quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

Criatividade, trabalho e inteligência



(Explicando: Estamos na segunda alteração do blog procurando melhorar e ficar mais interessante. Cansei do esquema de ficar procurando receitas e dedicar um dia do blog só pra isso. Assim, se pintar alguma receita legal, ela será publicada no Sábado em queda livre. Quinta feira será um dia para publicação de artigos e entrevistas interessantes com pessoas que se destacam nas mais variadas áreas. Não são textos necessariamente atuais mas sempre instigantes. Começamos, hoje, com uma longa entrevista com Domenico de Masi)




Domenico de Masi

(Entrevista de Domenico de Masi no Programa Conexão Roberto D’Ávila, na TVE, em 08/07/1999)

Filosofia, criatividade e muito pouco trabalho, ou seja bastante trabalho, mas um trabalho inteligente. Professor Domênico de Masi.O século 20 está terminando sob o signo do consumo desenfreado e da pressa na produção. O trabalhador se distancia da sua família e do lazer e fica a maior parte de seu tempo dentro das fábricas e empresas, mas os gênios criativos se diferenciam da maioria e aproveitam do seu tempo livre para aumentar ainda mais a sua capacidade criativa. Um dos principais defensores deste pensamento é o pensador italiano Domenico de Masi nascido no sul da Itália e formado em sociologia na França. Hoje ele é professor de sociologia do trabalho em Roma. De Masi defende o que ele chama de ócio criativo ou seja mais tempo livre para o trabalhador viver melhor no dia a dia e com isso estimular a sua criatividade e produzir melhor. De Masi viaja por todo mundo prestando assessoria para importantes empresas. Recentemente esteve no Brasil para uma série de palestras com imensa repercussão nos meios intelectuais e empresariais.

...

Roberto: Professor, é um grande prazer recebê-lo aqui no meu programa e eu gostaria de conversar com o senhor, evidentemente que vamos falar de suas idéias, mas eu queria conhecer um pouco quem é De Masi, onde o senhor nasceu e um pouco de sua história.
De Masi: Certo. Eu tive a sorte de nascer numa área rural, depois passar para uma cidade industrial e depois conhecer o mundo pós-industrial. Então digamos que minha vida sintetiza essas 3 coisas. Enquanto que minhas filhas só conheceram a sociedade pós-industrial, não podem fazer a comparação com o que havia antes, eu conheci as 3 fases por isso sou um otimista, porque sei de onde viemos. Meu pai era um cirurgião que venceu um concurso, antes de meu nascimento, e, junto com minha mãe, foi para uma cidadezinha rural, distante de Nápoles. E lá nascemos eu e minha irmã. Quando eu tinha sete anos voltamos para Nápoles e lá conheci outro mundo, o urbano, da cidade e também da burguesia. Depois meu pai morreu e tive duas sortes: fui estudar em Perugia, que é uma cidade maravilhosa na Umbria, O coração verde da Itália, a região onde nasceu São Francisco, Santa Clara. É uma área muito serena onde há universidades de elite, não econômica e sim intelectual. Depois fui fazer especialização em Paris e lá descobri a sociologia, que para mim é uma matéria extraordinária e que não sabia que existia. Voltei para a Itália, me interessei pela indústria, depois pela universidade, depois fundei uma escola de jovens muito criativos, mas, aos poucos, ia deixando de notar a diferença entre trabalho, estudo e tempo livre. Cada vez mais essas três coisas viravam uma coisa só. Assim, agora nunca sei se estou estudando, trabalhando ou me divertindo. Neste momento, por exemplo, não sei o que estou fazendo.
Roberto: Professor, então a sua história é um pouco a história deste século, certo?
De Masi: Sim, Sim é verdade. Sim, a minha história é a história deste século. Nasci numa antiga civilização rural que já durava há 7 mil anos. Em alguns países terminou antes, como na Inglaterra e, em outros depois, como no sul da Itália e no Brasil, onde ainda há um grande número de agricultores. Depois veio a Indústria com seus aspectos positivos, sua produção e riqueza, mas também aspectos negativos: a alienação, o consumismo, a exploração, uma guerra mundial, a revolução das classes na Rússia e em outros países. Então, um século cheio de grandes acontecimentos, e também de grande potencial. No início do século, o mundo tinha menos de 1 bilhão de habitantes. Em outubro o planeta estará com 6 bilhões de habitantes. Muito bonito, mas isso não significa apenas 6 bilhões de bocas comendo, são também 6 bilhões de cérebros que todas as manhãs acordam e pensam. Então este é o planeta com maior número de cérebros que já tivemos na história da humanidade até hoje. Não significa que estamos no melhor mundo possível, mas estamos, certamente, no melhor que existiu até hoje.
