segunda-feira, 31 de maio de 2010

Da série: entrevistas memoráveis



Gilberto Freire

As homenagens ao ainda rijo senhor começaram em dezembro passado e se prolongarão por todo esse ano, mas só atingirão o seu ponto máximo no dia 15 deste mês, quando o sociólogo, antropólogo, pintor - ou sobretudo escritor, como ele prefere - Gilberto de Mello Freyre completa 80 anos, vividos intensamente, amigos e inimigos tudo poderão dizer - menos que ele não os viveu sempre em evidência.

Foi sempre a notoriedade que Gilberto Freyre perseguiu e saboreia hoje - seja se adiantando à sua época na formulação de idéias ousadas, seja contestando modernismo e assumindo posições tidas como reacionárias. Critico feroz da ditadura do Estado Novo, apoiou entusiasticamente o movimento militar de 1964 e hoje o critica. Não tem - nem nunca deu a impressão de ter - qualquer acanhamento em parecer contraditório.

Filho de um juiz e professor de Direito e de uma senhora da aristocracia da cana-de-açúcar em Pernambuco, Gilberto Freyre estudou nos Estados Unidos e na Europa dos 18 aos 24. Seu retorno coincidiu com a revolução provocada pela Semana de Arte Moderna de 1922 em São Paulo - e, de pronto, ele se declarou um tradicionalista e regionalista. Para exprimir essas posições, ele se permitiu requintes como o de, certa vez, de fraque e cartola, ir a uma festa. transportado por um tílburi. Conta-se também - e ele desmente - que chegou a promover, no Recife dos anos 20, uma caça à raposa em moldes rigidamente britânicos.

Mas as idéias que ele defendia com tanta petulância ganhariam corpo e notoriedade só em 1933, quando lançou sua obra mais importante, Casa-Grande & Senzala, que já tem 21 edições no Brasil e três em Portugal, e foi traduzida para o inglês, o alemão, o francês, o russo, o italiano, o iugoslavo, o polonês e o espanhol. Desde então, além de produzir dezenas de livros e opúsculos, Gilberto Freyre tem se dedicado a colecionar lauréis - e hoje, certamente, é o brasileiro mais homenageado por universidades européias e norte-americanas. Tem, inclusive, o titulo de sir, conferido pela rainha Elisabeth II da Inglaterra.

A glória, como costuma acontecer, tornou-o um homem vaidoso - muito vaidoso mesmo, sempre a lembrar as homenagens que obteve e a cobrar outras. Nem por isso é um homem antipático. Pelo contrário: informal, acessível, apreciador de uma boa conversa, de uma boa peixada e de vinhos e licores importados, ele recebe sem cerimônia, em seu antigo casarão no bairro de Apipucos, no Recife, gente famosa e mortais comuns. Sempre assessorado por sua mulher, dona Madalena, mais de vinte anos mais nova que ele, e vez ou outra interrompido pelos três netos que lhe deu Fernando, um de seus dois filhos, que mora numa casa vizinha.

O repórter Ricardo Noblat, chefe da sucursal da revista Veja em Salvador, foi ao Recife entrevistar Gilberto Freyre para Playboy e descreve assim a casa do sociólogo (que ele, Gilberto, chama de "Solar de Apipucos"):

"Povoam-na antiquíssimos e pesados móveis de jacarandá, telas das melhores fases de Di Cavalcanti, Vicente do Rego Monteiro, Pancetti, Cícero Dias e Lula Cardoso Ayres. E também uma preciosa coleção de objetos artísticos de diversos países que Gilberto já visitou. Esse magnifico acervo já foi visto e tocado por visitantes como Aldous Huxley, John dos Passos, Roberto Rosselini, Robert Kennedy, Albert Camus e Arnold Toynbee, entre outros. Foi nesse cenário, ora comodamente sentado numa cadeira de balanço, ora displicentemente deitado num marquesão, que Gilberto Freyre falou a Playboy durante três dias. Gentil o tempo todo, ele serviu sucos de frutas do Nordeste e cafezinhos, mas dessa vez esqueceu um de seus hábitos mais festejados pelos amigos: não ofereceu a batida de pitanga a que atribui poderes afrodisíacos e cuja receita não ensina por dinheiro a1gum."

