terça-feira, 16 de outubro de 2012

Mudança da base curricular para o ensino médio proposta pelo MEC - Algumas considerações


Artigo de Aline Bernardes (Unirio), Leticia Rangel (CAp - UFRJ) e Marilis Venceslau (Colégio Pedro II). Artigo enviado ao JC Email pelas autoras.

O Jornal da Ciência, em notícia divulgada em 17 de agosto de 2012 (http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=83756), alerta para a proposta do MEC de uma mudança curricular para o Ensino Médio e para a relação dessa mudança com a organização por áreas como estabelecido no Enem.
De fato, uma modernização da base curricular para o ensino médio é urgente e certamente um tema bastante polêmico. O assunto abrange muitos aspectos e as variáveis envolvidas não são poucas. Qualquer discussão sobre o ensino médio precisa, inicialmente, ter em consideração a finalidade desse segmento escolar e o seu propósito. De acordo com a RESOLUÇÃO Nº 4, DE 13 DE JULHO DE 2010, do Conselho Nacional de Educação (CNE), que define Diretrizes Curriculares Gerais para a Educação Básica [i]:
O Ensino Médio, etapa final do processo formativo da Educação Básica, é orientado por princípios e finalidades que preveem: a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no Ensino Fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos; a preparação básica para a cidadania e o trabalho, tomado este como princípio educativo, para continuar aprendendo, de modo a ser capaz de enfrentar novas condições de ocupação e aperfeiçoamento posteriores; o desenvolvimento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e estética, o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico; a compreensão dos fundamentos científicos e tecnológicos presentes na sociedade contemporânea, relacionando a teoria com a prática (Art.26, Incisos I a IV).
Assim, espera-se que ao final do ensino médio o educando, a partir do conhecimento e competências adquiridas, atue com um sujeito produtor de conhecimento e participante do mundo do trabalho, bem como tenha a capacidade de exercer os seus direitos e deveres como cidadãos.
O portal "Todos pela Educação" (www.todospelaeducacao.org.br), em reportagem de 14 de agosto de 2012, anuncia que o Ideb do ensino médio de 2012 registra uma estagnação em relação aos anos anteriores, não apontando o crescimento almejado e absolutamente necessário. Esse resultado indica que a formação de nível médio no Brasil está longe de alcançar os objetivos pretendidos, o que determina a preocupação e confirma a necessidade de discussão sobre o tema. Neste momento, o Ministério da Educação (MEC) planeja uma modernização do currículo do ensino médio, propondo a integração das diversas disciplinas em grandes áreas. De acordo com a RESOLUÇÃO Nº 2 DE 30 DE JANEIRO 2012 do Conselho Nacional de Educação (CNE), que determina Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio:
Art. 8º - O currículo é organizado em áreas de conhecimento, a saber: I - Linguagens; II - Matemática; III - Ciências da Natureza; IV - Ciências Humanas.
§ 1º O currículo deve contemplar as quatro áreas do conhecimento, com tratamento metodológico que evidencie a contextualização e a interdisciplinaridade ou outras formas de interação e articulação entre diferentes campos de saberes específicos.
§ 2º A organização por áreas de conhecimento não dilui nem exclui componentes curriculares com especificidades e saberes próprios construídos e sistematizados, mas implica no fortalecimento das relações entre eles e a sua contextualização para apreensão e intervenção na realidade, requerendo planejamento e execução conjugados e cooperativos dos seus professores.
Entendemos que é natural que qualquer discussão sobre o ensino médio esteja atrelada à realidade do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), cuja organização se dá a partir da identificação das mesmas quatro áreas propostas nas diretrizes elaboradas pelo CNE. No entanto, refletir sobre a base curricular do ensino médio a partir dessas grandes áreas implica em uma mudança significativa no modelo preponderantemente vigente nas redes públicas e privada desse segmento de ensino no nosso país. É importante observar que um modelo de organização curricular com essa característica determina obrigatoriamente alterações na grade curricular como também no material didático e, de forma inexorável, na formação do professor. Em relação aos conteúdos, uma referência natural se estabelece a partir da matriz curricular do Enem, a qual não está isenta de uma criteriosa avaliação. É certo que o conhecimento sobre algum tópico específico de um determinado assunto não deve ser determinante para a avaliação da formação de um estudante do ensino médio, no entanto, orientações claras sobre os assuntos a serem abordados e sobre a abordagem adequada para esses assuntos devem contemplar a reflexão sobre o tema.