Roberto: Professor, o Gramsci dizia que o homem deve ter o pessimismo e a inteligência segundo a vontade. O senhor é adepto dessa...
(Pergunta comprometida pela qualidade do vídeo, entretanto não dificulta a compreensão do texto no todo)
De Masi: Ele tinha razão, mas acho que a inteligência também pode ser otimista. Eu corrigiria Gramsci. Ele nasceu na Sardenha. A Sardenha é uma ilha bem severa. Eu nasci em Nápoles, que é um lugar mais feliz. Acho que é preciso unir o otimismo da inteligência com o otimismo da vontade. Dá para fazer as duas coisas juntas.
Roberto: O senhor é um intelectual, um homem que estudou sociologia, conhece filosofia, e no entanto é um homem que também levou seu pensamento sua vida para uma coisa mais prática como é que se deu essa passagem do intelectual para um homem, de certa forma, de negócios?
De Masi: A criatividade é a união da fantasia com o concreto. Todas as coisas, até as mais fantasiosas, precisam do concreto. Por exemplo, estamos conversando e, com essa conversa, exprimimos idéias. É um papo criativo, mas ao nosso redor precisamos de coisas concretas: uma câmera, um refletor, um horário, tempo, técnicos. Sempre há criatividade na união da fantasia com o concretismo. Não sei se sou criativo, mas gosto de unir essas duas coisas: fantasia e concretismo. Por isso gosto da Estética, da poesia mas também de "management". Acho que os "management" dá concretismo à produção humana.
Roberto: Se pode encontrar arte no "management"?
De Masi: No "management"? Não, é uma excessão, porque o management é americano. Não que os EUA não tenham arte, mas não souberam unir a arte e o trabalho. Eles tem a arte de um lado e o trabalho do outro. Esse é um modo arcaico de ver o trabalho. Eles não misturam as duas coisas. Na Itália já houve diferenças enormes. Não sei se aqui conhecem a história de Adriano Olivetti. Certamente conhecem a Olivetti. Mas sua história é excepcional. É engenheiro, filho do fundador da Olivetti, que morreu no início dos anos 60, ou seja, há uns 40 anos. Foi um engenheiro extraordinário, que concebeu as fábricas como lugares belíssimos, jardins. Se você visitar a Olivetti de Arco Felice, já vê pelo nome... Arco Felice é o golfo de Pozzuoli, perto de Nápoles. Há muitos jardins, fontes. Tem a fábrica, mas num contexto maravilhoso. E ele pensava numa cidade do homem, uma comunidade onde houvesse muito mais cooperação do que concorrência. Onde a cooperação fosse facilitada pela arte, pela música, pela literatura e também pela política, porque ele via a política como uma grande arte. Isso para mim é a união no trabalho de brincadeira, estudo, tempo livre e trabalho mesmo. Mas isso para os "managers" é difícil, porque os "managers" vêm das " escolas de negócios". E essas escolas não fazem outra coisa a não ser transportar o terrorismo do mundo das oficinas para o mundo dos escritórios e eu acho que isso reduz todo trabalho a uma coisa muito seca. E os "managers" são muito conflitantes.
Roberto: O senhor quis dizer que os europeus são mais criativos que os americanos?
De Masi: Eu estudo há quase 20 anos a criatividade e vi que não há lugar específico onde ela nasce. Os americanos tiveram a grande inteligência de atrair os criativos de todo o mundo, principalmente durante o fascismo, o stalinismo e o nazismo, milhares de intelectuais fugiram e a América os acolheu independente da ideologia, raça, sexo ou riqueza e lhes ofereceu os instrumentos e agora colhe os resultados disso tudo, pois é o país com o maior número de prêmios Nobel, maior número de laboratórios de pesquisa, bibliotecas, orquestras, teatros e um cinema extraordinário. Mas isso é fruto da acolhida que deu aos intelectuais.
Roberto: Por isso eles são mais fortes?
De Masi: Claro, hoje os países se distinguem em três categorias: os que produzem idéias, os que produzem produtos e os que consomem. os países dominantes produzem idéias, os países emergentes como o Brasil, produzem bens materiais com base nas patentes elaboradas nos países potentes. E há aqueles países do terceiro mundo condenados a consumir. Hoje há mais supermercados nos países do 3º mundo do que nos do 1º mundo. O Brasil tem um número enorme de supermercados. Essa é uma coisa boa e ruim.