PLAYBOY - Quer seus adversários queiram ou não, o senhor é uma personalidade de dimensão internacional. Em que medida isso o atinge?

FREYRE - Isso me dá um senso muito agudo de responsabilidade. Por exemplo: você é um jornalista idôneo, representa uma revista de peso, que forma opinião no Brasil, de modo que cada pergunta sua exige de mim, dada essa minha dimensão internacional, respostas responsáveis, não levianas, apenas para satisfazer a sua curiosidade, de modo superficial.

PLAYBOY - As vantagens do sucesso são óbvias: o reconhecimento, os lauréis, os títulos. E as desvantagens?

FREYRE - A desvantagem é que você fica muito exposto ao chato (risadas). Essa é a desvantagem principal, porque o chato existe e não é só brasileiro: o chato é internacional... E você tem de se defender sem magoar aquilo que o chato bem-intencionado representa. Porque o chato por vezes é bem intencionado. Ele não é chato porque quer ser: ele é chato porque é chato.

PLAYBOY - Cite alguns chatos.

FREYRE - O Oscar Niemeyer, meu amigo - que é um arquiteto genial -, é muito ignorante. É difícil você manter uma conversa interessante com ele. ( ... ) Há pessoas que são muitíssimo mais interessantes escrevendo do que falando. Rubem Braga é assim: conversando ele é quase um chato. Já o Ariano Suassuna é o contrário.

PLAYBOY - Até os oito anos o senhor tinha dificuldade para aprender a ler e escrever. No entanto, aos dezesseis já era um conferencista e se definia como um socialista cristão. Como chegou a isso?

FREYRE - Houve a influência do colégio protestante americano, onde estudei, no Recife. O colégio dizia que não fazia propaganda religiosa, e por isso tinha como alunos os filhos das famílias católicas mais importantes de Recife... Talvez os pais se impressionassem com as inovações nos métodos de ensino. Mas nesse colégio havia, no inicio das aulas, uma reunião de todos os alunos, durante a qual o diretor lia versículos da Bíblia e fazia comentários sobre eles. Nesses comentários, a figura de Cristo sempre aparecia sob um aspecto que me impressionou na época: o aspecto de um renovador social. Isso me levou a uma visão do cristianismo diferente da católica, embora não anticatólica... Isso, enfim, é o que me teria conduzido ao socialismo cristão. Isso e minhas muitas leituras na época. Aos 16 anos, minha principal leitura foi Tolstói. Também lia muito as revistas francesas e inglesas que meu pai assinava, e me impressionei muito com uma série de artigos sobre Tolstói e sua nova forma de ser cristão, que era a de ser um cristão social.

PLAYBOY - Nessa época o senhor já havia tido uma iniciação sexual?

FREYRE - Escrevi sobre isso em meu livro Tempo morto e outros tempos. Nele registro a primeira experiência que tive com uma mulher. Eu teria 15 anos, mais ou menos; e ela estava, com uns 20. Mas, quando comparo minhas experiências sexuais com a de outros meninos da minha época, vejo que fui um menino relativamente puro. Nunca tive aventuras homossexuais na infância, sabe?

PLAYBOY - E depois?

FREYRE - Bem, depois eu tive, é claro. Você pode imaginar alguém como eu, interessado em tudo o que é humano... e, portanto, tive a curiosidade de ver o que era o amor não heterossexual; tive umas poucas e não satisfatórias aventuras homossexuais. Mas aí eu já tinha mais de 20 anos...

PLAYBOY - E onde aconteceram?

FREYRE - Na Europa. Mas foram experiências pálidas, não satisfatórias. Porque nenhuma delas fez de mim um homossexual. Se tivessem sido satisfatórias eu então provavelmente teria dito: a grande experiência sexual é essa!

