Navio que Partes
(Fernando Pessoa/Alberto Caieiro)
Navio que partes para longe,
Por que é que, ao contrário dos outros,
Não fico, depois de desapareceres, com saudades de ti?
Porque quando te não vejo, deixaste de existir.
E se se tem saudades do que não existe,
Sinto-a em relação a cousa nenhuma;
Não é do navio, é de nós, que sentimos saudade.
XXXXXX
NÃO
(Fernando Pessoa/Álvaro de Campos)
Não, não é cansaço...
É uma quantidade de desilusão
Que se me entranha na espécie de pensar,
E um domingo às avessas
Do sentimento,
Um feriado passado no abismo...
°°°
Não, cansaço não é...
É eu estar existindo
E também o mundo,
Com tudo aquilo que contém,
Como tudo aquilo que nele se desdobra
E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais.
°°°
Não. Cansaço por quê?
É uma sensação abstrata
Da vida concreta —
Qualquer coisa como um grito
Por dar,
Qualquer coisa como uma angústia
Por sofrer,
Ou por sofrer completamente,
Ou por sofrer como...
Sim, ou por sofrer como...
Isso mesmo, como...
°°°
Como quê?...
Se soubesse, não haveria em mim este falso cansaço.
°°°
(Ai, cegos que cantam na rua,
Que formidável realejo
Que é a guitarra de um, e a viola do outro, e a voz dela!)
°°°
Porque oiço, vejo.
Confesso: é cansaço!...
XXXXX
Não Queiras
(Fernando Pessoa/ Ricardo Reis)
Não queiras, Lídia, edificar no spaço
Que figuras futuro, ou prometer-te
Amanhã. Cumpre-te hoje, não 'sperando.
Tu mesma és tua vida.
Não te destines, que não és futura.
Quem sabe se, entre a taça que esvazias,
E ela de novo enchida, não te a sorte
Interpõe o abismo?
XXXXXX
Entre o sono e sonho
(Fernando Pessoa)
Entre mim e o que em mim
É o quem eu me suponho
Corre um rio sem fim.
°°°
Passou por outras margens,
Diversas mais além,
Naquelas várias viagens
Que todo o rio tem.
°°°
Chegou onde hoje habito
A casa que hoje sou.
Passa, se eu me medito;
Se desperto, passou.
°°°
E quem me sinto e morre
No que me liga a mim
Dorme onde o rio corre —
Esse rio sem fim.
Nenhum comentário:
Postar um comentário