É importante ressaltar que a discussão sobre a reforma curricular na grade do ensino médio com a orientação de organizar as disciplinas em áreas não é nova. Os Parâmetros Curriculares Nacionais - PCNs (2002) indicam a reforma curricular do ensino médio a partir da identificação de três áreas para o agrupamento dos conteúdos curriculares - (i) Linguagens, Códigos e suas Tecnologias; (ii) Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias; e (iii) Ciências Humanas e suas Tecnologias - tendo como base a reunião daqueles conhecimentos que compartilham objetos de estudo e, portanto, mais facilmente se comunicam, criando condições para que a prática escolar se desenvolva em uma perspectiva de interdisciplinaridade:
Ressalve-se que uma base curricular nacional organizada por áreas de conhecimento não implica a desconsideração ou o esvaziamento dos conteúdos, mas a seleção e integração dos que são válidos para o desenvolvimento pessoal e para o incremento da participação social. Essa concepção curricular não elimina o ensino de conteúdos específicos, mas considera que os mesmos devem fazer parte de um processo global com várias dimensões articuladas. (Grifo nosso, p. 32.)
Diante do exposto, seguem algumas reflexões que apontam para preocupações relativas ao sucesso de uma proposta de mudança.
A base da discussão e o papel do professor
Uma proposta dessa envergadura precisa ser amplamente discutida em fóruns que contemplem os diversos atores envolvidos. A base da discussão deve necessariamente congregar professores do ensino básico, professores universitários e autoridades de educação em geral.
Sabemos da necessidade de incentivar e de expandir o interesse pelos temas científicos, o que se dá de forma preponderante no ensino médio. Nesse sentido, é fundamental o envolvimento das autoridades científicas nessa discussão. Mais especificamente, destacamos a importância de se contemplar uma carga horária didática destinada às disciplinas que visem à formação básica necessária para os cursos de nível superior nas áreas ditas exatas e tecnológicas. No entanto, colocar em prática a integração das diferentes disciplinas visando a promover o trabalho interdisciplinar é uma proposta que pode ser tomada simplesmente como uma forma de "economizar" professores, por conta da carência de profissionais. Neste caso, professores de física e de química, por exemplo, poderiam ser substituídos por um professor mais "generalista" na área de Ciências e suas Tecnologias. A Sociedade Brasileira de Física - SBF emitiu uma nota sinalizando sua preocupação em relação a este tema (http://www.sbfisica.org.br/v1/index.php?option=com_content&view=article&id=421:reforma-do-ensino-medio-nao-pode-sucatear-ciencia&catid=108:agosto-2012&Itemid=270):
Existe hoje, de fato, uma enorme carência de profissionais formados em áreas técnicas. Como resultado do avanço da economia do País e da necessidade de uma maior competitividade em sua inserção no mercado internacional, essa carência deverá se tornar ainda mais grave nos próximos anos. Para supri-la, defendemos o aumento da carga horária de disciplinas como matemática, física, química e biologia para aqueles alunos que pretendam seguir carreiras técnicas ou de nível superior nessas áreas.
O atual presidente da Sociedade Brasileira de Química - SBQ, Vitor Francisco Ferreira, em carta ao Ministro da Educação, Aloizio Mercadante, também reúne as preocupações dessa sociedade em relação ao tema (http://boletim.sbq.org.br/noticias/n536.php):
Nesse sentido, entendemos, a priori, que a simples redução do número de disciplinas com a integração das disciplinas de Ciências Física, Química e Biologia numa única disciplina de Ciências Naturais é um retrocesso histórico. Sabe-se que os atuais avanços científicos e tecnológicos, alcançados no Brasil e no mundo, são oriundos de trabalhos interdisciplinares que envolvem as áreas das ciências Física, Química e Biologia como áreas autônomas e profissionais com formação específica em cada área.