Roberto: Na Europa, tem um sentido mais humano os pequenos negócios...
De Masi: Não destruímos ainda todos os pequenos negócios. Um supermercado cria um emprego e destrói quatro. Esses quatro empregos estão nos pequenos negócios. Pequenos negócios nas ruas criam a civilização. Quando fecham esses pequenos negócios nas ruas chega a criminalidade.
Roberto: E as pessoas se conhecem,...
De Masi: Claro, mas essas "lojinhas" são ponto de encontro onde se conversa, as pessoas se encontram e são tratadas como indivíduos, não como massa. Cada um tem seu preço, sua consideração. O comerciante conhece a condição financeira de cada uma, conhece os gostos, as preferências e isso dá um toque de humanidade aquilo que por se só é equívoca, ou seja, o comércio. O supermercado acaba com toda a parte humana e deixa apenas a dimensão mercantil, a dimensão comercial. Não gosto de supermercados. Gosto mais das lojinhas.
Roberto: Mas se nós pensarmos nos grandes criativos, revolucionários deste século, estou pensando no Einstein, Freud, Stravinsky na música são todos europeus não?
De Masi: Sim, são europeus porque foi na Europa onde primeiro surgiu a Indústria. Mas também o primeiro lugar onde a indústria foi superada. É um pensamento um pouco complexo, perdão se eu não for muito claro. A sociedade industrial nasceu baseada no conceito de precisão e a precisão requer instrumentos de precisão. Microscópios, cronômetros, e tudo isso cria um tipo de vida geométrica, e toda a sociedade industrial nasceu sob esse princípio de racionalidade geométrica e matemática, tanto que se pensava que tudo pudesse ser reduzido a um número, a geometria. Assim, a Europa criou esse grande movimento, a indústria, mas como foi a primeira a criá-la primeiro teve de superá-la. Então, no fim dos anos 1800 e durante o início dos 1900, começou um movimento oposto no qual o mundo da precisão da Europa começava a contrapor o mundo do caos, do capricho, da flexibilidade e da criatividade. No fim dos anos 1800, houve um grande matemático, especialista em geometria, chamado Lopachewski. Lopachewski destruiu toda a geometria euclidiana, clássica. Em 1900, Freud publica "A interpretação dos sonhos" e com isso destrói toda a certeza da psicologia clássica. Em 1903, Einstein publica a teoria da relatividade e com isso destrói toda a certeza da física clássica. Em 1906, Picasso expõe o "Les Demoiselles d’Avignon", onde não há um ponto de perspectiva, mas cada bloco tem seu ponto de perspectiva, é o cubismo, e com isso destrói toda a perspectiva do renascimento de Piero della Francesca e de Michelângelo. Em 1911, Stravinsky executa pela primeira vez a " Saga da Primavera" e, com essa polifonia, com esses blocos sonoros, transfere o cubismo da música e destrói a unidade e o equilíbrio da sinfonia clássica. Em 1818, Le corbusier cria o modelo Domino, e destrói o equilíbrio, a modalidade de construção da arquitetura tradicional. E finalmente, no início dos anos 20, Joyce publica "Ulisses", e termina com todo equilíbrio da obra que começa e acaba, como I Promessi sposi e nasce a obra aberta. No fim, por cerca de 40 páginas, "Ulisses" não tem nem pontuação.
Roberto: E nasce o modernismo né?
De Masi: Aí nasce.....o pós modernismo.
Roberto: (Risos) É o inicio dos tempos.?.......
De Masi: Talvez. Pela primeira vez na Europa surge a sociedade pós-industrial, e vem com grande força, mas depois chega o fascismo, o nazismo e todos esses grandes líderes de Stavinsky a Gropius, vão para os EUA que começa assim sua hegemonia cultural, além de econômica, militar e política. A globalização é um fenômeno deste final de século se de um lado ela derruba barreiras e favorece o intercâmbio de nações deixa os países em desenvolvimento a mercê das grandes potências
Roberto: Onde está a força, o poder hoje, professor?
