segunda-feira, 17 de maio de 2010

O espetáculo


A multidão afluía ao Terreiro do Paço, para assistir ao espectáculo. Mas também nas ruas adjacentes e que lhe dão acesso, muitas pessoas tomavam posições, para ver passar o cortejo. As autoridades estavam presentes. Toda a élite política, o rei e os notáveis do reino. O monarca tinha direito a um lugar privilegiado, muito próximo e mesmo em frente do “palco”, de onde poderia acompanhar todos os pormenores do espectáculo.
Mas vários convidados especiais tinham assento à frente, na zona VIP. Homens armados dispunham-se por vários pontos da praça, para garantir a segurança e conter os entusiasmos da multidão. Um clérigo proferia um sermão, que abordava quase sempre o tema dos perigos que a fé católica tinha de enfrentar. Em particular a ameaça do judaísmo.
Semanas antes da grande cerimónia, os padres informavam os fieis do que se ia passar, exortando-os a assistir. Para preparar o evento, muitas vezes eram feitas obras importantes de decoração e melhoramento, construídas estradas para facilitar o acesso do povo que vinha de longe.
O espectáculo incluía missa e por vezes outros eventos sociais. Chegava a haver casamentos de aristocratas realizados no mesmo dia, para aproveitar o clima festivo. A solenidade chegava a durar um dia inteiro, ou mais. O ambiente era de grande ostentação. Quem podia, aproveitava para exibir ouros e toilettes, quem não podia contentava-se com a admiração e os comentários.
A própria Igreja não descurava a ostentação da sua riqueza e poderio. Era esse aliás o propósito de todo o espectáculo. Tudo isto ficava muito caro, mas era considerado necessário. O tesoureiro do fisco tinha de angariar fundos para pagar a promotores, notários, meirinhos, porteiros, alcaides, homens de vara, guardas, e também ao alfaiate e ao pintor e até aos próprios carrascos e inquisidores.
A procissão começava no cárcere. Depois de o alfaiate lhes ter confeccionado o sambenito e a mitra de papelão, e o pintor o retrato envolto em chamas, os réus eram notificados, sexta-feira, sobre o que lhes ia acontecer no domingo. Durante esses dois dias, um padre jesuíta sentava-se num banco à porta da cela à espera da confissão.
Domingo de manhã saía a procissão. Crucifixo à frente, seguido por elementos das comunidades religiosas. Depois os condenados, por ordem de gravidade dos crimes e sentenças, com o seu traje próprio, o hábito penitencial, que incluía a carocha na cabeça, cheia de figuras de diabretes, e vela na mão. Caminhavam os que sofreriam o degredo, cárcere, açoites, remo nas galés. Na cauda desfilavam os condenados à morte. Seguiam até ao Terreiro do Paço.
O cadafalso estava montado no extremo sul da praça, ao centro, junto ao rio. Tinha de ser ali, pois era o lugar mais belo, mais propício ao espectáculo. E a Santa Igreja Católica de Roma nunca subestimou o poder do espectáculo.
Os inquisidores do Tribunal do Santo Ofício chegavam a cavalo para o Auto de Fé, acompanhados pelo meirinho, com a vara alçada. O pregador dirigia-se ao púlpito. Eram lidas as sentenças. Primeiro as das mulheres, depois as dos homens. Os criminosos eram formalmente entregues à justiça secular, que executaria as penas, para que a Igreja mantivesse as mãos limpas.
Aos condenados à morte era perguntado se queriam morrer como cristãos. Se diziam que sim tinham o direito a ser estrangulados antes de os lançarem às chamas.

Fonte:http://reporterasolta.blogspot.com/

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