Qualquer mudança de dimensão curricular no ensino médio envolverá inexoravelmente e de forma direta o professor. É através do professor que a mudança se realiza e, portanto, ele será determinante para o sucesso do que for planejado. É fundamental o engajamento do professor no processo, sem prescindir de formação docente adequada, inicial e continuada, de condições para o exercício da profissão e especialmente da valorização da profissão. Em entrevista ao Jornal O Globo em 27/02/2012, motivada pelo sucesso da Finlândia no ranking do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa) em 2009, Pasi Sahlberg, diretor de centro de estudos vinculado ao Ministério da Educação finlandês e autor do livro, "Lições finlandesas: o que o mundo pode aprender com a mudança educacional na Finlândia?", se refere ao papel do professor afirmando que:
Professores são profissionais de alto nível [...]. Eles precisam de uma sólida formação teórica e treinamento prático. Em todos os sistemas educacionais de sucesso, professores são formados em universidades de excelência e possuem mestrado. O salário dos professores deve estar no mesmo patamar de outras profissões com o mesmo nível de formação no mercado de trabalho. Também é importante que professores tenham um plano de carreira, com perspectivas de crescimento e desenvolvimento.
Assim, ressaltamos o entendimento de que qualquer projeto que vise uma reestruturação curricular, pedagógica ou metodológica do ensino médio deve levar em conta fortemente o papel do professor, envolvendo-o necessariamente desde a idealização à implementação, sem prescindir da qualidade da sua formação e da valorização da profissão, estabelecendo políticas específicas para tal.
A importância da formação no Ensino Fundamental
Ainda que a discussão seja sobre o ensino médio, não se deve perder de vista a influência determinante da formação prévia do estudante, ou seja, da formação no ensino fundamental. Uma notícia veiculada da versão eletrônica do jornal O Globo, publicada em 13 de setembro de 2012 (Disponível em http://oglobo.globo.com/educacao/so-17-terminam-fundamental-com-dominio-da-matematica-5981091#ixzz25iUQ2C7O) aponta que os problemas do ensino básico já começam nas séries finais do Ensino Fundamental:
Dados obtidos pelo GLOBO junto ao Inep, autarquia do MEC responsável pelas avaliações, revelam, [...] que os problemas que resultam no quadro preocupante do antigo 2º Grau começam antes, já ao final do ensino fundamental, onde o percentual de alunos com conhecimento considerado adequado é de apenas 17% no caso de matemática e de 27% em língua portuguesa. Além disso, em matemática, um terço dos estudantes que completa o fundamental registrou nos testes do MEC notas que os colocam abaixo até do que se espera para um aluno do 5º ano, (4ª série do antigo primário). Os dados constam de um relatório feito pelo Inep com base no desempenho dos alunos na Prova Brasil, testes de português e matemática aplicados a estudantes da rede pública que fazem parte do cômputo da nota final do Ideb, indicador que reúne essas médias com taxas de aprovação.
Há que se considerar que um resultado como este, em que apenas 17% dos alunos participantes das avaliações de grande escala contempladas pelo Ideb apresentam conhecimento adequado de matemática, não pode ser associado apenas à formação dos últimos anos do ensino fundamental, mas sim, que requer uma reflexão sobre a formação em todos os anos deste segmento de ensino. Ainda que, de acordo com os resultados recentes do Ideb, as séries iniciais do ensino fundamental já indiquem índices em um movimento ascendente, não se pode perder de vista a importância do acompanhamento atento das mudanças e das ações que vêm sendo realizadas nesse segmento de ensino. Será determinante para o que se pretende também no ensino médio.
