
de massa). Tem-se o populista judicial, isto é, o desejo de agradar ao
maior número de pessoas possível através de decisões judiciais, como
forma de democratizar a Justiça aos olhos da população, mesmo que para
tanto seja necessário afastar direitos e garantias previstos no
ordenamento.[15] Assim, não raro, juízes de todo o Brasil passaram a
priorizar a hipótese que interessa à mídia ou ao espetáculo em
detrimento dos fatos que podem ser reconstruídos através do processo
(nesse particular, a Ação Penal 470 é um exemplo paradigmático).
Na democracia, porém, os direitos
fundamentais de todos (culpados ou inocentes, desejáveis ou odiáveis)
devem ser respeitados. A atuação dos magistrados não pode ser pautada
pelo desejo das maiorias, sob pena de inviabilizar o direito das
minorias. O Poder Judiciário atua como garante contra a opressão,
inclusive contra abusos promovidos pela maioria, e é, portanto,
contramajoritário. Mais do que isso: para assegurar o direito de um, o
Poder Judiciário pode (e deve) julgar em sentido contrário à vontade de
todos os demais[16]. Dito de outra forma: os direitos fundamentais
funcionam como trunfos contra as maiorias de ocasião e cabe ao Poder
Judiciário assegurar não só esses direitos como também a própria
democracia em sentido substancial. [17]
Em suma, a tradição em que os atores
jurídicos estão inseridos, as práticas autoritárias e conservadoras, e a
burocratização são fatores que fazem com que o Poder Judiciário não
conte com a confiança da sociedade brasileira. Percebido como uma
agência estatal seletiva, voltada somente aos interesses da elite,
incapaz de concretizar os direitos da grande maioria da população, o
Judiciário passa por séria crise de legitimidade. Crise agravada pelo
fato de que as tentativas de satisfazer a opinião pública, com a adoção
de medidas judiciais que contam com o apoio dos meios de comunicação de
massa, tem resultado em violações aos direitos fundamentais, que deixam
de funcionar como limites à opressão do Estado e das maiorias, colocando
em risco a própria democracia.
Diante desse quadro, para evitar
frustrações, é importante reconhecer que o Poder Judiciário é incapaz de
substituir a luta política. Os membros desse poder, na condição de
agentes políticos, devem aderir e incentivar essa luta. Para tanto,
precisam se interpretar, compreender o contexto em que atuam, seus
preconceitos e suas limitações, como forma de romper com a tradição em
que estão inseridos e reconquistar a legitimidade perdida (quiçá
construir uma legitimidade que nunca existiu). Impõe-se, pois, trabalhar
pelo resgate da política como meio de satisfação das potencialidades
humanas e, ao mesmo tempo, atuar sempre voltados à concretização do
projeto constitucional. Isso, por sua vez, significa assumir a função do
Poder Judiciário no jogo democrático, de assegurar o respeito aos
direitos fundamentais e acomodar os conflitos, e zelar pela divisão das
responsabilidades nesse processo de construção da democracia brasileira.
Rubens R R Casara
é doutor em direito, mestre em ciências penais, professor
universitário, membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e do
Corpo Freudiano. Escreve a coluna Contracorrentes com Giane Alvares, Marcelo Semer, Marcio Sotelo Felippe e Patrick Mariano.
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