quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Missa do Galo (Machado de Assis)


por Pedro Correia, em 24.12.14
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Fotograma da curta-metragem Missa do Galo, de Nelson Pereira dos Santos (1982) 

O talento de um escritor pode medir-se, entre outros atributos, na forma como utiliza as palavras para sugerir sem dizer. É o equivalente, em literatura, ao célebre Lubitsch's touch -- o traço distintivo do realizador austríaco Ernst Lubitsch (1892-1947), capaz de transformar as entrelinhas de um enredo cinematográfico numa sofisticada forma de expressão artística.
Muito antes de o cinema atingir a projecção universal alcançada no último século, já o maior dos escritores brasileiros, Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), era um exímio cultor da elipse como figura literária. Sabendo, como sabia, que certos vocábulos ou certos conceitos ganham com frequência mais força quando surgem apenas implícitos.
Talvez em nenhum dos seus escritos tal característica seja tão vincada como num singelo conto natalício sem Natal denominado Missa do Galo -- obra-prima da sugestão e da concisão, publicada pela primeira vez no jornal A Semana, em 1893, e seis anos depois incluída no livro Páginas Recolhidas.
Aqui não há luzes nem presépio: na noite mais pura do imaginário católico, há indícios de pecado que não ultrapassam o patamar da ilusão.
Eis-nos transportados para o interior de uma casa burguesa do Rio de Janeiro em meados do século XIX, já de noite, como um teatro de sombras em unidade de espaço, tempo e ação.
Estamos perante um insólito triângulo do qual um dos vértices prima pela ausência: o dono da casa, viúvo de uma prima do estudante de 17 anos que ali se hospeda durante algum tempo. O homem, um tal Francisco Meneses, é escrivão e casou em segundas núpcias: à sua recatada esposa, Conceição, não falta quem chame santa pela virtude que evidencia e por tolerar num resignado silêncio as traições do marido, que passa uma noite por semana longe do domicílio conjugal alegando ir ao teatro.
 
 

machado_de_assis[1].jpgUm leitor mais atento talvez desconfie da exatidão desta história desvendada com excessiva minúcia de pormenores pelo narrador Nogueira, muitos anos depois do sucedido, quando se esperaria que o episódio já se tivesse diluído no fatal nevoeiro das evocações com prazo de validade.
Nogueira, provinciano de visita ao Rio, aguarda sem sono por um vizinho que o acompanhará à Missa do Galo frequentada pela corte do imperador Pedro II. Enquanto espera, lê um velho exemplar d' Os Três Mosqueteiros.
Em obediência a horários ancestrais, as demais ocupantes dormem na casa do escrivão ausente: esposa, sogra, duas escravas. Dormirão todas? Nem por isso: eis que Conceição irrompe na sala em silêncio. Vestindo «um roupão branco, mal apanhado na cintura».

Parecia o início de um vulgar relato de adultério. Mas tal como o Natal está ausente desta promessa de conto natalício também o sexo não comparece nesta promessa de traição não consumada.
Conceição aproveita o suposto serão de insónia para a primeira conversa longa com o jovem estudante -- conversa que seria também a última. Faz-lhe constantes perguntas de conteúdo aparentemente banal. Cada resposta provoca nova cascata de questões.
A dado momento ela diz: «Estou ficando velha.» Resposta pronta do jovem hóspede: «Que velha o quê, D. Conceição?» Palavras que a mulher, de 30 anos, acolhe com um sorriso enigmático.
«Há impressões dessa noite que me aparecem truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalho-me. Uma das que ainda tenho frescas é que, em certa ocasião, ela, que era apenas simpática, ficou linda, ficou lindíssima. Estava de pé, de braços cruzados; eu, em respeito a ela, quis levantar-me; não consentiu, pôs uma das mãos no meu ombro, e obrigou-me a estar sentado. Cuidei que ia dizer alguma coisa; mas estremeceu, como se tivesse um arrepio de frio, voltou as costas e foi sentar-se na cadeira, onde me achara lendo.» (Excertos extraídos da edição portuguesa, chancela Alma Azul, 2005).

machado-de-assis[1].jpgQuebrada a unidade dramática, consistente ao longo de nove páginas, o conto chega subitamente ao fim. Machado de Assis apressa o epílogo, como se o que fosse relevante já estivesse dito -- sem dizer. Nas 15 derradeiras linhas ficamos a saber um pouco de tudo o resto, afinal quase nada.
«Durante a missa, a figura de Conceição interpôs-se, mais de uma vez, entre mim e o padre; fique isto à conta dos meus 17 anos», relata o narrador. Na manhã seguinte, já com o marido em casa, Conceição voltou ao discretíssimo comportamento anterior. O jovem regressou à província. O escrivão morreu em Março, de apoplexia, e ela não tardou a casar com outro homem. Nogueira nunca mais a viu.

Terá o estudante mistificado os propósitos da dona da casa, confundindo-a com uma heroína romântica dos seus livros de capa e espada? Ter-se-á imaginado um D' Artagnan galante transposto para aquele velado aposento do Rio oitocentista? Terá o diálogo com a enigmática Conceição sido apenas fruto de um sono povoado de sonhos ditados pela voz do desejo naquela insólita vigília de Natal?
Jamais saberemos. Nem isso em boa verdade importa neste jogo de aparências transfiguradas pelos labirintos da memória. Porque é dessa realidade paralela, indiferente ao rigor dos fatos, que irrompe por vezes o melhor da vida. Em forma de literatura.
Fonte: http://delitodeopiniao.blogs.sapo.pt/

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