De Masi: A força do poder está nas mãos dos laureados e dos técnicos, não há dúvida. É no saber que se baseia todo o resto, todo o poder. Para saber o que acontecerá no futuro, temos de ver o que estão fazendo os estudiosos em stanford, no MIT, em Boston, na Columbia University. Para saber o dia de amanhã é preciso saber o que fazem hoje os cientistas nos grandes laboratórios. São eles que estão preparando nosso futuro. Aquilo que vamos consumir, sobre o que falaremos, aquilo com o que conviveremos, o tempo, o ritmo, o nosso modo de vida de amanhã, de nossos filhos são estabelecidos hoje em laboratórios que nem conhecemos e, quando conhecermos, será tarde demais. Agora que podemos modificar suas escolhas, não sabemos quais são. Quando soubermos, já estará tudo feito, então são os cientistas que guiam nossa história neste momento.
Roberto: Esse mundo pós moderno esse mundo que estamos vivendo neste final de século, da tecnologia da Internet, modificou completamente a criatividade? Como a globalização se insere neste mundo?
De Masi: A globalização é um instinto humano. Os seres humanos sempre tentaram globalizar. Globalizar significa antes de mais nada, conhecer todo o planeta. Até Ulisses queria conhecer cada vez mais. Quando conseguimos conhecer, queremos cartografar, descrever, depois queremos dominar. Primeiro dominamos com as armas, depois com as mercadorias e depois com a cultura.
Roberto: E com a informação.
De Masi: E com a informação. Primeiro com os missionários e com a CNN depois. A CNN são os missionários modernos.
Roberto: São os exércitos novos...
De Masi: Um exército novo que avança que chega a qualquer lugar em qualquer momento e assim modifica o mundo. Essa globalização também é feita através da ciência. E divide os países em países que produzem idéias, que produzem produtos e que consomem. Nessa globalização, nosso modo de pensar vai mudando. Já estamos globalizados em tudo. Nossa visão está globalizada. No mundo todo se vêem as mesmas coisas. Nossa audição também, em todo o mundo se ouve a mesma música. Nosso paladar está globalizado: todo mundo bebe coca-cola, todos comem hambúrguer, Até em Porto Alegre, um dos lugares com a melhor carne do mundo, temos o McDonald’s e todos comem hambúrguer e batatas. Assim como em Nápoles, Paris ou Tóquio. O mesmo acontece com o olfato. Todos os aeroportos têm o mesmo cheiro, todos os hotéis de uma cadeia, todas as farmácias. 32 milhões de garrafas de coca-cola são vendidas por hora no mundo. 18 milhões de hambúrgueres são consumidos. Assim, essa globalização já está cobrindo todo o planeta. Com tudo isso, a criatividade fica em dificuldades, isso porque a criatividade é baseada nas diferenças. Ela nasce dos desníveis; é como a energia de uma cascata que nasce do desnível entre as áreas alta e a baixa do rio. A criatividade precisa de um desnível, precisa de ser "local". A criatividade é global e local ao mesmo tempo. Precisa de visões universais, mas de raízes locais. Se se perdem as raízes locais, perde-se o terreno de onde vem a criatividade, assim a globalização é uma ameaça à criatividade. Mas já tivemos muitos períodos de globalização. Houve um período no qual o mundo todo era romano, todos falavam latim.. Depois chegaram os bárbaros, aqueles que nos salvaram da globalização do império e trouxeram novidades, frescor, novas idéias. Foram considerados bárbaros, mas bárbaros eram os romanos que os reprimiam. Júlio César matou Vercingetorix na prisão, Júlio César o queria, pois era um belo rapaz e césar já era velho. Mas Vercingetorix não quis nada, então ele o matou. Mas como a história foi escrita por Julio César, Vercingetorix aparece como um bárbaro, assim como os espanhóis e portugueses que vinham até aqui matavam e voltavam dizendo que os brasileiros eram canibais.
Roberto: O senhor acha que os países mais pobres ou em desenvolvimento têm lugar na globalização?
De Masi: Tem lugar na globalização porque são usados pelos países ricos como países consumidores. Os países pobres consomem produtos avariados dos países ricos. Quando a validade de um produto de um país rico vence, um sorvete, um queijo, uma massa, é passado para os países pobres. Na Rússia eu comprei um sorvete italiano e tinha um sabor horrível. " Como pode ter esse sabor?" olhei na embalagem e estava vencido há mais de 1 ano. Falei com a vendedora que estava vencido e ela disse: " Aqui é tudo vencido, se não estivesse vencido não vinha para cá." Os países pobres são vistos pelos países ricos como consumidores, mas como não têm riquezas, em troca desses produtos que os países ricos mandam, os países pobres oferecem bases navais, bases para os aviões de guerra, sua cultura, matéria-prima e, principalmente, a mão-de-obra. Porque uma parte da indústria do primeiro mundo, aquela que o primeiro mundo não quer mais fazer, é mandada para o terceiro mundo. E a população pobre do terceiro mundo vai para o primeiro mundo fazer o trabalho que lá ninguém quer fazer. É de certa forma, um novo tipo de escravidão, claro que melhor que a escravidão que havia no Brasil até o final dos anos 1800. Mas é uma forma moderna de escravidão.