PLAYBOY - E sua primeira experiência sexual com mulher, aos 15 anos, como foi?

FREYRE - É, foi muito brasileiramente, com uma empregada, doméstica. Nisso eu fui muito brasileiro, porque segui a experiência de muitos brasileiros, segundo creio...

PLAYBOY - Esse relacionamento durou quanto tempo?

FREYRE - Um, dois anos. De início no quarto dela, lá em casa, eu pulando o muro depois, para dar a impressão de que vinha de fora quando, entrava em casa. Mas depois tive encontros com ela fora de casa, quando, ela já era uma espécie de mulher independente.

PLAYBOY - Como era o tipo dela ?

FREYRE - Era uma morena de tipo bem brasileiro, de um moreno claro, delgada de corpo, mãos e pés delicados, olhos muito bonitos. De origem humilde, mas com uma aparência aristocrática, com as graças de uma quase sinhazinha, sendo entretanto uma doméstica. Lembro-me que a beleza dos pés dela me impressionava... e devo dizer que pés bonitos de mulher são uma de minhas fixações sexuais. Quando, fui para os Estados Unidos e para a Europa e comecei a ver mulheres de pés grandes, sabe, isso foi um dos contrastes favoráveis ao Brasil que mais me impressionaram, o de não encontrar por lá aqueles pés bonitos, bem torneados, que são uma característica de grande parte das brasileiras.

PLAYBOY - E, além de sua fixação por pés femininos, o senhor tem alguma outra?

FREYRE - Eu direi que tenho uma fixação pela morenidade, embora já tenha tido experiências com louras. Na Universidade de Columbia, por exemplo, tive uma loura, bem lourinha, mas tão ardente quanto qualquer morena. Mas creio que a morenidade da mulher é uma de minhas fixações sexuais. Daí o meu grande entusiasmo, já velho, por Sônia Braga.

PLAYBOY - Na época de sua transa com essa americanazinha loura, o senhor era bem mais avançado que ela, em termos de práticas sexuais?

FREYRE - Que ela sim. Creio que meus maiores avanços viriam após meu contato com a Europa, sobretudo, com a França, Inglaterra e Alemanha.

PLAYBOY- Que avanços foram esses?

FREYRE - Bem, várias práticas sexuais que não eram, na época, comuns, nem nos Estados Unidos. Além do coito convencional, há outras práticas que a meu ver são valiosas, inclusive valorizam o coito convencional, porque são uma espécie de aperitivo, tão saborosos quanto a entrée...

PLAYBOY - Sem querer ser demasiado indiscreto: o senhor pode indicar algumas dessas práticas que considera tão valiosas?

FREYRE - Não. Aconselho você a ler livros de erótica.

PLAYBOY- Em Casa-Grande e Senzala o senhor descreve as primeiras práticas sexuais dos filhos dos senhores de engenho. O senhor também teve um período em que foi menino de engenho. Nesse período também experimentou tudo aquilo?

FREYRE - É, como todo menino de engenho, eu tive uma iniciação que não teria tido na cidade. No engenho você vê, por exemplo, os animais, o touro cobrindo a vaca... e também os meninos me contavam coisas que eu não supunha existir..

PLAYBOY - Que coisas?

FREYRE - Por exemplo, me iniciaram no conhecimento de um orifício em bananeira, como substituto do sexo de mulher, para a prática de masturbação.

PLAYBOY - E experiências com animais?

FREYRE - Sim, além dessa masturbação na bananeira, fui iniciado no uso de uma vaca. Experimentei o contato pecaminoso com uma vaca! (Risadas.)

PLAYBOY - O sexo sempre teve uma importância muito grande em sua vida?

FREYRE - Sim, sim!

PLAYBOY - Sendo um homem tão sensual, o senhor já traiu sua mulher?