Sobre a divisão por área
A proposta do MEC de integrar as disciplinas em quatro áreas, consonante com a organização do Enem, pode sugerir a ideia de diluir as disciplinas nessas áreas. Porém, o documento que originalmente apresenta a base teórico-metodológica do Enem (http://www.nota10serie.com.br/wp-content/uploads/FundamentoTeoricoMetodologico1.pdf), ao discutir e relacionar os objetivos dos PCN e do Enem, indica que:
É ostensivo o fato de os Parâmetros explicitarem as disciplinas, ainda que as articule dentro da área e ainda que busque compor essa última com as duas outras áreas, ao passo que o Enem não faz menção a qualquer disciplina, nem sequer a áreas de qualquer tipo. Isso pode dar margem a interpretações incorretas de que o Enem seja simplesmente mais genérico em sua avaliação, ou de que a proposição dos parâmetros seja mais conservadora. É preciso ter-se clareza de que tais interpretações resultam de uma falsa contradição. A construção do conhecimento científico e matemático é claramente disciplinar e dificilmente se poderia conceber um aprendizado que não o fosse. Especialmente no ensino médio, relativamente ao ensino fundamental, esse caráter é inequívoco, com a necessidade de professores especialmente formados para a condução de cada disciplina. (Grifo nosso, p.64)
Entendemos que a intenção da proposta é concretizar a organização das diferentes disciplinas em áreas. As palavras de ordem sãointerdisciplinaridade e contextualização. Essas ideias sugerem uma mudança na abordagem, o que certamente é interessante, evitando que os conteúdos sejam tratados de forma estanque, geralmente sem conexão entre si e entre as disciplinas. Há que se preservar, diante de uma proposta interdisciplinar, os diferentes olhares disciplinares para um mesmo fato científico. Pode parecer antagônico, mas a necessária interdisciplinaridade deve ser no sentido de valorizar e articular as contribuições particularidades de cada campo científico para o desenvolvimento da ciência, como um corpo orgânico e multidisciplinar. Certamente uma abordagem interdisciplinar não será alcançada apenas com uma mudança no programa curricular ou nos textos didáticos.
Ainda em relação às necessidades curriculares, diante da produção científica contemporânea, pensar em uma grade que admita disciplinas eletivas, ou seja, que admita a flexibilidade da escolha de disciplinas por parte dos alunos, caracterizando sua vocação e seu interesse, parece-nos uma discussão imperativa. Entendemos que é importante distinguir o que de fato é básico para uma formação de nível médio e o que é específico para a continuidade dos estudos em áreas diversas.
O "como fazer" é fundamental
Para que a mudança curricular seja eficaz no sentido de promover melhora na formação no Ensino Médio é necessário que ações em diversas direções sejam tomadas em conjunto. Certamente, a primeira delas é refletir sobre a ação docente, o que exige refletir sobre a formação inicial e continuada do professor, sobre as condições para o exercício da profissão e sobre a valorização da profissão, como já foi mencionado acima. Nesse sentido, destacamos que, de acordo com o documento "Destino: Educação - Diferentes países, diferentes respostas", a valorização da profissão de professor é apontada como um dos pilares do sucesso na educação finlandesa tanto quanto como na coreana.
Outra preocupação aponta na direção dos livros didáticos: De que forma fazer a organização de conteúdos por área de conhecimento? Como trabalhar a contextualização e a interdisciplinaridade? Deve-se observar que a contextualização precisa ser feita de forma natural e não forçada. Também destacamos a preocupação com o uso bem planejado de novas tecnologias, com salas de aula ou ambientes adequados para o desenvolvimento das aulas e com a necessidade de que os professores tenham um horário em que possam se dedicar ao planejamento, ao estudo e à troca com os colegas como parte de suas atividades regulares.
Entendemos, portanto, que encarar a questão do ensino médio apenas a partir de uma mudança curricular é subestimar o problema. É preciso observar o tema a partir de uma visão necessariamente abrangente e aprfundada que contemple as diversas variáveis envolvidas. Um caminho estreito em relação à reflexão não conduzirá ao objetivo pretendido e reconhecidamente necessário. Certamente a iniciativa política é importante, mas é fundamental um planejamento adequado e uma agenda para o desenvolvimento de um projeto de tamanha envergadura. Confiando na possibilidade de uma reestruturação de sucesso para o ensino médio, destacamos o entendimento de que os sistemas de ensino devem ser para todos, estimulando interesses e vocações sem deixar de dar suporte àqueles que precisam, preparando estudantes para uma aprendizagem fundada em autonomia e compromisso e que se constitua a partir da valorização do professor. Nesse sentido, urge promover políticas públicas que objetivem o engrandecimento da nação e a valorização da educação como um compromisso da sociedade, e que, portanto, estejam vinculadas ao Estado e não a governos.
Referências:
[i] As resoluções do CNE/CEB, bem como outros documentos como os PCN's podem ser encontrados em:http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=17417&Itemid=866

Fonte: http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/a-proposta-de-mudanca-curricular-do-ensino-medio

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