Criatividade. De onde vem essa chama que diferencia os homens? É sobre isso que Domênico de Masi, especialista em criatividade há mais de 20 anos nos fala agora

Roberto: Professor, é possível se construir um criativo, ou o ser humano nasce um ser criativo?
De Masi: Cada um é mais ou menos criativo em um setor. Um é mais criativo na matemática, outro na música, outro na literatura, outro nas relações humanas. Ninguém é criativo em tudo. Cada um é diferente do outro pelo nível de criatividade. Eu posso ser criativo para a música, mas não posso ser Mozart. Mozart podia ser muito criativo na física, mas não podia ser Einstein. Criatividade é a capacidade de juntar fantasia e concretismo, só os gênios têm grandes fantasias e concretismos. Eu acho que não dá para "construir" um criativo. Acho que dá para fazer duas coisas: uma é intuir em que setor uma criança ou jovem é mais criativo. Entender isso, fazer com que ele entenda também, de modo que cada um use sua vocação no setor em que é mais criativo. Por exemplo, a sorte de Mozart foi ter um pai músico. Se o seu pai fosse marceneiro, teríamos um péssimo marceneiro e teríamos perdido um grande músico. Então, antes de tudo é preciso entender em que setor um jovem é mais criativo. Depois é preciso fazer outra coisa: eliminar os obstáculos, as barreiras para a criatividade. Se descobrimos que nosso filho é bom para a música, temos de fazer com que estude música e não forçá-lo em outras matérias. Eu me encontrei nessa situação. Uma vez cheguei em casa e uma de minhas filhas, que fazia o 2º grau, deixou na minha escrivaninha uma carta, ela tinha 18 anos e eu pensei que fosse um problema de amor, mas quando abri li: " Papai, você não vai gostar, mas vi que minha vocação não é a escola, mas a música. Quero estudar jazz. Quero ir para Boston estudar jazz". Para mim não foi uma dor. Fiquei feliz, fiz um sacrifício e mandei-a para os EUA. Poderia ter tido medo, pois era uma moça indo sozinha para os EUA ou poderia impor minhas escolhas. Eu teria arruinado tudo. Hoje é uma boa musicista. Não é uma grande musicista de jazz, porque sua criatividade nesse setor tem a força de uma musicista média, assim como sou um sociólogo médio. Mas se eu a tivesse forçado a ser médica ou advogada seria pior. Então, não dá para tornar criativos aqueles que não são. Mas cada um tem de entender qual é a sua vocação criativa e depois remover as barreiras que existem para seu tipo de criatividade. Em qualquer criança, até na favela, pode haver um Mozart. O importante é entender que naquela criança há um Mozart e dar-lhe os meios para exprimir plenamente sua criatividade.
Roberto: Professor eu queria falar um pouquinho de filosofia, o mundo hoje ou cada vez mais por causa do individualismo ou talvez até por causa da globalização, o ser humano busca mais a filosofia, o seu próprio conhecimento. O senhor acha que a filosofia é possível melhorar o trabalho?
De Masi: Bem eu sou um sociólogo, e assim acredito que a vida e o trabalho podem ser melhorados mais com a sociologia do que com a filosofia. Mas isso é um defeito da profissão. A filosofia é uma reflexão atenta da vida para conseguir entender qual seu sentido e, nesse aspecto, é claro, a filosofia deve ser aplicada à vida. Nós, ao contrário de nossos avós e antepassados, vivemos muita realidade com viagens, comunicação de massa, vemos tantas coisas, conhecemos muitas pessoas. Meu avô vivia numa cidadezinha perto de Nápoles e passou a vida toda vendo as mesmas pessoas, ouvindo as mesmas coisas. Eu, hoje estou no Brasil, amanhã em Tóquio, depois posso estar em NY, me relaciono com pessoas diferentes e por aí vai. Mas também no dia-a-dia, no meu cérebro, há tantas coisas, os livros que leio, mas há também o Mickey, Schwaezenegger, 007, coca-cola, hambúrguer. A nossa existência é uma massa enorme de experiências. Para que deve servir a filosofia? Para duas coisas: primeiro, colocar todas essas experiências numa unidade, de modo que essas várias partes tenham uma unidade. Segundo dar sentido às coisas. Se as coisas não têm sentido, compramos cada vez mais, enchemos a casa de coisas que não são importantes para nós, assim nasce o consumismo. Mas se as coisas fazem sentido, precisamos de pouquíssimas coisas. Mas são aquelas que nos dão tanta alegria. As coisas que nos dão mais alegria são as que menos custam. Por exemplo, a amizade, o amor, o convívio, a brincadeira, a diversão, a ironia, a introspecção, estar um pouco com si só, o ato de contemplar as coisas, as árvores, as nuvens, os pássaros, o mar. Tudo isso é de graça. Nós perdemos esse sentido porque estamos sempre com pressa, acumulamos, acumulamos, mas se desacelerarmos, conseguimos dar ritmo à nossa vida, a vida fica riquíssima e parece muito longa, tão longa que passamos a não ter medo da morte.
Roberto: A década de 60 foi um dos períodos mais criativos desse século, ocorreram grandes transformações sociais e políticas em todo mundo principalmente nas questões do comportamento.
De Masi: Aquela foi uma época extraordinária. Mas talvez esta também seja e só nos daremos conta disso daqui a 20 anos. Mas houve um grande acontecimento que não se repetiu, mas talvez se repita, ou seja, de repente as coisas mudaram de forma, como se olhássemos uma nuvem e, de repente, ela ficasse na forma de um rosto ou de uma flor. De repente surge um novo modo de ver a realidade. Esse modo era assim: até aquele momento, alguns fatos eram considerados certos, eram teses. Era certo que o professor sabia mais que o aluno. Era certo que o pai estava diante do filho. De repente tudo mudou. Essas verdades certas tornaram-se hipóteses, tudo o que era dado por certo foi posto em discussão. Foi posta em discussão a relação homem/mulher. Achava-se que o homem era inteligente e a mulher burra. Que a mulher, se era bonita, só podia ser burra. A mulher tinha de ficar em casa e o pai trabalhar. Todas essas "verdades" foram, de repente, postas em discussão. Nada mais era certo e todas as coisas foram discutidas, revistas e testadas. O particular torna-se político, o político torna-se particular, depois o particular torna-se subjetivo e se modificou completamente o modo de ver as coisas. Os anos 60, que terminaram em 68, foram anos extraordinários nos quais em muitos países, como na Itália, põe exemplo, houve mudanças de governo e, pela primeira vez, tivemos uma verdadeira democracia. Na Suíça as mulheres obtiveram o direito de votar. Quando uma novidade é aceita até na Suíça, significa que se trata mesmo de uma grande vitória social.
Roberto: Professor, nós estamos mudando de século e de milênio, como é a criatividade nas empresas, como é que as empresas vão ser no próximo século?
De Masi: É muito importante para mim o paralelo entre o ano 2000 e o ano 1000. Não sabemos como seremos descritos e vistos no futuro. Por exemplo, no ano 1000 dizem que todos tinham medo do fim do mundo. Não é verdade, isso foi criado nos anos 1800, é uma fábula romântica. Como a bíblia fala que virá o dia do juízo final, mas será de repente, não se sabe dia nem hora, a única coisa certa no ano 1000 era que não ser5ia o fim do mundo. Não, não havia esse medo, ele foi inventado por nós muito tempo depois. Assim, não sei como será o ano 2000, como ele será descrito daqui a centenas de anos. Mas dá para imaginar como serão as empresas no ano 2000. Pela primeira vez as empresas verão que tudo mudou. As empresas surgiram no fim dos anos 1700, desenvolveu-se principalmente nos anos 1800 e na primeira metade dos 1900, como o lugar onde se produzem os bens materiais como geladeiras, carros, etc... E tudo isso se produz através da linha de montagem. Essa linha de montagem requer movimentos sempre iguais, operários analfabetos que fazem um trabalho manual. A empresa do ano 2000 é completamente diferente. Os operários desaparecem porque terão os robôs. Desaparecem os funcionários porque as tarefas de escritório, sempre iguais são feitas no computador. Assim, resta apenas o trabalho flexível e o criativo. Hoje já começa a ser assim. Nas grandes fábricas, os empregados, administradores e profissionais são em número muito maior que o de operários. Mas as empresas continuam a administrar o trabalho intelectual com métodos de trabalho manual de 100 anos atrás.
Roberto: Onde é que se vai colocar o ser humano, o desemprego, como é que vai ser...
De Masi: Primeiro de tudo, o trabalho humano diminui. Havia muita necessidade de executivos no lugar das máquinas. Hoje, com as máquinas, precisam dos criativos, mas não muitos, muito menos. Então, primeiro haverá menos trabalho para os executivos e depois menos trabalho para os criativos. Vamos produzir cada vez melhor, mas com cada vez menos pessoas, mas que serão cada vez mais inteligentes, cultas, escolarizadas e criativas.
Roberto: Isso é uma elite não?
De Masi: Sim uma elite. Quanto a isso não há dúvida. O problema é: se vamos trabalhar cada vez menos e se o trabalho for cada vez mais elitizado, o que farão todos os outros? Esse é o grande problema do próximo século. Não é uma utopia, é algo que já acontece. Um rapaz de 20 anos hoje tem diante de si 60 anos de vida e 40 de trabalho. 60 anos de vida são 530( quinhentas e trinta) mil horas, 40 anos de trabalho são 70 mil horas, então hoje, não é utopia, hoje, um jovem tem diante de si uma vida na qual o trabalho é apenas 1/7. O problema na educação desse jovem é que ele não deve ser educado para aquele sétimo de vida que é o trabalho, mas para os 6/7 restantes que são a vida. É errado dizer que a escola deve se interessar pelo trabalho, deve preparar para o trabalho, não, a escola deve preparar para a vida. Se prepara só para o trabalho, tudo aquilo que ensina já não vale mais nada dois anos depois. O que é ensinado para a vida, vale para sempre.
Roberto: Professor, o senhor vive na Europa, viaja o mundo inteiro, EUA, Japão, e tem vindo muito ao Brasil. O que o senhor encontra no Brasil, a sua impressão, o que nós temos de melhor ou de pior, há futuro num país como o Brasil dentro desse mundo rico, globalizado, de elite?
De Masi: Sim as piores coisas são duas: O desnível social. Ele é enorme, E os intelectuais brasileiros quase não se dão conta. É enorme, é tão grande que quem está dentro não percebe. Em uma cidade do Brasil, uma senhora muito gentil me convidou para ir à sua casa. Cheguei lá à noite para jantar. Era no último andar de um arranha-céu numa cidade do nordeste. Ela abriu a janela e embaixo havia uma favela. Ela disse: "viu que linda vista, professor?" E se via uma grande favela. Eu não entendo como dá para ser feliz numa casa que tem a janela sobre uma favela. Isso é terrível. Assim, o primeiro problema é o desnível social. Não é possível viver serenamente enquanto, em Salvador, centenas de meninos moram nos alagados, sobre palafitas. Não é possível. Um outro defeito... me desculpe, mas devo dizer. Um outro defeito é que a elite e principalmente os intelectuais que conheci, e também os estudantes, porque me encontrei com milhares de pessoas e fiz três palestras por dia, conheci muita gente, também das outras vezes que vim ao Brasil. Os intelectuais não têm a noção precisa do valor e do poder da cultura brasileira no mundo. Não têm a noção precisa de que, neste momento, não há mais uma referência política ao comunismo russo. Mas começa a cair a referência americana. Em todo o mundo há uma certa rejeição de um modelo de vida que é excessivamente baseado na competitividade, na guerra interna e externa, na presença de pobres num país rico que nossa mentalidade rejeita completamente. Mas se não temos mais o modelo americano nem o russo, que modelo resta? Há um modelo religioso. João Paulo II, inteligentíssimo, soube entender a crise do capitalismo, que sabe produzir riqueza, mas não sabe distribuir, e a crise do comunismo, que sabe distribuir, mas não produzir. Ele entendeu tudo isso e criou logo um modelo de diálogo com o 3º mundo, distante igualmente do capitalismo e do comunismo. Mas é um modelo religioso. Mas o que fazem os laicos? Os laicos não têm um modelo. Então, ou escolhem o capitalismo ou o comunismo.
Roberto: A Terceira Via não existe?
De Masi: Não existe uma terceira via laica. Só religiosa. Então para um laico o que resta? ou o pessimismo, que o impede de criar uma terceira via ou Tony Blair, mas essa não é uma terceira via, é 2,1; 2,5; não é uma terceira via, é muito mais americano do que qualquer via européia. Então se trata de criar uma terceira via.
