Dona Dagmar e o tenente Joventino eram casados. Quando vieram do Rio Grande do Sul (fronteira com o Uruguai) para o Nordeste brasileiro foram morar na sede do município de Corruptópolis. Do casamento, nasceram três filhas. Joventino, de 63 anos, ainda durão e disposto, patente de tenente, para cá veio porque cansado de ser guardião da fronteira. Passados três anos da chegada, enviuvou; aproveitou que tinha um chamego com a empregada de casa, de nome Florinda, e de novo contraiu núpcias. Sempre na intenção de ter um filho homem, macho. Florinda tinha vinte e poucas primaveras.
Dois anos após o novo casório, Florinda fica grávida, motivo de muita alegria para o companheiro, pois via na oportunidade a possibilidade de ter um filho varão. No dia 13 de setembro de 1937, às 13 horas, o tenente manda chamar a parteira Fransquinha. Pressentia ser ali um menino. A parteira, sob sol escaldante, veio acudir a parturiente, cumprir o que prometera a Deus: atender as mulheres carentes do seu lavor. Sempre que tomava umas, a parteira dizia, bíblica: “O que se recebe de graça, de graça se dá”.
Fransquinha chegou com seu chapéu de sol, encostou-se entre a cristaleira em imbuia escura e o caritó, na sala de jantar. Daí, direto pro quarto de Florinda. Retirou da sacola um pano do tipo cueiro, que amarrou na cabeça; pediu pras mulheres se retirarem da camarinha. Solicitou a uma delas uma bacia. O tenente trouxe-lhe a navalha, que serviu para fazer assepsia. A parteira ajoelhou-se, do lado inverso à cabeceira da cama; pegou uma toalha sobre a penteadeira, pôs em torno da barriga de Florinda e começou a fazer força para baixo. A jovem senhora de Florentino sentia muitas contrações, mas o bebê nem se mexia, com se cantasse a marchinha de carnaval de Paquito e Romeu Gentil: “Daqui não saio, daqui ninguém me tira”.
De repente, Fransquinha chama o tenente pela brecha da fechadura, do tipo carregação, e pede-lhe uma garrafa de vidro de litro. Nas mãos dela, a garrafa vazia de Cinzano. Ao recebê-la, a parteira deu pra Florinda assoprar, visando com isso a aumentar-lhe as contrações; ao mesmo tempo, pediu a uma matutinha que ficara na camarinha para segurar uma faca fria entre os dedos do pé esquerdo da grávida. Mesmo com esse esforço, o rebento não dava o menor sinal de vir ao mundo.
A parteira lembrou-se do seu mestre, Dr. Ageu Costa, de Maranguape, que certa vez a confidenciou: “Quando todos os esforços já foram feitos e o parto não se realizou, peça às mulheres de casa para rezar incessantemente, inclusive a gestante, e tudo dará certo”. Assim a cachimbeira fez.
Dez minutos de reza e o bebê nasceu; a limpeza foi feita. O tenente foi chamado, pegou o recém-nascido com as mãos e o levantou, para que todos vissem o troféu. “É menino homem!”. Negra Beatriz, bem próxima, consertou a informação: “É mulher! Isso que o tenente está vendo é o dedo dele”. De fato, era fêmea. O tenente não aceitou o presente de Deus e ficou triste, pois já tinha três filhas. E pôs na criança o nome Erandir, só o tratando com se homem fosse – as roupas, os calçados, o cabelo, tudo de homem. A menina acostumou-se com masculinização imposta pelo pai. Algumas vezes, Erandir se incomodava, principalmente na escola, mas ia levando a vida.
A transmutação
Numa quarta-feira que antecedia à Sexta-Feira Santa, Erandir, já com 15 anos, entrou na mata, a uns cinco quilômetros de casa, e não mais voltou. O tenente chamou o destacamento policial para uma busca, sem nada encontrar. E assim o fez diversas vezes, nada de Erandir ser achada. Corria à boca miúda que a adolescente havia se encantado como o Saci Pererê.
Erandir passou a viver nas matas com os animais, comendo frutas e mel de abelha. Na exata Sexta-Feira Santa referida, viu um asno se ‘espojando’ no chão (esfregando o dorso com as patas pra cima) e prestou atenção àqueles movimentos; esperou dar meia-noite. Deitou-se no chão, no mesmo local, e fez o mesmo que o asno. Nem bem terminou de dar as sete ‘espojadas’ e suas roupas se rasgaram. Sentiu dores fortes nos dentes caninos, superiores e inferiores. Aos poucos, os dentes se deformaram, tomando forma de presas de animais carnívoros, que nem lobo. Também surgiam pelos enormes em seu corpo.
Após a transformação, Erandir saiu pela noite urrando. Na proporção em que a lua se retirava do horizonte, dando lugar ao sol, rasgando o decote da natureza, Erandir ia voltando ao seu estado físico normal.
Três anos depois do seu desaparecimento, tornou-se uma mulher bem feita, possuidora de corpo monumental. Encantadora. Tinha total controle sobre seu instinto há pouco adquirido, só se transformava quando queria, sempre depois da meia-noite. Durante o dia, na mata, numa gruta de pedras. Logo que a lua saía, ficava à espreita, esperando os caçadores. Ao encontrá-los, satisfazia seus desejos eróticos, saciando a lascívia, deixando os caçadores desorientados, loucos para encontrá-la outras vezes.
O encontro com o motorista e a fuga pro Maranhão
Propagou-se a história da mulher encantada, era só no que o povo falava; diziam as senhoras que era conto de caçador. Para os homens, nos bares de Corruptópolis, tema único das discussões. Zé Cueca, o prefeito Dr. Francineudo e até o soldado Leonildo queriam encontrar-se com a morena misteriosa. Os adolescentes sonhavam com Erandir.
Certo dia, o caminhoneiro Zé Butrago, namorador, deu prego de pneu na estrada às margens da mata. Era por volta das 9 da noite. Como foram dois pneus que baixaram e só havia um de reserva, teve de esperar o dia seguinte para buscar adjutório. Quando o relógio de algibeira de Zé mostrou 9h30m, do nada surgiu o mulherão. Ela abriu a porta do 'fenemê', sentou-se na boleia, ao lado do passageiro, e sinalizou, chamando Zé “pra grande”. O motorista ficou espantado, mas atendeu ao chamado. Ela estava pronta pro ‘abate’. Mais de uma hora de satisfação dos desejos carnais. O que mais impressionou o motorista? A maneira como ela desapareceu na mata, da mesma forma como surgira – do nada.
Zé Butrago, dia seguinte, foi a Corruptópolis consertar os pneus. Imediatamente, botou o carro na estrada e voltou ao local onde ficara no prego na noite anterior, na expectativa de encontrar a tal figura. O relógio marcava 9h30m. Lá estava na boleia a criatura misteriosa. Foi só ela entrar e Zé lavar a égua, de novo. Convidou-a, enfim, pra ir embora com ele no rumo do Maranhão; convite aceito de imediato. E os dois seguiram.
Para os caçadores corruptopolenses, ficou a saudade. Nas mesas de bar, as conversas sobre a mulher lobisomem.
Assis Cavalcante
Advogado e Lojista
Enviado por Bosco Macedo
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