quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Artificialidade - história em duas partes

 
Parte I
Não gostava das mamas. Achava-as demasiado pequenas. Sentia-se tão insegura acerca delas que lhe perguntava repetidamente se não preferiria que fossem maiores. Ele respondia que não, que nem sequer gostava de mamas demasiado volumosas e que as dela não eram pequenas, eram perfeitas, mas ela não acreditava. Menos de um ano após o casamento decidiu colocar implantes. Ele resmungou. Não era necessário e, para mais, era caro. Mas ela estava determinada e ele acabou por ceder. Com as mamas novas, ela passou a comprar blusas e vestidos mais provocantes. Mas havia um problema: tinha uma cintura ligeiramente gorda. «Preciso de fazer uma lipoaspiração», declarou uma noite, cerca de seis meses depois da colocação dos implantes mamários. Ele argumentou que não tinham dinheiro suficiente, que andavam a adiar a compra de um carro desde o casamento, que o apartamento ainda quase não tinha móveis, que os juros do empréstimo podiam subir, mas foi inútil. Após a lipoaspiração, ela sentiu-se melhor durante uns tempos. Depois decidiu arranjar os dentes. «Mas o que têm os teus dentes de mal?», perguntou ele. «São tortos, e amarelos. Já viste os actores e os apresentadores de televisão americanos? Têm todos dentes fantásticos! Por que é que não hei-de ter uns assim?» Milhares de euros depois, ela tinha dentes falsos tão belos que sorria mesmo ao receber más notícias. Progressivamente tirou todos os sinais do corpo, alisou a pele do pescoço, injectou botox nos lábios e em torno do olhos, colocou umas maçãs do rosto mais salientes, corrigiu a ligeira (ele nem a conseguia ver) proeminência das orelhas, fez uma rinoplastia para cortar dois milímetros ao nariz e instalou seis piercings, um dos quais o fazia perder a erecção durante o acto sexual, por receio de lesões graves. Por fim, ele fartou-se. Depois de anos a visitá-la em clínicas e hospitais, anunciou-lhe que a ia deixar. «Vais pedir o divórcio?», perguntou ela por entre os lábios inchados após mais um injecção de botox. «Não», respondeu ele, «não estou a pensar no divórcio.» Apesar dos anos já decorridos, requereu e conseguiu a anulação do casamento, alegando que aquela não era mais a mulher com quem casara, nem sequer uma verdadeira mulher, mas um ser artificial, quase totalmente sintético. À porta do tribunal, as últimas palavras que lhe dirigiu foram: «Lamento, mas eu preciso de verdadeiro contacto humano.»
Parte II
 
Livre para viver sem ser obrigado a levar em consideração desejos alheios, com o salário à disposição (ela não ganhava mal, mas ele ganhava melhor), ele instalou-se num apartamento e começou a mobilá-lo com os objectos que sempre sonhara ter. Na sala colocou um televisor de cinquenta e cinco polegadas, ligado a um leitor de blu-ray, às três principais consolas de jogos e a um sistema de som surround com sete canais principais mais subwoofer. No quarto instalou um televisor mais pequeno e um sistema de som ligeiramente menos potente. Para a cozinha escolheu um combinado com ecrã de televisão e sintetizador de voz, capaz de cuspir cubos de gelo, gerir stocks e recomendar o consumo dos produtos mais saudáveis, e um microondas com sensores de humidade que adequavam tempo e potência da cozedura aos alimentos colocados no interior e um pequeno ecrã colorido onde surgiam gráficos, animações e a indicação dos parâmetros utilizados nos últimos cinquenta pratos cozinhados. Na casa-de-banho instalou uma banheira de hidromassagem com dezenas de jactos, programação digital e mais um ecrã de televisão. Passou a lavar os dentes com uma escova eléctrica e a barbear-se com uma máquina eléctrica de cabeça oscilante, que tinha um ecrã pequenino onde surgia a indicação de carga e do desgaste das lâminas. Comprou ainda uns auscultadores sem fios e outros com fio, um telemóvel novo, topo de gama, um computador, um iPod, um iPad, duas máquinas fotográficas e várias objectivas, uma câmara de vídeo e uma impressora de qualidade fotográfica. Adquiriu também um aspirador que trabalhava sozinho e uma passadeira de exercício possuidora do seu próprio ecrã de televisão, com dúzias de programas distintos simulando a corrida em sítios tão exóticos como a Quinta Avenida e a Passagem de San Bernardino. Instalou sensores de presença ligados às luzes e um sofisticado sistema de comando que lhe permitia controlar quase todo o equipamento a partir do telemóvel. Por fim comprou um carro com caixa automática, chave inteligente, sensores de luz e de chuva, alerta de mudança de faixa, sistema de navegação e de telefone com reconhecimento de voz, e capacidade para estacionar sem intervenção humana. Depois de tudo isto sentiu-se finalmente feliz. Quando pensava na mulher de quem se separara, abanava a cabeça, incapaz de entender como pudera aguentar tamanha artificialidade durante tanto tempo.

Nenhum comentário: