O indiciamento do diretor de Veja em Brasília, Policarpo Jr., e o pedido de investigação contra o procurador-geral, Roberto Gurgel, incluídos no relatório da CPI do Cachoeira, forçam a tampa de um bueiro capaz de revelar detritos omitidos na narrativa conservadora da Ação Penal 470.
As linhas de passagem entre um caso e outro foram represadas na pauta da conveniência. Os processos são distintos, mas os personagens se repetem.
A sucursal de Veja em Brasília adicionou ao moderno arsenal da Editora Abril a subcontratação de serviços na modalidade just in time à quadrilha Cachoeira.
Trata-se de um exemplo de coerência de quem não poupa tinta e papel no elogio às reformas e ferramentas do repertório neoliberal.
O downsinzing é uma delas. Veste de inglês o velho ‘facão’ ao enxugar equipes, subcontratando serviços de terceiros com reconhecida competência no ramo.
Policarpo Jr. notabilizou-se na fusão entre teoria e prática.
Estabeleceu-se entre os dois chefes de equipe, o da quadrilha –condenado a cinco anos em regime semi-aberto, mas já livre; e o de Veja, protegido pelos pares de prática e fé, uma sinergia de interesse assumidos em operações casadas.
O ex-araponga do SNI, o ubíquo Dadá, braço direito de Cachoeira, gerava ‘provas’ capazes de emprestar aromas de veracidade às pautas demandadas por Apolinário. Na recíproca, o esquema Cachoeira era brindado nas páginas da semanal com acepipes de interesse do bicheiro.
Espionagens e denúncias contra o PT, contra as suas lideranças e contra o governo estreitaram um matrimônio prolífico entre a azeitada máquina de denúncias da Abril e a competência delivery dos fora-da-lei. Um case ilustrativo das virtudes da desregulação.
O troca-troca pavimentaria por anos a fio a estrada da suspeição e da caricatura do apodrecimento ético espetada no PT, indispensável ao trânsito pesado da futura Ação Penal 470.
Ainda não foi feito o inventário completo das contribuições desse intercurso à apoteose do banquete pré-cozido servido agora no STF.
Esmerou-se no azeitamento do conjunto o procurador-geral Roberto Gurgel, hoje declarado suspeito de prevaricação pela CPI do Cachoeira, que pede investigações sobre suas ações.
Como é sabido, em 2009, Gurgel e esposa, sub-procuradora Claudia Sampaio, decidiram não solicitar abertura de inquérito no STF contra o então herói do jogral conservador, senador Demóstenes Torres, bem como dos deputados Carlos Alberto Leréia (PSDB-GO) e Sandes Jr (PP -GO).
Avultavam evidências de que Demóstenes compunha o braço parlamentar da quadrilha Cachoeira. Mas a queda do savonarola goiano foi adiada por três anos com a decisão da família Gurgel de sentar nos ovos da serpente.
Preservada a usina provedora de Policarpo –e outros–, o procurador assegurou-se das condições necessárias à oferta de denúncias no processo do assim chamado ‘mensalão’.
São empenhos paralelos, mas complementares. A harmonia de propósitos só escapa aos olhos da pauta conservadora.As intersecções materializam-se nos mesmos personagens, nos mesmos interesses políticos, guarnecem a mesma narrativa da indulgência midiática num caso; virulenta e munida de implacável urgência no outro.
O mesmo personagem que agasalhou por três anos os ovos do braço parlamentar quadrilheiro hoje caça passaportes e pede a prisão imediata dos condenados na Ação 470.
As urgências eletivas do procurador –que fracassou na exortação eleitoral antipetista– elucidam as impropriedades cometidas por ele nas denúncias oferecidas ao Supremo no âmbito da Ação 470.
Avultam evidências de um subtexto urdido na certeza da cumplicidade midiática.
Três fundações da arquitetura vendida como obra-prima de engenharia jurídica exibem trincas de origem.
O manuseio improcedente do conceito do ‘domínio de fato’ é a mais clamorosa e debatida.
Secundária importância tem o fato de o jurista Claus Roxin vir ou não assessorar a defesa de José Dirceu, como se especulou.
É preciso provar a responsabilidade direta dos implicados, disse Roxin em entrevista publicada antes da condenação de Dirceu, em 12 de novembro. Ponto.
Os savonarolas togados não provaram. Condenaram.
O segundo pilar que cedeu precocemente foi a manipulação rudimentar da natureza legal do fundo Visanet. Uma contribuição da lavra direta de Roberto Gurgel.
Quer a versão gurgeliana que se trata de instituição pública de onde teriam migrado cerca de R$ 74 milhões em recursos para a alardeada compra votos do mensalão.
A peça acusatória tem a retidão de uma Torre de Pisa, mas o dispositivo midiático diz que a obra é linheira como uma peroba rosa na clareira da mata.
Carta Maior esmiuçou recentemente a tortuosidade da versão acusatória (leia:’A ocultação deliberada para condenar o PT’), sendo dispensável ir além do essencial: a) o fundo Visanet pertence à Visanet internacional, uma multinacional que no Brasil associou-se a duas dúzias de bancos, o Banco do Brasil entre eles, como minoritário; b) há provas documentais de que os serviços contratados pelo Visanet junto à agência DNA, de Marcos Valéria, foram feitos.
O oposto, todavia, figurava como um alicerce indispensável ao equilíbrio do enredo condenatório; e Gurgel sacramentou: “R$ 73,8 milhões em recursos públicos foram desviados do Banco do Brasil para o ‘mensalão’ “.
Esta semana, o STF deve julgar Henrique Pizzolato.
Era um dos quatro diretores de marketing do fundo Visa, mas foi o único incluído na denúncia de Gurgel. A diferença entre Pizzolato e os demais: ele é petista.
Ademais do ‘desvio de recursos públicos’ Gurgel acusa-o de apropriação de R$ 2,9 milhões em ‘bônus de volume’ –uma espécie de recompensa que as empresas de comunicação dão às agências de publicidade pela programação de anúncios em seus veículos.
Anunciantes como o Visanet não participam desse rateio. De certa forma, os grupos de comunicação usam o bônus para fidelizar e incentivar agências na destinação de verbas publicitárias aos seus veículos.
Os advogados de Pizzolato colheram dois depoimentos insuspeitos que reiteram essa prática tradicional no âmbito exclusivo das relações entre veículos e agências.
Foram ouvidos o então diretor geral da Rede Globo, Octávio Florisbal (que agora assumiu o Conselho de Administração das Organizações Globo); e o publicitário Nelson Biondi, um dos marqueteiro de José Serra em 2002.
Ambos reiteraram a prática do bônus de volume como operação tradicional no mercado publicitário, sempre restrita às relações agencia/veículos.
O desvio de R$ 2,9 milhões atribuído a Pizzolato é desprovido de lógica pelo simples fato de que como diretor de um anunciante ele não tinha ingerência nas relações entre agências e veículos.
Florisbal lembrou em seu depoimento que a Rede Globo inclui cerca de 121 emissoras de televisão no país.
Calcula-se que esse gigantesco polvo publicitário e ideológico pagou cerca de R$ 700 milhões às agências de publicidade em 2011,como bônus de volume, conforme mostrou reportagem de Marco Weissheimer sobre esse assunto em Carta Maior.
A condenação de Pizzolato nesse item exigiria que o STF estendesse a sentença à família Marinho. E acionasse providências para a devolução integral desse valor aos anunciantes da Globo, lembrou Weissheimer. A operação envolveria um valor quase dez vezes maior que o atribuído ao ‘mensalão’.
A Globo pode ficar tranquila: a coerência jurídica não tem sido o forte do conservadorismo togado.
O julgamento da Ação 470 ainda terá a sua hora da verdade na democracia brasileira.
O jornalismo que deu espessamento de revide político ao conjunto, ordenado para ser um terceiro turno capaz de esfarelar a credibilidade no PT, deixará então de figurar como cronista para assumir seu papel de protagonista.
Hoje, a fadiga do tema dá aos ‘vencedores’ a falsa ideia de uma supremacia consolidada e acatada pela opinião pública.
Faz parte da mitologia neoliberal acreditar que a história termina quando seus ventríloquos colocam um ponto final na sentença.
O indiciamento do diretor de Veja em Brasília e a investigação de Roberto Gurgel por suspeita de prevaricação adicionam agudas notas dissonantes a essa sinfonia dos contentes.
Fonte: http://www.viomundo.com.br/politica/saul-leblon-policarpo-gurgel-ruidos-na-sinfonia-dos-contentes.html
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