(JB) -
Severo Gomes - sua morte prematura, há 20 anos, ao lado de Ulysses Guimarães,
foi lembrada estes dias - era uma inteligência peregrina. Sabia quase tudo do
Brasil e não escondia sua ação em favor do golpe em 1964; explicava-a como
desvio político equivocado. Mais tarde, conforme dizia sorrindo, transformara-se
em um democrata infiltrado no governo autoritário. Ministro de Agricultura do
governo Castello Branco e, mais tarde, de Indústria e Comércio de Geisel, tinha
uma visão desolada do sistema administrativo brasileiro.
Getúlio agira
bem, ao tentar construir uma burocracia de Estado, com o Dasp e os concursos
públicos – mas se esquecera de que não tínhamos, no subdesenvolvimento de que
padecíamos, de onde retirar um corpo de bons gestores da coisa pública. Bem que
ele tentou, mais tarde, suprir essa dificuldade, com a criação da Fundação
Getúlio Vargas, mas os seus sucessores não insistiram nessa necessária formação
de quadros.
Severo gostava
de contar a sua amarga experiência como Ministro da Agricultura e, mais tarde,
da Indústria e Comércio. No Ministério da Agricultura, ele levou todos os meses
de gestão sem saber exatamente quantos departamentos havia, nem o que realmente
faziam os seus funcionários. Pelo que vira, dizia, o governo se parece a uma
frota de navios encalhados, cada um deles preso ao próprio banco de areia, e no
meio de denso nevoeiro. Da nave capitânea à última embarcação, os comandantes
gritam, da ponte, as ordens, determinando rumo e velocidade, mas os navios
permanecem parados. Como os tripulantes sabem que os barcos não se movem, jogam
cartas e alguns enchem a pança, porque os celeiros estão cheios de
ração.
A imagem é
irônica, no estilo de Severo, e exagerada. Há sempre, em qualquer repartição
pública, geralmente entre os mais modestos, aqueles que tentam trabalhar com
zelo – e, às vezes, com excesso de zelo. Graças a eles, as coisas funcionam,
ainda que devagar. Mas, funcionam em que sentido? Os barcos que avançam, avançam
para qual destino? O fato é que temos, hoje, no Brasil, um governo que se
identifica na esquerda, mas a máquina administrativa, com seus executivos
médios, continua empenhada na prática do neoliberalismo.
O presidente
Fernando Henrique Cardoso tratou de colocar, nos postos de decisão (no governo e
nas agências reguladoras) homens convencidos de que, fora da submissão à nova
ordem internacional, não há salvação. São esses homens que controlam a máquina
do Estado. Acusa-se o governo do PT de “aparelhar” o Estado. A diferença é
aquela apontada por Nelson Jobim saudando Fernando Henrique: os apparatchíki de
antes – e que, na sombra, continuam mandando - pertencem às elites, conhecem
línguas estrangeiras, seguem com atenção os movimentos do mercado, de que são
fundamentalistas fanáticos, e se vestem com esmero.
Enfim, esses que
remanescem são competentes naquilo que pretendem. Sendo assim, foram eficientes
na transferência maciça de dinheiro, pela ponte internacional do Paraná:
emitiram, antes, portaria do Banco Central, que isentava da fiscalização da
Receita Federal os carros fortes que iam e vinham do Paraguai. Souberam
manipular, com as sutilezas das engrenagens financeiras, as contas CC-5, e,
mediante fundos marotos, transferir dinheiros mal havidos ao Exterior, a fim de
ali serem lavados e aromatizados. E agora se encontram entre os que aprovam
financiamentos do BNDES a empresas estrangeiras, como é o caso da Telefónica da
Espanha e perdoam a sonegação bilionária do Banco Santander, calculada em 4
bilhões – cobrada pela Receita Federal.
Os que conhecem
os mecanismos do poder sabem que não é fácil governar. A leitura das melhores
biografias de grandes governantes mostra como é difícil tomar decisões das quais
depende a salvação ou perdição dos povos. É sempre atual citar Richelieu, quando
diz que os homens, em sua vida pessoal, quando erram, podem contar com a
salvação eterna. Os Estados, que só têm vida temporal, não dispõem desse
consolo: eles se salvam ou se perdem na decisão de um segundo. É sobre esse fio
de navalha que devem caminhar todos os dias os governantes.
Para chegar ao
poder, Lula teve que negociar com os empresários, e contou com a ajuda
inteligente de José Alencar. Com isso, elegeu-se e empossou-se, mas ele e sua
sucessora não conseguiram que o governo assumisse o pleno controle da máquina
administrativa.
É inegável que
houve avanços consideráveis no caminho da emancipação de milhões de famílias,
mediante as políticas compensatórias do governo, e que essas ações favoreceram a
economia como um todo, e que – apesar de sua fragilidade essencial – a educação
deu grandes passos, com o Enem, o Prouni e o programa nacional de formação
técnica. Mas são apenas algumas naves que, com a tripulação mudada em boa parte,
conseguem avançar no rumo escolhido, vencendo os encalhes e devassando o
nevoeiro. As outras avançam com as luzes apagadas, na rota contrária ao
interesse nacional.
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