E quem pode construir uma terceira via? Para mim a primeira e a segunda vias foram criadas por homens russos ou americanos, então a terceira pode ser criada por mulheres, de países que não sejam nem a Rússia nem os EUA e nem da Europa, porque está muito decrépita para olhar para frente. Então, acho que tem de ser um país do 3º mundo, mas já com muitas universidades, intelectuais, cineastas, artistas, como o Brasil, o sul da Itália, os países do Mediterrâneo. Se unissem suas forças poderiam começar a delinear uma terceira via que não fosse baseada na competitividade destrutiva, mas na rivalidade solidária. Então, aqui temos o aspecto positivo do Brasil. O Brasil poderia fazer tudo isso porque é um grande país.
Roberto: Primeiro precisa educar a população não é essa a grande questão brasileira, educação?
De Masi: Claro, esse é um grande problema, mas dá para encontrar soluções. Eu ensinei em Nápoles, que é uma cidade muito bonita, mas muito pobre. Não pobre como Salvador, mas bem parecida. Enquanto em Milão não há grandes desníveis sociais, em Nápoles temos.
A faculdade de Sociologia, onde eu ensinava, era um belo prédio numa parte muito pobre da cidade, com muitas crianças analfabetas. Então, pensei que não dava para contar com o estado porque nem a escola estadual nem a particular encaram bem esse problema. Então, pensei em resolver sozinho, com meus alunos. E criei o seguinte: todo aluno de sociologia, para fazer a prova, antes de fazer a prova de sociologia, tinha de alfabetizar uma criança. No início do ano, cada aluno meu, eram 300, tinha de me trazer uma criança analfabeta do bairro. Eu analisava a criança para ver se era mesmo analfabeta, porque os napolitanos são espertos, (risos) mas os brasileiros também. E, depois de um ano, antes da prova final, meu aluno tinha de trazer a criança e eu testava para ver se sabia ler e escrever. O aluno só podia fazer a prova se a criança estivesse alfabetizada. Imagine se fizermos isso com os alunos de Medicina, de Arquitetura, com todos os estudantes universitários, pois todos tem condição de alfabetizar. Cada estudante universitário faz umas 20 provas, se para cada uma tiver de alfabetizar uma criança, alfabetizará 20 crianças. Um milhão de estudantes alfabetiza 20 milhões de crianças. Está resolvido.
Roberto: ...Mas é vontade política
De Masi: É política, mas também voluntariedade e humanidade. É um problema de humanidade.
Roberto: Professor já que estamos terminando e falando de coisas bonitas, o senhor acha que o romantismo está acabando neste final de século?
De Masi: O romantismo? Sim, está mudando, mudando para melhor porque o romantismo dos anos 1800 era um romantismo que exigia dos românticos grandes demonstrações cruéis. Era preciso morrer na guerra, ser herói, suicidar-se, ter tuberculose. Ou seja, era um romantismo que no fundo tinha um desejo de morte. O romantismo hoje me parece muito mais extraordinário, claro que hoje temos a tecnologia. Ontem fui a uma convenção e tive uma intérprete maravilhosa que me acompanhou o tempo todo e perguntei a ela o que fazia, se tinha namorado ou era casada. Os italianos sempre tentam entrar nesses assuntos. E me disse que tinha um namorado. E eu perguntei por que ele não estava lá. E ela disse que não o conhecia. Eu perguntei em que sentido. Disse que era um namorado que tinha há 1 ano via Internet. Um rapaz italiano. Disse que era muito fiel e que via Internet conversavam, faziam amor e tudo o mais mas que agora estava em crise porque o namorado tinha se tornado ciumento e tinha medo que ela o traísse com outro, sempre via Internet. E ela não sabia como demonstrar que não traía. Essa é a nova maneira de ser romântico. Une tecnologia, modernidade e antigüidade. É também uma coisa muito doce e comovente. Para dizer a verdade, eu me comovi. Considero este tipo de romantismo muito melhor do que o amor de Clinton que faz de pé enquanto fala com um ministro. Para você pode não ser bonito esse amor virtual dessa maravilhosa moça. Mas me comove, acho mais bonita essa forma quase pura de amor, sem o contato físico, do que o amor de Clinton, feito de pé, enquanto fala com um ministro e a pobre Mônica tendo de fazer todo o resto. É muito mais romântico esse amor virtual.
Roberto: Parabéns professor pela sua criatividade.
De Masi: Obrigado, é muito gentil.

[A transcrição desta entrevista foi feita, a partir de fita gravada, por Lourdes Matos, do grupo de discussão EduTec]

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