FREYRE - Já, mas com autorização dela, quando viajei sem ela para a África e o Oriente. Nós viajamos muito juntos, mas como dessa vez eu iria sozinho e a viagem seria bastante longa minha mulher me autorizou a ter experiências sexuais durante essa ausência de meses. Foi em 1951, 52...

PLAYBOY - Voltando à sua juventude, ao período – dos 18 aos 23 anos - em que o senhor viveu nos Estados Unidos e na Europa: foi lá que o senhor alicerçou sua formação de escritor, sociólogo e antropólogo, não? Por quê? O Brasil não lhe oferecia condições de estudo e pesquisa?

FREYRE - Não, de modo algum! Nem o Recife, nem o Rio, nem São Paulo. Não poderia ter me acontecido nada mais favorável do que ter tido essa formação no estrangeiro. Mas não creio que eu seja fruto dessa formação. Sou fruto, principalmente, do meu talento e talvez do meu mais-que-talento. Mas esse talento e esse mais-que-talento foram completados por uma formação adequada que eu não poderia ter tido no Brasil. Eu diria que adquiri, nos Estados Unidos e na Europa, uma visão do ser humano que não teria adquirido se não tivesse saído do Brasil.

PLAYBOY - Ao voltar para Recife em 1923, o senhor também provocou celeuma por outros motivos...

FREYRE - Encontrei um Recife onde se valorizava muito a mulher européia, mesmo a prostituta européia, em detrimento da nativa. A minha atitude foi a de valorizar a mulher nativa, morena, e até a mulher negra. E isso teve repercussão, foi talvez uma pequena revolução nativista.

PLAYBOY - Mas, além disso, o senhor também foi responsável pela disseminação de práticas sexuais até então desconhecidas no Recife.

FREYRE - Bem, é certo que, quando jovem solteiro, usei muito no Recife certas camisas-de-vênus especialmente eróticas.

PLAYBOY - Como eram?

FREYRE – Eram umas camisas-de-vênus que tinham uma espécie de penacho na extremidade, que as tornava muito excitantes para as mulheres.

PLAYBOY - O senhor parece sentir satisfação em ser uma pessoa polêmica, discutida e até criticada.

FREYRE - Isso me dá uma sensação de vitalidade muito agradável. Eu temo ser considerado um bonzinho que agrada a todo mundo, um convencional que não arrepia nenhuma convenção. Tenho muito medo de chegar a ser benquisto por toda a gente ao mesmo tempo. Creio que quem tem atitudes precisa se conformar com o fato de desagradar a alguns.

PLAYBOY - Isso explicaria certas afirmações suas, como, por exemplo, a de que gostaria de ter sido hippie?

FREYRE - Não creio que tenha dito exatamente que gostaria de ser hippie. O que eu disse é que se eu tivesse vivido na época hippie provavelmente teria sido um hippie.

PLAYBOY - Por quê?

FREYRE - Porque os hippies representavam uma repulsa ao excesso de convenções, que considero prejudicial a qualquer sociedade, a qualquer cultura. É preciso que haja sempre uma repulsa a esse excesso, porque ele leva a um conformismo que pode ser fatal a essa sociedade ou a essa cultura. Creio que naqueles tempos de meu regresso ao Recife eu fui um pouco hippie.

PLAYBOY - Na época desse seu regresso, 1923, já havia explodido em São Paulo a Semana de Arte Moderna, e o modernismo estava sendo debatido, polemizado. Mas parece que o senhor nunca levou muito a sério aquele movimento de renovação cultual. O senhor chegou até a espinafrá-lo em vários artigos. Por que?

FREYRE - Porque acho que, no total, a Semana de Arte Moderna representou uma introdução arbitrária, no Brasil, de modernices européias, sobretudo francesas. Sem dúvida, cultura brasileira em geral e as artes brasileiras em particular precisavam na época de serem modernizadas, revigoradas - mas levando-se em conta a realidade regional brasileira, suas tradições características às quais se poderia adaptar inovações européias. Isso não se fez em São Paulo, mas sim no Recife, num movimento muito menos badalado, como se diria hoje, do que a Semana de Arte Moderna de São Paulo. Esse movimento foi regionalista, tradicionalista e, a seu modo, modernista, ao qual estiveram ligados artistas como Vicente do Rego Monteiro, um renovador da pintura e da escultura.

PLAYBOY - Independentemente dessa questão do movimento modernista, o senhor tem uma velha briga com os paulistas, com os sociólogos e antropólogos paulistas, não?

FREYRE - Dos sociólogos paulistas, o que eu considero a figura máxima é Fernando Henrique Cardoso, que é até político militante marxista, mas há pouco, num artigo, mostrou-se simpático às minhas atitudes, embora divergindo de mim. Outro marxista, mas este do Rio, o antropólogo Darci Ribeiro, um grande antropólogo, escreveu uma introdução para a edição venezuelana de meu livro Casa-Grande e Senzala, que é talvez o que de melhor já se escreveu a respeito, do ponto de vista antropológico e sociológico. Agora, ambos são marxistas eminentes. Mas quando o marxista é um Octavio lanni, que não é intelectualmente honesto, a meu ver, e um outro que já nem me lembro o nome...

PLAYBOY - Florestan Fernandes?

FREYRE - Florestan. Que não é desonesto mas que é um fanatizado pelo marxismo. Esses desonestos ou esses fanáticos superiores - eu respeito o Florestan Fernandes, uma cultura real, um talento autêntico, mas fanatizado - enfim, eu não os considero como representantes do que há de melhor na sociologia e na antropologia paulista. Mas são os mais ruidosos e os mais badalados por nossa querida imprensa.

PLAYBOY - O senhor conspirou ou pelo menos estava a par do que se tramava em 64?

FREYRE - Não estava intimamente a par, mas meu sherloquismo já captava alguma coisa do que se passava. O general Castelo Branco, então comandante do IV Exército freqüentava muito a minha casa, mas vinha para conversar, não para conspirar.

PLAYBOY - Ao assumir a presidência do governo revolucionário, Castelo Branco convidou-o para ser o ministro da Educação. Por que o senhor não aceitou?

FREYRE - Porque senti que não estava havendo uma revolução, mas sim uma substituição dos quadros governamentais, e isso não me interessava.

PLAYBOY - Embora não aceitando ser ministro o senhor ajudou a fazer vários, nestes últimos 16 anos, não é? Por exemplo, o senhor não ajudou na indicação do atual ministro da Educação, Eduardo Portella?

FREYRE - Ajudei.

PLAYBOY - Ainda hoje o senhor acredita que em 1964 existia de fato a ameaça de implantação de um regime comunista no Brasil?

FREYRE - Não, não creio que houvesse uma ameaça assim especifica. A ameaça que havia era a do caos. Creio que o presidente Goulart, um homem pessoalmente estimável, favoreceu no entanto uma situação caótica, que a União Soviética não deixaria de aproveitar, como, aproveitou em Cuba.

PLAYBOY - A seu ver, quais foram as principais falhas do movimento de 1964?

FREYRE - No plano social, a Revolução teve uma oportunidade única, que não foi aproveitada. E também não soube libertar-se do burocratismo, tanto que só agora nomeou um ministro da desburocratização, o Hélio Beltrão, que aliás foi meu aluno de Antropologia na Universidade do Distrito Federal, um brilhante aluno meu. Também vejo com apreensão, nesse período de governos, não direi militares, mas de militares que o Brasil tem tido, a tendência de certos assessores da Presidência para estabelecer um dirigismo da cultura.

PLAYBOY - O senhor poderia dar exemplos concretos de males que o dirigismo cultural tem provocado?

FREYRE - Na ação da censura exercida politicamente, esses males são evidentes. Por exemplo, eu prefaciei um trabalho científico, sério, social, que se intitula Dicionário do Palavrão. Trata-se do trabalho de um etimólogo, o Mário Souto Maior. Pois bem, há anos que uma censura policial, fazendo-se passar por censura cultural, vem barrando a publicação desse trabalho. É evidente que isso é uma manifestação de dirigismo que vem privando a cultura brasileira de uma expressão válida. Agora mesmo, no Rio, você assiste à peça Rasga, Coração de Oduvaldo Vianna Filho, impedida de aparecer, durante anos, vítima do dirigismo cultural.

PLAYBOY - O senhor é mesmo o reacionário que os seus adversários dizem ser?

FREYRE - Não sei. Eu me considero um anarquista construtivo.

PLAYBOY - Não conservador?

FREYRE - O que eu quero conservar, no Brasil? Valores brasileiros que estão encarnados principalmente nas formas populares de cultura, formas regionais, que dêem um sentido nacional ao Brasil. É, eu sou um conservador por ser um nacionalista, conservador de valores que exprimem uma nação brasileira através de uma cultura popular brasileira. Acentue-se bem que a essa cultura popular eu tenho dado uma valorização máxima, embora não deixe de valorizar também uma cultura de elite, não é? Joaquim Nabuco, que tanto valorizou o povo brasileiro, representado pelo negro escravo que ele quis que se tornasse um novo homem livre, Joaquim Nabuco, repito, foi um misto de conservador e revolucionário, pois, sendo monarquista, não quis aderir à república.

PLAYBOY - O que o senhor quer conservar e o que quer revolucionar?

FREYRE - A organização social, a relação entre empregados e empregadores, a crescente presença do trabalhador na vida social - tanto a presença política quanto a econômica e a cultural -, tudo isso seria objeto de uma revolução muito de acordo com os princípios gerais anárquico-construtivos.

PLAYBOY - E como seria um Brasil anarquista-construtivo?

FREYRE - Com um mínimo de governo coordenador, e com o máximo de autonomia para energias diversas, econômicas, culturais, religiosas, políticas. Um pluralismo não só político, mas também social e cultural. Bertrand Russel, o grande filósofo que, como se sabe, foi um anarquista dos que eu classifico como construtivos, tem uma imagem que considero muito expressiva: a do guarda de trânsito, que não manda no trânsito, mas o coordena. O trânsito representa aí as energias que, sem o guarda, se chocariam, uma querendo se sobrepor à outra.

PLAYBOY - Quando o senhor completou 70 anos, deu a entender numa entrevista que ainda era capaz de despertar paixões em muitas Lolitas. E agora, quando está completando 80?

FREYRE - Não sei, hoje eu não sei.

PLAYBOY - Esses dez anos pesaram muito?

FREYRE - Não. É que aos 70 anos eu tinha conhecimento de casos concretos de jovens apaixonadas por mim. Mas atualmente eu não posso apresentar um exemplo concreto. Mas gostaria...

PLAYBOY - Sensual e sempre liberal em questões de sexo, o que pensa o senhor do homossexualismo?

FREYRE - Acho que é uma forma de amor. Havendo uma vocação homossexual, ela é tão respeitável quanto as vocações heterossexuais.

PLAYBOY - E o que o senhor pensa de práticas sexuais como sexo grupal, troca de casais, em moda atualmente?

FREYRE - Eu temo que essas práticas favoreçam muito o acanalhamento, mas acho que são admissíveis. O ménage à trois, por exemplo, quando os três conhecem o assunto e se toleram mutuamente, numa espécie de consórcio, é perfeitamente admissível e é até uma espécie de homenagem.

PLAYBOY - O senhor poderia fazer um paralelo entre os costumes sexuais dos tempos, digamos, da casa-grande e da senzala, com os de hoje, em termos de progresso ou de decadência?

FREYRE - É tão delicado e perigoso falar-se em progresso como falar-se em decadência, em termos absolutos.

Fonte: COUTINHO, Edilberto (Org.). Gilberto Freyre. Rio de Janeiro: Agir, 1994. p. 87-94.

http://bvgf.fgf.org.br/portugues/vida/entrevistas/playboy.html

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