por Pedro Correia, em 24.12.14
Fotograma da curta-metragem Missa do Galo, de Nelson Pereira dos Santos (1982)
O talento de um escritor pode medir-se,
entre outros atributos, na forma como utiliza as palavras para sugerir
sem dizer. É o equivalente, em literatura, ao célebre Lubitsch's touch
-- o traço distintivo do realizador austríaco Ernst Lubitsch
(1892-1947), capaz de transformar as entrelinhas de um enredo
cinematográfico numa sofisticada forma de expressão artística.
Muito antes de o cinema atingir a projecção universal alcançada no último século, já o maior dos escritores brasileiros, Joaquim Maria Machado de Assis
(1839-1908), era um exímio cultor da elipse como figura literária.
Sabendo, como sabia, que certos vocábulos ou certos conceitos ganham com
frequência mais força quando surgem apenas implícitos.
Talvez em nenhum dos seus escritos tal característica seja tão vincada como num singelo conto natalício sem Natal denominado Missa do Galo -- obra-prima da sugestão e da concisão, publicada pela primeira vez no jornal A Semana, em 1893, e seis anos depois incluída no livro Páginas Recolhidas.
Aqui não há luzes nem presépio: na noite
mais pura do imaginário católico, há indícios de pecado que não
ultrapassam o patamar da ilusão.
Eis-nos transportados para o interior de
uma casa burguesa do Rio de Janeiro em meados do século XIX, já de
noite, como um teatro de sombras em unidade de espaço, tempo e ação.
Estamos perante um insólito triângulo do
qual um dos vértices prima pela ausência: o dono da casa, viúvo de uma
prima do estudante de 17 anos que ali se hospeda durante algum tempo. O
homem, um tal Francisco Meneses, é escrivão e casou em segundas núpcias:
à sua recatada esposa, Conceição, não falta quem chame santa pela
virtude que evidencia e por tolerar num resignado silêncio as traições
do marido, que passa uma noite por semana longe do domicílio conjugal
alegando ir ao teatro.
![machado_de_assis[1].jpg machado_de_assis[1].jpg](http://9.fotos.web.sapo.io/i/B5c14f31e/17862799_G2ma0.jpeg)
Nogueira,
provinciano de visita ao Rio, aguarda sem sono por um vizinho que o
acompanhará à Missa do Galo frequentada pela corte do imperador Pedro
II. Enquanto espera, lê um velho exemplar d' Os Três Mosqueteiros.
Em obediência a
horários ancestrais, as demais ocupantes dormem na casa do escrivão
ausente: esposa, sogra, duas escravas. Dormirão todas? Nem por isso: eis
que Conceição irrompe na sala em silêncio. Vestindo «um roupão branco, mal apanhado na cintura».
Parecia o
início de um vulgar relato de adultério. Mas tal como o Natal está
ausente desta promessa de conto natalício também o sexo não comparece
nesta promessa de traição não consumada.
Conceição
aproveita o suposto serão de insónia para a primeira conversa longa com o
jovem estudante -- conversa que seria também a última. Faz-lhe
constantes perguntas de conteúdo aparentemente banal. Cada resposta
provoca nova cascata de questões.
A dado momento ela diz: «Estou ficando velha.» Resposta pronta do jovem hóspede: «Que velha o quê, D. Conceição?» Palavras que a mulher, de 30 anos, acolhe com um sorriso enigmático.
«Há
impressões dessa noite que me aparecem truncadas ou confusas.
Contradigo-me, atrapalho-me. Uma das que ainda tenho frescas é que, em
certa ocasião, ela, que era apenas simpática, ficou linda, ficou
lindíssima. Estava de pé, de braços cruzados; eu, em respeito a ela,
quis levantar-me; não consentiu, pôs uma das mãos no meu ombro, e
obrigou-me a estar sentado. Cuidei que ia dizer alguma coisa; mas
estremeceu, como se tivesse um arrepio de frio, voltou as costas e foi
sentar-se na cadeira, onde me achara lendo.» (Excertos extraídos da edição portuguesa, chancela Alma Azul, 2005).
![machado-de-assis[1].jpg machado-de-assis[1].jpg](http://9.fotos.web.sapo.io/i/B7e1310df/17862804_R2Tr2.jpeg)
«Durante a missa, a figura de Conceição interpôs-se, mais de uma vez, entre mim e o padre; fique isto à conta dos meus 17 anos»,
relata o narrador. Na manhã seguinte, já com o marido em casa,
Conceição voltou ao discretíssimo comportamento anterior. O jovem
regressou à província. O escrivão morreu em Março, de apoplexia, e ela
não tardou a casar com outro homem. Nogueira nunca mais a viu.
Terá o
estudante mistificado os propósitos da dona da casa, confundindo-a com
uma heroína romântica dos seus livros de capa e espada? Ter-se-á
imaginado um D' Artagnan galante transposto para aquele velado aposento
do Rio oitocentista? Terá o diálogo com a enigmática Conceição sido
apenas fruto de um sono povoado de sonhos ditados pela voz do desejo
naquela insólita vigília de Natal?
Jamais
saberemos. Nem isso em boa verdade importa neste jogo de aparências
transfiguradas pelos labirintos da memória. Porque é dessa realidade
paralela, indiferente ao rigor dos fatos, que irrompe por vezes o
melhor da vida. Em forma de literatura.
Fonte: http://delitodeopiniao.blogs.sapo.pt/
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